quinta-feira, 4 de abril de 2013

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Obra completa do Padre António Vieira e Acordo Ortográfico

Diz-se adiante da importância absoluta desta edição e que, para Vieira, a verdadeira fidalguia está na acção,  coisas com  que concordo plenamente. Da edição da obra, no que respeita a questão do Acordo, já dói. Não é pacífico, não. Quanto aos organizadores, são do melhor que temos, lá isso são.


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Padre António Vieira completo


300 anos depois da morte


Literatura


Isabel Lucas







Está pela primeira vez reunida a obra do Padre António Vieira. São 30 volumes a publicar até Setembro de 2014. Os primeiros três são apresentados hoje, quando surgem críticas à opção dos responsáveis por seguir o Acordo Ortográfico









“Só agora, mais de 300 anos depois da morte do padre António Vieira será possível fazer a sua biografia
completa.” A afirmação é de Migue Real, escritor e investigador na área da História da Literatura sobre a publicação da Obra Completa do Padre António Vieira (1608-1697), uma colecção de 30 volumes, mais de 12 mil páginas — um terço das quais de inéditos traduzidos do latim — que resultaram do trabalho de uma equipa de 52 investigadores, portugueses e brasileiros, coordenada pelo historiador José Eduardo Franco e pelo filósofo Pedro Calafate, ambos da Universidade de Lisboa. Pela primeira vez está reunida a obra do jesuíta natural de Lisboa, onde nasceu a 6 de Fevereiro de 1608, e que morreu em S. Salvador da Baía, em Julho de 1697, com 89 anos.
São sermões, cartas, textos proféticos e políticos, sobre judeus e sobre os índios, teatro e poesia. “A importância da publicação desta obra é absoluta”, afi rmou ao PÚBLICO Miguel Real, responsável pelo segundo volume da correspondência de Vieira. “É uma obra um pouco barroca, pela sua extensão e complexidade, que vem homenagear o grande mestre do barroco”, sintetizou ainda o escritor sobre o projecto que nasceu há 13 anos na cabeça de José Eduardo Franco, director do Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias, da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, e do qual se conhecem hoje os três primeiros volumes: o número um, Cartas Diplomáticas, e os dois seguintes que dão a conhecer na íntegra A Chave dos Profetas, o último título do padre António Vieira. “Vieira morreu quando estava a escrevê-lo e estava em latim”, revela José Eduardo Franco sobre aquele que os autores apresentam como um dos pontos altos da “colecção” apresentada hoje na reitoria da Universidade
de Lisboa com a leitura de um dos sermões de Vieira pelo actor Luís Miguel Cintra.
“A leitura de A Chave dos Profetas vem mostrar o lado heterodoxo da relação entre o padre António
Vieira e a Igreja Católica. É a obra profética máxima de Vieira, onde encontramos a ideia de uma igreja ecuménica, universal, de todos os povos — incluindo os judeus —, e sem o radicalismo de outras obras que levaram a Inquisição a prendê-lo”, afirma ainda Miguel Real, lembrando que em Portugal apenas se
conhecia parte deste trabalho que a partir de hoje pode ser lido na íntegra numa edição do Círculo de Leitores e que Eduardo Franco classifica, se não como o maior, “pelo menos como um dos grandes projectos editoriais nesta área jamais feito em Portugal.” A obra divide-se em quatro tomos
— Epistolografia, Parenética, Profética
e Varia — e estará publicada em Setembro de 2014 a um ritmo de três volumes a cada dois meses,
terminando justamente com a edição da poesia e do teatro de Vieira. Mas o projecto é ainda mais ambicioso e integra ainda um dicionário multimédia e uma obra selecta com cerca de 400 páginas a publicar em oito línguas. Os organizadores chamam a este conjunto Vieira Globaliniciativa integrada no Centenário da Universidade de Lisboa que se celebrou em 2011. Orçado num milhão de euros —
500 mil doados pela Santa Casa da Misericórdia de Lisboa — partiu, segundo José Eduardo Franco, de uma pesquisa “de raiz”, desde os primeiros testemunhos escritos de Vieira e seguindo-lhe a geografia biográfica e bibliográfica. Os óbvios Portugal e Brasil, onde o autor viveu, e outros onde foram também encontradas fontes manuscritas e impressas. Casos de Espanha, França, Itália, Inglaterra e México. “O número de originais encontrados era muito grande. Muitos estavam em latim e havia que
tratá-los e traduzi-los, o que fez subir os custos do projecto.” Ou seja, em vez dos 500 mil euros inicialmente previstos, que seriam cobertos pela doação da Misericórdia de Lisboa, passou-se para o dobro. O resultado é, ainda segundo José Eduardo Franco, uma investigação “tão completa e definitiva quanto possível sobre um homem actual, que lutou contra a escravatura, pela reforma da Inquisição, um crítico das más práticas políticas, da divisão da sociedade entre cidadãos de primeira e de segunda, defensor da abolição da diferença de direitos dos chamados cristãos-novos e cristãos-velhos, capaz de fazer um diagnóstico de Portugal e da mentalidade portuguesa do seu tempo e que dizia que a verdadeira fidalguia estava na acção. Ele faz muito sentido neste tempo de crise em que vivemos”, resume José Eduardo Franco sobre a pertinência de conhecer Vieira, mas sublinhando que acima de tudo estamos perante um dos fundadores do português moderno, “alguém que fixou o bom português escrito e falado em Portugal e no Brasil”.
Seguir o acordo
E é precisamente a fixação do texto deste trabalho que está a originar polémica. Os responsáveis pela edição da obra optaram por seguir as normas do Acordo Ortográfico, conscientes de que isso não seria
uma decisão “pacífica”. Vasco Graça-Moura criticava isso mesmo num texto publicado na edição de ontem
do PÚBLICO. Saudando a obra e a sua ambição, Graça-Moura aponta essa opção pelo acordo como “um
grave problema” e, dirigindo-se aos responsáveis pela coordenação e edição da obra, escreve: “Ignoram
a polémica e os problemas? Não sabem que há hoje três grafias divergentes a serem aplicadas no mundo
da língua portuguesa? Quem tem medo do Estado de direito? Quem tem medo da aplicação da Lei?”.
José Eduardo Franco sublinha, em defesa da opção que tomou, o facto deste ser um projecto luso-brasileiro e assume a dificuldade que foi o definir “critérios linguísticos comuns, capazes de serem aceites em Portugal e no Brasil”. “O nosso objectivo é a democratização dos bens da alta cultura. Se Vieira foi um praticante do português falado e escrito temos o dever de o tornar acessível a todos.” Segundo José Eduardo Franco, ter ido por outro caminho que não o do acordo ortográfico já assinado seria “uma enorme arrogância”.
“Este era um projecto luso-brasileiro e uma das formas de nos entendermos foi cumprir o contrato e usar a norma em vigor. Há leis de que gostamos mais e outras menos. Não há acordos perfeitos. O padre António Vieira era uma figura luso-brasileira. Ele escrevia o português do século XVII que, em alguns aspectos,tem semelhanças com o que se fala e escreve no Brasil actual e noutras nem por isso. Mas ele é uma figura fundadora das duas literaturas. Contribuiu para uma evolução comum e é um exemplo dessa evolução.
Tivemos de encontrar uma plataforma de entendimento sob pena de hipotecar o conhecimento daquele que foi considerado o maior orador português”. Guilhermina Gomes, directora editorial do Círculo de Leitores, defende também, neste caso, a “norma comum” para editar uma obra de divulgação e minimiza a crítica de
Graça-Moura, que não se ficou pela opção pelo acordo, apontando ainda falhas de revisão e confusão entre
as palavras “esfinge” e “efígie”. O intelectual sugere, por tudo isso, a destruição destes três primeiros volumes: “Ora aproveitem lá a esfinge para mudar de revisor, guilhotinar estes três volumes inimigos da pátria e tratar da edição de Vieira como ela merece ser tratada...” Guilhermina Gomes assume o “erro” em relação “à esfinge” e garante que “ele será corrigido”, mas vê nas palavras de Vasco Graça Moura “uma intenção clara de destruir uma obra”. “Não se põe em causa um trabalho desta dimensão intelectual por causa de um erro como o dessa troca de
palavras.”
 (Público, 4.4.2013)

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