domingo, 29 de março de 2015

O Cherno Rachide

FEV 70 — Nascimento de Maomé, o profeta. Festejos natalícios da parte dos muçulmanos da Província. Às nove horas, na pista de aterragem, o cherno, chefe religioso dos muçulmanos, reza, acompanhado de grande multidão. Às dez horas, um cortejo de homens grandes tocando tambores, mocas e cantando, faz uma visita de cortesia junto ao bar de oficiais.
Chega entretanto o comandante do Batalhão, que recebe os cumprimentos. Um dos homens do cortejo dirige-se em fula ao Exmo. Tenente-Coronel Rocha Peixoto. Cantam, tocam tambores e retiram-se, deixando-nos na retina por largo tempo as compridas vestes brancas.
21FEV70 — Sou surpreendido dentro da minha tabanca pelos cantos monótonos da procissão do cherno.
À tarde estivemos no alpendre onde ele estava, de frente para a assembleia de homens grandes, sentados e descalços. Dois homens que vão sendo revezados sacodem o ar com dois panos na direcção do seu papa. Muitos fiéis o vêm cumprimentar. Descalçam-se, pegam-lhe a mão e esboçam uma vénia.
Há dez anos que não vinha a Mampatá. Veio por Áfia, Malibula, Caussara e esteve a rezar pela paz nas cinzas da extinta tabanca de Bácar Dado*. Antigamente, quando os caminhos eram francos, ia à República da Guiné. «Há lá mesquitas feitas pelo cherno» — diz-nos Baró. Ia também ao Senegal.
Quantos filhos tem? «sapoidjegó», 16, um deles, recentemente em Meca, cumprindo o preceito corânico.
Presentes os oficiais de 2.ª linha, alferes Aliú, de Mampatá, e tenente Baró, de Aldeia Formosa, este, um grande conversador.
O cherno, mais tarde, celebrou na mesquita e pernoitou aqui. No dia seguinte, pelas 15 horas, pôs-se a caminho para Quebo, com uma comitiva de cerca de cem pessoas.
*Grande distância, para os seus 64 anos.
(Ronco, Jornal do CIM, n.º 15, 15 de Março de 1970, p. 11)
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NOTÍCIAS DE BOLAMA
[…]
22JUL70
Recebemos a visita dos senhores deputados em visita pela Província. Na comitiva, o senhor capitão Andrade do P. F. A., o senhor deputado Pinto Leite, o senhor deputado Leonardo Coimbra, filho do filósofo português do mesmo nome, e o senhor deputado Pinto Bull, da Província da Guiné.
A comitiva tinha estado de manhã no sul e em Aldeia Formosa e vinha visivelmente bem disposta. Salientou-se imediatamente o bom espírito do senhor deputado Pinto Leite, que falava de Aldeia Formosa e do Cherno Rachide.
A notícia chegou dois dias depois da sua visita a Bolama. Um helicóptero perto de Teixeira pinto perdeu-se da formação.
A morte que não conhece horas nem pessoas estendeu-lhes o abraço violento dum tornado.
Foi assim que o destino imobilizou num desastre a alegria e vitalidade dos que havia pouco tinham estado connosco.
Foi uma desagradável surpresa.
Lembramo-nos ainda perfeitamente de todos os malogrados. Aqui fica o nosso pesar e o nosso recolhimento.

(Ronco, Jornal do CIM, n.º 23, 01AGO70, p. 3 e 20)


Está em Aldeia Formosa o homem de maior autoridade e prestígio entre os fulas da Guiné. A sua direcção espiritual é acatada bem além da fronteira portuguesa. É homem de aspecto simples, forte. Já o vi sentado no chão, com os homens-grandes à volta. Alguns falam, falam, falam; ele ouve e intervém na conversação, de vez em quando.
Vêm homens-grandes, mulheres, soldados, descalçam-se e cumprimentam-no. Pegam-lhe a mão e esboçam uma vénia. Ele é o maior, o sábio, o doutor, o santo. Ele é o CHERNO…
(A assembleia ocorreu em Mampatá, a 21FEV70)
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 A  CANÇÃO  DO  CHERNO  RACHIDE
Filhos amados, vosso pai Rachide
Uma regra de vida nos vai dar,
Segui-a com rigor e não tereis
Nada que lastimar.
Raparigas sabei que um homem espera
Encontrar na mulher três qualidades:
Respeito aos seus segredos, ao seu leito
E a todas as vontades.
A vós rapazes dou-vos um conselho
Que todo o sábio para si tomou
De outro, inda mais sábio, Logomane
Que outrora assim falou:
— «Deves ter fé em Deus que tudo vê
«E tudo pode acerca dos mortais
«Trabalha com ardor e serás útil
«A ti e aos demais.
— «Estuda e elevarás a tua alma
«que os livros bons te podem ensinar
«Muitas coisas formosas deste mundo
«e a Deus agradar.
— «A palavra, o alimento e o sono
«Como remédio deverás tomar:
«O bastante p’ra que o corpo não sofra
«Mas sem nunca abusar.
— «A boca é uma e as orelhas duas
«Isso te indica como proceder
«Usa o ouvido mais do que o falar
«E saberás viver.
— Em três partes o estômago divide
«P’ra comida só uma reservar
«As outras hão-de ser bem necessárias
«P’ra água e para o ar.

— «A noite é grande e não deve ser gasta,
«Do sol posto à manhã, toda a dormir,
«Destina parte dela à oração
«Terás feliz porvir.

— «Deves casar p’ra nunca cobiçares
«Mulher doutro. Não nego, o casamento
«Traz desgosto profundo.
«Mas se a fêmea procuras fora dele,
«Em vez desse desgosto terás dois
«Neste e no outro mundo.

Meus filhos, quem seguir estes conselhos
No decurso da vida há-de contar
Satisfações a esmo.
E maiores triunfos que o atleta
Que vença toda a gente nos torneios,
Pois vence-se a si mesmo.

«Esta canção entoada diariamente pelos seus alunos define Cherno Rachide»
(In Grandeza Africana, de Manuel Belchior)
[Em Ronco, Jornal do CIM, n.º 32, 1 de Janeiro de 1971, p. 25 e 26]

*** 
Grandeza Africana recolhe na língua portuguesa as quinze lendas que Manuel Belchior ouviu em Nova Lamego (Gabu Sara), onde chegou em Dezembro de 1961, da boca do régulo fula Alarba Embaló, que se mostrou um óptimo auxiliar.  
As primeiras lendas que vão seguir-se têm o seu cenário longe das fronteiras da nossa Guiné, no velho Mandem (foco original dos mandingas) ou no reino fula de Maciná, e os personagens nelas referidos viveram, segundo a cronologia estabelecida por escritores e viajantes árabes, nos séculos XIII, XIV e XV. Quanto às últimas, já se passam no nosso território ou nas regiões vizinhas e narram factos ocorridos no século passado.
As lendas do Mandem e do Maciná são património histórico e intelectual tanto dos mandingas e fulas da Guiné Portuguesa, como dos indivíduos das mesmas etnias que se espalham por vários estados africanos onde, se tomarmos os dois povos em conjunto, chegam nalguns casos a constituir a maioria das respectivas populações (Mali e República da Guiné) ou importantes minorias (Senegal, Nigéria, Camarões).
(Do PRÓLOGO do autor)

«A CANÇÃO DE CHERNO RACHIDE» é a última do livro e, tal como todas as que a antecedem, serve de título em capa à narrativa que segue, neste caso, antecedida por um POSFÁCIO, ou melhor, constitui a parte final do posfácio. Aqui, estamos na contemporaneidade. E imersos na tradição. Basta ver que a «canção do Cherno Rachide é na maior parte preenchida com os conselhos «Que todo o sábio para si tomou / De outro, inda mais sábio, Logomane / Que outrora assim falou:»








***
«Tive o privilégio de, com o meu Capítão (Eurico de Deus Corvacho), ser recebido, em Aldeia Formosa, pelo senhor Cherno Rachide, o chefe espiritual daquela zona que se estendia para além da fronteira (1).
Fiquei impressionadíssimo com o porte e as palavras sábias que nos dispensou. Na despedida apenas nos disse (em francês!!!): "Procurem não maltratar o meu povo".» (Palavras tiradas, daqui.)
Mais, sobre o Cherno Rachideo desastre do helicóptero; Não há solução militar disse Pinto Leite.
Obs.: Para aprofundar sobre a influência e o contexto do Cherno, pesquisar directamente em http://blogueforanada.blogspot.pt.

3 comentários:

  1. Olhando bem a foto, não tenho dúvida.É mesmo o Patrício.Você fez uma introdução ao meu primeiro texto para o RONCO. Procuro o contacto do "então" Cap. Matos, hoje Coronel na reforma.

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  2. Olhando bem a foto, não tenho dúvida.É mesmo o Patrício.Você fez uma introdução ao meu primeiro texto para o RONCO. Procuro o contacto do "então" Cap. Matos, hoje Coronel na reforma.

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    1. Estive a ler o texto a que se refere e acho que desenha bem a melopeia nostálgica da música e canções árabes ou muçulmanas que ouvíamos. Mais à noite, não? Essa toada que faz sonhar, rodar a mente, «Roda roda roda.
      Tudo roda por fim numa vertigem e tende a subir num remoinho e transforma-se agitando-se no espaço sideral. Lá em baixo a bola colorida que é a TERRA [...]»
      leva-nos numa transição sem darmos conta. Bem descrito...
      Há, pelo menos, um texto seu anterior a este:«AUA já tem nome».
      Vou ver se alguém tem o contacto.
      JL

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