terça-feira, 10 de novembro de 2015

PORTA DOS FUNDOS

Estive em Óbidos há pouco tempo, corria o Folio Festival Internacional Literário de Óbidos, e assisti a um espectáculo de Gregorio Duvivier. No palco, movimentava-se, com o seu livro seguro nas mãos, que ia lendo a uma velocidade superior à dos espanhóis a falar (ou espanholas?). Pareceu-me, além da «performance», tão bem escrito e uma escrita nova... Fiquei logo com vontade de o ler, porque nos sentimos diante de uma expressão ágil que espelha o que existe. Somos levados no fluxo do convívio, das ruas, numa onda de que fazemos parte, acompanhando os pensamentos, os diálogos. Somos. Vamos. A pergunta, a dúvida, a opção, a deriva, o estar a caminho de um lugar, ser reclamado por outro, interrupção, dispersão, várias coisas a solicitar em direcções opostas, as várias possibilidades de comunicação/prisão da internet, do telemóvel. Nunca se fica para trás. Nem se pára, ou mal se pára. Para onde vamos? «então vamos todo o mundo pra pizzaria guanabara, não, pra-pizzaria-guanabara-não, vamos-sim, não-vamos-não, por que é que a gente veio parar na pizzaria guanabara?» [Sábado]
Quando Duvivier fazia uma breve pausa, aplaudíamos; mesmo só percebendo as coisas pela metade, o sentido impunha-se claramente. Palavras de português e inglês justapostas, situações não bem nossas conhecidas, gentes e coisas variadas, desconhecidas até. A maneira rápida de falar quer acentuar a pressa existencial. Isto que pretendo transmitir sente-se já na leitura de alguns textos.

Hoje recebi via facebook um diálogo, sobre a «Biblioteca». Um assombro. Daí, no youtube, cheguei à cena «Reunião de Criação». Que qualidade! E não é que, no fim, o anúncio é mesmo bom?




Gregorio Duvivier integra o elenco do programa PORTA DOS FUNDOS. Desconhecia, tanto o artista e escritor, como o programa. CAVIAR é uma ova  é uma edição TINTA-DA-CHINA, Lisboa,  MMXV.

*

De CAVIAR é uma ova, ao acaso:

Pardon anything

Hello, Gringo! Welcome to Brazil. Não repara a bagunça. Don't repair the mess. In Brazil we give two beijinhos. Em São Paulo, just one beijinho. If you are in Minas, it's three beijinhos, para casar. It's tradition. If you don't give three kisses, you don't marry in Minas. In the other places of Brazil, you can give how many kisses you want. In rio, the beijinho is in the shoulder.
The house is yours. Fica à vontade, Qualquer coisa é só gritar. Shout. Mas keep calm. como é que se fala keep calm em inglês? Here the things demoram. [...] [...]
Never say you are a gringo. Yes, people love gringo but people also love money and gringos have money so people vai cobrar de você mais money because you are a gringo. Say you are from Florianópolis. People de Florianópolis look like gringo and they have a strange sotaque igual like you. People will believe you are from Florianópolis. [...] [...]
This cup passed really fast. Volte sempre. Come back always! Fica lá em casa. We are family now. You like that? You can keep it. It's your. Faço questão. I make question. Go with god and desculpa qualquer coisa. Pardon anything.

Calma, Cláudio

Calma, Cláudio. Eu te amo do jeito que você é. Só queria que você fosse um pouco mais parecido comigo. Eu sei que você é você e eu sou eu. Mas eu preferia que você fosse um pouco mais eu e menos você. Seria mais fácil para mim. Já tô acostumada a lidar comigo. Quase não brigo comigo mesma. Quando brigo, esqueço rápido. Eu me perdoo com muita facilidade, Cláudio. Se você fosse eu, iria te perdoar rapidinho.
Calma, Cláudio. Eu te amo do jeito que você é. Mas é que você ficou tão igualzinho a mim. E de mim já basta eu. Eu já não tenho paciência para mim. Vou ter pra você? Eu sei que você também não prestava quando você era aquela outra pessoa tão diferente de mim. O que eu queria é que você fosse um meio-termo entre eu e aquela outra pessoa que você era. Nem oito nem oitenta, Cláudio.
Calma, Cláudio. é que assim você ficou meio-termo demais. Eu só queria que você fosse uma pessoa menos meio-terma, uma pessoa menos menas, e fosse uma pessoa mais mais, mais muito, mais muito mais. Eu sei que eu disse nem oito nem oitenta, Cláudio, mas eu estava pensando em oitocentos. Oitocentos e oitenta e oito, Cláudio. Pode ser?
[...]  [...]

Aquele que não pode ser nomeado

FILHO  Porra, pai, me dá um Xbox, pelo amor de Deus.
PAI  Filho, cuidado pra não usar essa palavra.
FILHO  Porra?
PAI  Não, a outra.
FILHO  Xbox?
PAI  Não, você falou pelo amor de...
FILHO  Deus.
PAI  Isso. Não pode. Na nossa religião.
FILHO  Mas e quando eu quiser falar Dele?
PAI  Tem que usar uma expressão, tipo aquele-que-não-pode-ser-nomeado.
[...]  [...]
FILHO  Graças a Deus. Desculpa. Isso é por que mesmo?
PAI  Porque Ele não cabe numa palavra.
FILHO  Mas coube agora na palavra Ele.
PAI  Ele não gosta de nomes próprios.
[...]  [...]

Chega a MÃE.
MÃE  Tá falando de quem?
Pai  aponta pra cima.
MÃE  O vizinho do 501?
PAI  faz que não. Faz mímica de barba.
MÃE  Lula. Fidel. Los Hermanos.
PAI  faz que não.
FILHO  Mãe, começa com D.
MÃE  Dilma. David Brazil.
PAI faz símbolo pra cortar.
MAE   Corta! Di Dá. Dê?
PAI faz que sim.
MÃE  Dê. Demónio?
PAI  Quase.
MÃE  Feliciano.
PAI  O contrário.
MÃE  Deus.
FILHO.  Shhh.

*

É a terceira vez que vem a Portugal e é a terceira vez que se surpreende. Nunca viu um país tão engraçado. No capítulo O sangue que corre em nossas veias, trata-nos com simpatia. Para os brasileiros — diz — estamos na fase dois: meu pai é a pior pessoa do mundo.
«Adoramos creditar a culpa do nosso atraso civilizatório à herança portuguesa: chegamos ao ponto de inventar o mito da burrice lusitana — e muita gente acredita nele.» [...] [...] «Acreditamos ser a soma das escórias africana, indígena e europeia, e isso justifica nosso atraso.
«Melhor mesmo seria crescer e chamar a responsabilidade do suposto atraso para si, fugindo do determinismo genético. Mas, mesmo que a gente não conseguisse escapar do que estaria escrito no sangue que corre em nossas veias, talvez fosse o momento de procurar nele a educação, o afeto, a poesia, a cultura, a profundidade e o humor lusitanos.
Temos muito que aprender com nossos pais - só precisamos fazer um pouco de psicanálise.»

*
Algumas partes suprimidas, podem ser melhores que as transcritas, por exemplo, em «Pardon anything», quando fala em moqueca, açaí, chicken que chamam «à passarinho», ovo, banana e «put some farofa», «put some farofa». Se não conhece farofa, «You know nothing, you innocent». E o resto. Tudo o que suprimimos.


2 comentários: