terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Antunes da Silva

ESTOU A LER...

SUÃO
Há muito que queria ler este livro de Antunes da Silva, por causa do poeta popular Jaime Velez, o Manta Branca, Cano, concelho de Sousel; com grande prestígio na região de Estremoz. Era um maltês, sinónimo de vida errante, sem trabalho muitas vezes, trabalhando outras. Tinha mulher. Uma das suas mais famosas décimas, a das «açordas sem azête», comida de «quem produz e quem trabalha», sabia eu que tinha tido guarida em SUÃO, de Antunes da Silva. 72/73 foi o ano em que, com o amigo professor, Francisco dos Santos Rodrigues, persistentemente procurámos conhecer e ouvimos, sobretudo em Santa Vitória do Ameixial, terra do Chico, homens da(s) aldeia(s) a declamar décimas. Na recordação deles, e no respeito, o Jaime (faleceu em 1955) era figura maior. Às vezes, o Dr. António Simões acompanhava-nos. 

Também em CERROMAIOR, de Manuel da Fonseca, se não no livro, pelo menos no filme com o mesmo nome*, aparece a cena do ganhão a dizer os versos hostis ao patrão, o «mão negra», e seus convidados. 

Talvez tenha havido prevenção da minha parte contra um certo activismo jornalístico de Antunes da Silva, de que mais ou menos incertamente ia tendo notícia. A verdade é que... Se é bom, é bom. Chegou a hora deste e de outros livros deste autor, para mais, de Évora. Assim que acabar SUÃO, direi mais qualquer coisa. Vejamos, por hoje, somente a passagem em que o «Pouca Lã», encharcado até aos ossos,  é  «empurrado» pelo Dr. Maldirro para dizer os versos (págs. 87 a 93).
* ... de Luís Filipe Rocha, 1980.

***

-- Vamos lá ouvir esses versos, pá! Ou tás bêbado?...

Poucos gostaram da gracinha e logo todos se calaram, quando o ganhão, olhando o provoador e abrindo os braços, repetiu:
 -- Lá vai décima, mê povo!
Fixou o tecto da casa e de repente atirou a vaia, no seu sotaque mourisco:

Quer então esta gentinha
     Que eu com graças e deleite,
    Mas só dão a quem trabalha 
Uma açorda sem azeite...

Os que fitavam o «Pouca Lã» por curiosidade, e aqueles que o olhavam por chacota nem aplaudiram, nem censuraram versos tão arrebatados. [...] [...] O Dr. Maldirro, esse, está abrindo os olhos, rangendo os dentes, [...] [...] Mas, num lapso de segundo, compreende que é preciso compor o ambiente:
-- Outra décima, rapaz, tu hoje não estás bom!...
[...]  [...]  [[«Pouca Lã» vai dizer versos, mas...]] Olha novamente para o tecto, olha para o lado, a puxar os versos, e, num relance, vê cães a comer os restos da caça da manhã, bocados de abetarda, lebres, perdizes, narcejas, etc. Então, é como se tivesse visto o demónio. Já não quer saber de festas, nem de árvores, nem de bichos. Agarra na samarra com as duas mãos e arrebenta toda a loucura do seu pobre coração de abandonado:

      Quem me dera ser rafeiro
Da matilha do patrão,
    Pra dormir em fofa cama
     E não ter mesa sem pão!...

Todos ficaram calados. Nem palavras, nem gargalhadas. Todos ficaram calados e, só passados uns bons segundos de expectativa, o Dr. Maldirro ordenou, numa voz que já não era a sua:
-- Vai-te, galdério! Some-te, amanhã fazemos contas!
E olhou o Rui da Penha. E olhou o Lúcio e o Marcos da Cruz... 
[...] [...]

***





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