Estive em Óbidos há
pouco tempo, corria o Folio — Festival Internacional Literário de Óbidos, e assisti a um
espectáculo de Gregorio Duvivier. No palco, movimentava-se, com o seu livro
seguro nas mãos, que ia lendo a uma velocidade superior à dos espanhóis a falar
(ou espanholas?). Pareceu-me, além da «performance», tão bem escrito e uma
escrita nova... Fiquei logo com vontade de o ler, porque nos sentimos diante de
uma expressão ágil que espelha o que existe. Somos levados no fluxo do
convívio, das ruas, numa onda de que fazemos parte, acompanhando os
pensamentos, os diálogos. Somos. Vamos. A pergunta, a dúvida, a opção, a
deriva, o estar a caminho de um lugar, ser reclamado por outro, interrupção,
dispersão, várias coisas a solicitar em direcções opostas, as várias
possibilidades de comunicação/prisão da internet, do telemóvel. Nunca se fica
para trás. Nem se pára, ou mal se pára. Para onde vamos? «então vamos todo o
mundo pra pizzaria guanabara, não, pra-pizzaria-guanabara-não, vamos-sim,
não-vamos-não, por que é que a gente veio parar na pizzaria guanabara?» [Sábado]
Quando Duvivier fazia
uma breve pausa, aplaudíamos; mesmo só percebendo as coisas pela metade, o
sentido impunha-se claramente. Palavras de português e inglês justapostas,
situações não bem nossas conhecidas, gentes e coisas variadas, desconhecidas
até. A maneira rápida de falar quer acentuar a pressa existencial. Isto que
pretendo transmitir sente-se já na leitura de alguns textos.
Hoje recebi via
facebook um diálogo, sobre a «Biblioteca». Um assombro. Daí, no youtube,
cheguei à cena «Reunião de Criação». Que qualidade! E não é que, no fim, o
anúncio é mesmo bom?
Gregorio Duvivier integra o elenco do programa PORTA DOS FUNDOS. Desconhecia, tanto o artista e escritor, como o programa. CAVIAR é uma ova é uma edição TINTA-DA-CHINA, Lisboa, MMXV.
*
De CAVIAR é uma ova, ao acaso:
Pardon anything
Hello,
Gringo! Welcome to Brazil. Não repara a bagunça. Don't repair the mess. In
Brazil we give two beijinhos. Em São Paulo, just one beijinho. If you are in
Minas, it's three beijinhos, para casar. It's tradition. If you don't give
three kisses, you don't marry in Minas. In the other places of Brazil, you can
give how many kisses you want. In rio, the beijinho is in the shoulder.
The
house is yours. Fica à vontade, Qualquer coisa
é só gritar. Shout. Mas keep calm. como é que se fala keep calm em inglês? Here the things demoram.
[...] [...]
Never
say you are a gringo. Yes, people love gringo but people also love money and
gringos have money so people vai cobrar de você mais money because you are a
gringo. Say you are from Florianópolis. People de Florianópolis look like
gringo and they have a strange sotaque igual like you. People will believe you
are from Florianópolis. [...] [...]
This
cup passed really fast. Volte sempre. Come back always! Fica lá em casa. We are
family now. You like that? You can keep it. It's your. Faço questão. I make
question. Go with god and desculpa qualquer coisa. Pardon anything.
Calma, Cláudio
Calma, Cláudio. Eu te amo do jeito
que você é. Só queria que você fosse um pouco
mais parecido comigo. Eu sei que você é você e eu sou eu. Mas eu preferia que
você fosse um pouco mais eu e menos você. Seria mais fácil para mim. Já tô
acostumada a lidar comigo. Quase não brigo comigo mesma. Quando brigo, esqueço
rápido. Eu me perdoo com muita facilidade, Cláudio. Se você fosse eu, iria te
perdoar rapidinho.
Calma, Cláudio. Eu te amo do jeito
que você é. Mas é que você ficou tão igualzinho a mim. E de mim já basta eu. Eu
já não tenho paciência para mim. Vou ter pra você? Eu sei que você também não
prestava quando você era aquela outra pessoa tão diferente de mim. O que eu
queria é que você fosse um meio-termo entre eu e aquela outra pessoa que você
era. Nem oito nem oitenta, Cláudio.
Calma, Cláudio. é que assim você
ficou meio-termo demais. Eu só queria que você fosse uma pessoa menos
meio-terma, uma pessoa menos menas, e fosse uma pessoa mais mais, mais muito,
mais muito mais. Eu sei que eu disse nem oito nem oitenta, Cláudio, mas eu
estava pensando em oitocentos. Oitocentos e oitenta e oito, Cláudio. Pode ser?
[...] [...]
Aquele que não pode ser nomeado
FILHO Porra, pai, me dá um Xbox, pelo amor de
Deus.
PAI Filho, cuidado pra não usar essa palavra.
FILHO Porra?
PAI Não, a outra.
FILHO Xbox?
PAI Não, você falou pelo amor de...
FILHO Deus.
PAI Isso. Não pode. Na nossa religião.
FILHO Mas e quando eu quiser falar Dele?
PAI Tem que usar uma expressão, tipo
aquele-que-não-pode-ser-nomeado.
[...] [...]
FILHO Graças a Deus. Desculpa. Isso é por que mesmo?
PAI Porque Ele não cabe numa palavra.
FILHO Mas coube agora na palavra Ele.
PAI Ele não gosta de nomes próprios.
[...] [...]
Chega a MÃE.
MÃE Tá falando de quem?
Pai
aponta pra cima.
MÃE O vizinho do 501?
PAI
faz que não. Faz mímica de barba.
MÃE
Lula. Fidel. Los Hermanos.
PAI
faz que não.
FILHO Mãe, começa com D.
MÃE Dilma. David Brazil.
PAI faz símbolo pra cortar.
MAE
Corta! Di Dá. Dê?
PAI faz que sim.
MÃE Dê. Demónio?
PAI Quase.
MÃE Feliciano.
PAI O contrário.
MÃE Deus.
FILHO. Shhh.
*
É a terceira vez que vem a Portugal e é a terceira vez que
se surpreende. Nunca viu um país tão engraçado. No capítulo O sangue que corre em nossas veias,
trata-nos com simpatia. Para os brasileiros — diz — estamos na fase dois: meu
pai é a pior pessoa do mundo.
«Adoramos creditar a culpa do nosso atraso civilizatório à
herança portuguesa: chegamos ao ponto de inventar o mito da burrice lusitana —
e muita gente acredita nele.» [...] [...] «Acreditamos ser a soma das escórias
africana, indígena e europeia, e isso justifica nosso atraso.
«Melhor mesmo seria crescer e chamar a responsabilidade do
suposto atraso para si, fugindo do determinismo genético. Mas, mesmo que a
gente não conseguisse escapar do que estaria escrito no sangue que corre em
nossas veias, talvez fosse o momento de procurar nele a educação, o afeto, a
poesia, a cultura, a profundidade e o humor lusitanos.
Temos muito que aprender com nossos pais - só precisamos
fazer um pouco de psicanálise.»
*
Algumas partes suprimidas, podem ser melhores que as
transcritas, por exemplo, em «Pardon anything», quando fala em moqueca, açaí,
chicken que chamam «à passarinho», ovo, banana e «put some farofa», «put some
farofa». Se não conhece farofa, «You know nothing, you innocent». E o resto.
Tudo o que suprimimos.