quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Mais Agustina

15 de Outubro
Agustina
A extinção da literatura. Parece graça, mas não é. É Agustina quem o diz. Afirma, no entanto, que a literatura vai ter de se unir à ciência, para sobreviver. Ela mesma diz que escreve como um cientista ou aproximando-se do cientista, pois procura saber e explicar. Extinguir-se a literatura seria como extinguir-se o ar.
Agustina não escreve para os leitores. Diz o que tem a dizer. Escreve para si. Nem isso. Escreve; o «para si» é o primeiro leitor? Tudo vem do vivido recordado por ela, no seu moinho. Moleira de palavras, a quem não falta inspiração, sem crises. Mói, sempre. Gosta de ser lida. Gosta das pessoas que lhe falam na rua e também gostam dela, mesmo sem a ler.
É alegre e criança, quando o moinho pára. Quando pensa e olha o mundo, a natureza, analisa, retraça, corta, disseca, é também alegre? Apesar de tudo, sim. Mesmo se a sentença final sobre a humanidade é desagradável e, por isso, a guarde para si. Não perde a alegria, apesar desta coisa que que lhe vem do imo, para falar como Bernardo Sanches, logo ao começo de A Sibila.
A reputação de Agustina já era universal, mas quando li O Manto, confesso que tive de me aplicar para concluir a leitura. Parecia um bocado entediante todo aquele pormenor do universo feminino (talvez, não só, mas é o que recordo), num circuito limitado, fechado, pessoas enclausuradas também em si mesmas? Já anteriormente ao ler a biografia de Santo António não deixei de notar a progressão interminável da narração, sem os habituais capítulos. Veio a propósito falar de Agustina a um amigo em encontro no restaurante «Retiro do Mocho», nos Foros do Mocho, em Montargil. Era um encontro de amigos de juventude que vieram de Lisboa e de mais alguns que a vida depois deu a conhecer. Tive a sorte de ter estado presente. Ora dizendo eu à pessoa que acabei de referir, bem conhecido no país como cidadão, professor, historiador, dizendo eu da dificuldade em ler Agustina, ouviu-me alguns segundos com a paciência do dialogante, e com um gesto da mão que se levanta expressiva, encerrou a questão:
-- É uma grande escritora!
Vejo, agora, olhando para trás, semelhança daquele mundo de O Manto com o universo de Raul Brandão. De Húmus. Com Raul Brandão, diga-se, fui mais feliz. Talvez, mais preparado mentalmente. Nunca tive dúvidas.
*
Pode-se começar por visionar os documentários ou videobiografias de Agustina e abrir outras hiperligações fornecidas, abaixo, especialmente, O Mundo de Agustina e Agustina Bessa-Luís: Nasci Adulta e Morrerei Criança. Isso é o que nunca se deixará de fazer, para ter o melhor proveito e fruição. Entretanto, deixo frases de cada um dos documentários, como se fossem cantarias para uma construção. São «figuras de convite», como as que nos esperam em silhares de azulejos, à entrada de palácios e solares. Convidam a entrar. Não se trata de resumo, porque o de que se trata é irresumível. O que ficou por mostrar é tão válido, como o que se transcreveu.


Documentário de 11 min. e 49 seg.

As primeiras palavras de Agustina são de 2004, Programa Diga lá, Excelência, 27-6-2004:
«É muito importante a dificuldade. É muito importante. Os passos devem ser dados, lentamente, e a pessoa sentir que... que... que não é fácil escrever..., como não é fácil viver!, não é?»
 (Agustina Bessa-Luís, «Diga lá, Excelência» - 27-6-2004.)

«Todo o ano, só trabalhava três meses. Mas, trabalhava a sério, como um operário.» Em três meses, escrevia um romance de trezentas páginas. (1 min. e 45 seg.) (O marido.)
A letra de Agustina. A letra pequena e a letra maior. Tem fases. (2min e 50 seg.) (O marido) A letra miudinha e a letra maior (A filha) (2min. e 58 seg.) «No manuscrito é que ela está autenticamente o que é.» (O marido) (3 min. 15 seg.)

«Eu calculo que os inéditos da Maria Agustina darão entre doze a quinze volumes.» (A. Luís) (5 min. 20 seg.)
«Eu tenho uma maneira de ver os inéditos um bocadinho diferente, porque, se a minha mãe não os publicou é porque, de certa maneira, achou que não eram necessários ou que não eram oportunos. E virem, agora, aparecer os inéditos, a mim, faz-me um bocadinho de impressão. Porque..., eu acho que há sempre uma parte de nós que deve ficar inédita. Porque não?» (A filha) (5 min. e 21 seg.)

-- Nunca escreveu em papel de linhas?
-- Não! Era muito raro..., era muito raro aparecerem coisas em papel de linhas. (Alberto Luís) (7 min. e 48 seg.)

«Eu nasci escritora. E tenho o gosto da escrita, escrevo por prazer; tenho prazer em escrever e depois vem, aí, realmente, a relação com o público, não é!?, mas antes disso, há uma relação comigo mesma e com todos esses meus fantasmas, que são as memórias.» (Agustina) (8 min. e 25 seg.)
«Eu acho que a mãe sempre teve os mesmos personagens... E muitos deles, a família.» (A filha). (8:45)

«Não. Ela nunca se preocupou muito com os leitores..., e eu também não.» (Alberto Luís) (9:07)

«A mãe sempre gostou do espaço fora, mas sempre foi muito uma mulher de dentro.» (A filha) (9 min. e 36 seg.)

O gato, um personagem importante dentro duma casa (para Agustina). (A filha) (9 min. e 50seg.)

«Fomos apanhados numa rua, assim, ela e eu, no dia em que nos conhecemos...» (O marido, com o álbum aberto, em que a mesma fotografia é reproduzida várias vezes, em dimensões diferentes -- uma vez, recortada. (10 min. e 39 seg.)

«Como é que eu posso dizer que ela está? Eu acho que está bem. Está bem. Está perfeitamente tranquila..., perfeitamente lúcida em relação ao que a rodeia e ao seu próprio estado e num estado de tranquilidade absoluta; o que é muito bom para nós, porque a sentimos como se ti..., sabe o que é que eu às vezes..., olho para ela e sinto como se tivesse cumprido. Até agora, cumpriu a sua vida, o seu, a sua tarefa. Agora, está descansada.» (10 min. e 49 seg.)

(Entrevistas: Maria João Costa;
Imagem e Edição: Joana Beleza -- Rádio Renascença
r/com 2012)


*
(56 min. 55 seg,)

A criança a saltar à corda, recorrentemente.

Esse gesto vê-se na espantosa (ex)pressão da letra e sobretudo nas pernas das letras, digamos, na parte inferior das letras, nas entrelinhas, e nas barras de tt. As entrelinhas revelam o temperamento dela, que é um temperamento sanguíneo, é uma emotividade moderada, uma extraordinária actividade e uma primariedade no temperamento. (Alberto Vaz da Silva, intérprete de escritas)

E das raras pessoas a que(m) eu nunca ouvi dizer nada que fosse um lugar comum ou uma banalidade. (João Bénard da Costa)

Ela é muito alegre, tem coisas muito inesperadas… (Isabel Oliveira)

É. É imprevisível. (Laura Mónica Baldaque)

Ela própria tem sempre uma distância irónica em relação a tudo, por mais trágico que seja… (Pedro Mexia)

Se eu disser que existe uma certa perversidade, ela dirá que o que ela tem é uma inocência absoluta. (Eduardo Prado Coelho)

E é, não direi perversa, mas é vulcânica, é subterrânea. Tudo vem..., aquilo..., explosivo. (Manoel de Oliveira)

É muito capaz de identificar a verdade e a falsidade nas pessoas com um olhar. (Inês Pedrosa)

Quando se ri, não é!?, ela ri-se como uma criança. (Eduardo Lourenço)

E eu sou uma pessoa alegre e… sou uma pessoa…, e isso não é por ser escritora, nem tem nada que ver com a escrita. É uma, é um temperamento. Um temperamento de pura, de pura gratidão para com a vida e com tudo o que me rodeia. Eu falo sozinha!...., eu falo com coisas inanimadas, eu falo com a gata, eu falo com… (Agustina)

Laura Mónica Baldaque, ilustrou (alguns?) livros da mãe. É conservadora de museu e pintora.
«Eu não me levo muito a sério. É a melhor maneira de viver. Aquele que se leva a sério está sempre numa situação de inferioridade perante a vida.» (No ecrã, sobre o rosto de Agustina, que ri)
«Eu gostava de estudar Direito, mas isso parecia uma tarefa excêntrica.»
«…    … de resto, eu tive sempre pelo Porto uma certa fascinação.»
O anúncio para casar — Inês Pedrosa, Bénard da Costa, Isabel de Oliveira, a filha, Eduardo Prado Coelho. «E foi uma atitude, como se viu, bastante sensata. Continua casada até hoje, com Alberto Luís» (Inês Pedrosa) «Tem sido, realmente, uma ajuda preciosíssima, o meu pai..» (A filha)
Casou-se em 1944, com 22 anos.
— Eu fui vestida de preto, fui vestida de preto, com um colar de pérolas que a minha mãe me deu, era dela, e…, mas não havia de acordo, nem da parte do meu marido, porque ele era estudante, nem da parte dos meus pais, também porque eram…, não auguravam grande coisa de um casamento… tão novos e sem futuro, não é? E de maneira que

«Pus um anúncio
para ter
correspondência
com uma pessoa
inteligente e culta.
Era mais um desejo
literário,
no fim de contas.»
(Lê-se no ecrã, 15 min. e 10 seg.)


casei às cinco horas na igreja de Cedofeita, que não era aquela que estava, era uma que estava por concluir e estava como testemunhas o meu irmão e uma prima minha. E o padre, muito pasmado…, eu acho que ele já está lá no outro mundo, mas continua pasmado, com aquele casamento. — Nem um táxi à porta! — dizia ele. — Nem um táxi à porta… — E, depois, dali, fomos tomar um chá para uma…, para uma…, Confeitaria do Bulhão, que era uma boa confeitaria… Estava deserta. E a certa altura passou um rato, dum lado para o outro. Também ficou curioso com certeza, com o que se passava.
— A mãe, acho que fez a escolha certa. Acho que sim. […]

Mundo Fechado, em 1944.

A carta a Teixeira de Pascoaes, pedindo opinião sobre o Mundo Fechado. A resposta de Pascoaes, que só chegou dois anos após a morte do poeta.

Amarante 2 Jan. 1950

Minha muito ilustre camarada!

Peço-lhe perdão, de joelhos, de não ter agradecido já a sua gentilíssima oferta do Mundo Fechado. Li-o duas vezes, que eu desconfio sempre da minha primeira leitura; que é raro coincidir com a segunda. Ou me causa uma impressão melhor ou pior. Com a sua admirável novela, na segunda leitura, foi melhor a impressão recebida. Feriu-me, sobretudo, no desenho nítido das paisagens, a figura esboçada do personagem principal. Nisto reside o maior merecimento da obra! O sêr humano, porque é vivo, é indefinido, perante as cousas mortas ou simplesmente animadas. Este contraste, tão eloquente! No seu livro, porque faz resultar a verdade que vislumbramos no panorama do mundo, feriu-me, repito, duma maneira muito especial e original! Trata-se duma escritora de raça, dotada de excepcionais qualidades visionárias ou dotada de um instinto do real. Sem este instinto há só literatura e mais nada. Se os românticos excederam a realidade, caindo na falsidade, os chamados naturalistas cometeram o pecado contrario, e tornaram-se inferiores à natureza. A autora do Mundo Fechado, não praticou esses erros. E, por isso, a felicito com o maior entusiasmo!

                                           Teixeira de Pascoaes

(Palavras não lidas no documentário: a verde, palavras que li nas imagens reproduzidas no ecrã; a castanho, texto acrescentado, segundo a CARTA DE TEIXEIRA DE PASCOAES, que se pode ler completa, aqui, 13 de Maio de 2012. Algumas palavras, na carta acima transcrita, foram apenas ouvidas.)


Foi feliz em Esposende, onde esteve quatro anos. De Esposende para o Porto. Esteve para ir para França, com o apoio da Vieira da Silva. «Eu, hoje, seria uma grande escritora francesa.» O filme Vale Abraão teve influência no conhecimento pelos franceses da obra de Agustina.
O filme O Convento. «Ela gosta é do livro..., que é dela; não do filme..., que é meu.» (Manuel de Oliveira).
Sobre A Alma dos Ricos: teve discussões terríveis com Manoel de Oliveira.
A Agustina Bessa-Luís declarou num colóquio: «Entre os filmes de Manoel de Oliveira e os meus livros existe uma grande diferença: é que o Manoel de Oliveira filma filmes de amor, e eu, o amor não entra nos meus romances.» (Eduardo Prado Coelho, 32 min. e 39 seg.)
O cinema. Sempre gostou muito de cinema. O pai tinha um cinema no Porto.
As relações humanas, os equívocos das relações humanas, as relações homem-mulher, mas não só; as relações de amizade, as relações de poder. (I. P.)
A dimensão sexual existe. O sexual existe, por vezes até com exuberância. Essa dimensão sexual existe, forte, só que não é integrada nem no amor nem na paixão nem na família. (EPC)

… uma infindável divagação. (JBC)
«[...] o Porto foi uma cidade de grandes bordadeiras.» (Ag., 50 min.)
«Gosta dela. em primeiro lugar, gosta dela. Em segundo lugar, gosta dela, em terceiro lugar, gosta dela. E gosta dela, bem vestida.» (A filha)
«O amor das pessoas, sim, deixa-me feliz. De pessoas que nem me lêem, que não, nem teriam... conhecimentos suficientes para ter agrado na minha leitura ou que não lêem nada, não é? mas, essas pessoas... gostam muito de mim. elas próprias não sabem porquê.»
«É curioso, porque há essa dupla faceta duma, de alguém que é muito, de alguém que é muito cruel no que escreve e no retrato que dá das pessoas e da natureza humana e duma pessoa que é afável no trato pessoal.» (PM)
Quando escreve tem uma atitude quase científica. Precisa de conhecer, de saber, de explicar. «Qualquer cientista sabe isso. Ninguém vai dizer a um cientista que é cruel, por fazer a dissecação duma rã, por exemplo..., e é cruel.» (Ag.)

Como ela olha para o mundo, estando fora dele?
«Como se fosse, ela própria o dizia, a menina do milagre, a quem nada acontece, a quem nenhuns lobos virão incomodar, que dá à Agustina essa espécie de humanidade de quem ao mesmo tempo está fora deste mundo.» (EPC)
-- O homem necessita da crueldade, porque necessita da culpa, necessita culpar-se, para da culpa ser um criador. Porque é que o homem é violento, porque é que o homem gosta da guerra, porque é que o homem se manifesta, através dos séculos e dos milénios, duma maneira tão, enfim, tão agressiva, eu tenho a resposta para isso, mas como não é uma resposta que tenha consolação, eu prefiro guardá-la para mim.

É como a criança a saltar à corda. Sente-se bem no mundo, não se sente ameaçada por nada... A imagem da criança a saltar à corda ao longo do documentário tem aqui a sua explicação.

-- Eu sou aquela criança que me saiu e que me se sente bem no mundo. Sinto-me bem no mundo, não me sinto ameaçada por nada, absolutamente por nada.

«Nasci adulta e morrerei criança» -- Agustina Bessa-Luís

*
[...]
Consultoria/Entrevista a Agustina Bessa-Luís
                                                Anabela Mota Ribeiro
Jornalista/Guião
                 Anabela Almeida
Realização: António José de Almeida
PRODUÇÃO
2005
RTP

*

ANTOLOGIA MÍNIMA

A família do Paço

O avô Teixeira, com todo o ar dostoiewskiano, casou em Março de 1867 com Justina, filha de José bento de Bessa, do Lugar do Barral. Ele tinha 41 anos quando casou e ela 28, idade que, para uma noiva, era já um pouco avançada, nesse tempo. Explica-se isso porque Justina ficara enamorada desde os sete anos por José, com 20 anos, quando ele a ajudou a passar um ribeiro em dia de invernia e lhe disse que se casaria com ela, um dia. Esse dia chegou a 3 de Março de 1867. O casamento durou 35 anos, sem que se apagasse nunca a memória do amor da infância e o espírito duma união em que os elementos tiveram a sua parte mais sensível. É possível que fosse em Março que se viram pela primeira vez. Como em Março nasceram quatro dos seis filhos.
O rapazinho à direita é o meu pai, Arthur Teixeira de Bessa, que foi para o Brasil aos doze anos, por efeito da ruína da casa de lavoura, e duma questão perdida em tribunal. Amélia, que foi o modelo para a Sibila, tinha dezassete anos quando o irmão partiu para o Rio de Janeiro, onde esteve vinte e cinco anos e fez fortuna considerável. Uma parte da Rua do Ouvidor pertencia-lhe. Eram tempos airosos de fantasia pura para quem se fazia ao mundo. Eu tive que abrandar o espírito de aventura e do sabor do ganho não tirei partido. Porém, gosto do triunfo que, para ser desculpado, se diz que é aprovação de Deus.
Meu avô Teixeira era perdulário, valente, amava as mulheres, o que é mais do que as desejar. Tinha por elas um respeito gracioso e sem adulação. Elas adoravam-no e faziam bem. Que há poucos homens que saibam amar as mulheres e merecê-las.
(De O Livro de Agustina Bessa-Luís, Lisboa, Guerra e Paz, Editores, 2007. 1.ª edição, 2002, Três Sinais, Lisboa, p. 11 e 12. Na pág. 10, a fotografia referida neste texto, que abre o livro.)


*

Não quero dizer que não tenha prazer em construir bem um texto, mas o que melhor eu gosto de fazer é uma história quase seca e sugerida por uma série de palpites e não pelo conhecimento da pessoa. Como Um Inverno Frio, um dos melhores contos que escrevi até hoje. Se tudo o resto se perdesse, como nas cheias do Capibaribe, no Recife, bastava que esse conto ficasse para me qualificar.
(Agustina, em O LIVRO DE AGUSTINA BESSA-LUÍS, ed. citada, p. 94.)

Um Inverno Frio





(Colóquio Letras, n.º 16, Novembro, 1973)

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A Sibila

I

-- Há uma data na varanda nesta sala -- disse Germana -- que lembra a época em que a casa se reconstruiu. Um incêndio, por alturas de 1870, reduziu a cinzas toda a estrutura primitiva. Mas a quinta é exactamente a mesma, com a mesma vessada, o mesmo montado, aforados à Coroa há mais de dois séculos e que têm permanecido na sucessão directa da mesma família de lavradores.
-- Uma espécie de aristocracia ab imo. -- E Bernardo riu-se, cheio duma ironia afável e quase distraída; tirou do nariz as lunetas, muito maquinal, colocou-as de novo, ajustando as molas de ouro nos vincos que pareciam o sinal das unhadas, e, com um piscar precipitado como quem bruscamente transita da obscuridade para a luz, disse ainda -- «Ab imo, da terra...», pois ele considerava a cultura como um privilégio pessoal, e nunca perdia a oportunidade de se mostrar generoso, transmitindo-a. Pertencia ele ao ramo da família que do capitalismo ascendera ao posto imediato da intelectualidade e nisso fixara uma aristocracia. Pois que é a aristocracia serão o degrau mais alto que uma sociedade deseja atingir, a supremacia de determinada classe sobre as outras, a imposição dos seus valores, sejam eles de força, de trabalho, de espírito, conforme a época que lhes é propícia? A família de Bernardo Sanches tinha atingido um estado aristocrático, o que quer dizer que estacionara no cumprimento de determinada herança de hábitos, frases, opiniões que, uma vez desprendidas da personalidade que os fizera originais, restavam agora somente como snobismos e ocas imitações. Enfim, o talento da imitação -- pensava Germana -- chegava a ser tão característico como uma originalidade, não só em determinadas famílias, como, mais genericamente, em determinados povos. Bernardo Sanches era o exemplo duma raça heróica e magnífica enquanto a sua história fora uma questão de sobrevivência, mas que, com a segurança e o conforto, resultara numa brilhante mediocridade. Germana, sua prima, era, por seu lado, um tipo fatídico das degenerescências, o artista, o produto mais gratuito da natureza e que se pode definir como uma inutilidade imediata. Era ela uma criatura paciente, tímida, e que inspirava confiança sem limites. Os artistas, que, em geral, se fazem notar pela sua excêntrica banalidade e que se distinguem dos burgueses porque vivem as extravagâncias que os burgueses reprimem em si próprios, não se pareciam nada com Germa. ela tinha o espírito de parecer vulgar. Um dos seus prazeres consistia em analisar-se como o conteúdo de todo um passado, elemento onde reviviam as cavalgadas das gerações, onde a contradança das afinidades vibrava uma vez mais, aptidões, gostos, formas que, como um recado, se transmitem, se perdem, se desencontram, surgem de novo, idênticos à versão de outrora. Ela balançava-se activamente numa velha rocking-chair que, a cada impulso mais violento, pulava no sobrado, onde se acumulavam pilhas de maçãs sustidas por tábuas muito esfareladas de serrim. Tal como Quina -- pensou. E, absorta, pôs-se a murmurar um lento monólogo, olhando à sua frente o caixilho da porta que comunicava com a cozinha, onde se via a pedra da lareira, arrumada e varrida de cinza.
-- Você que diz, Germa? -- perguntou Bernardo. Perscrutava-a com uma curiosidade passageira, um tanto mortificado porque alguma coisa que não ele próprio o obrigava a inquietar-se. Como ela o fitasse apenas, sorridente e sem lhe falar, achou mais cómodo sentir-se ali o hóspede venerável, e tomar aquele silêncio ainda como uma cortesia. Mas, na verdade, Germa nem sequer pensava nele. Suspeitar isto -- ele sabia -- seria o bastante para que Bernardo não voltasse mais e estabelecesse no fundo da sua alma permanente disposição de vingança. Preferiu, portanto, ignorar que Germa estava nesse momento totalmente desligada e ausente de si, e que subitamente o ambiente ficara repleto doutra presença viva, intensa, familiar, e que aquela sala, de tecto baixo, onde pairava um cheiro de pragana e de maçã, se enchia duma expressão humana e calorosa, como quando alguém regressa e pousa o olhar nos antigos lugares onde viveu, e o seu coração derrama à sua volta uma vigilante evocação. E, bruscamente, Germa começou a falar de Quina.

*
Páginas inaugurais de A Sibila. Lembra-me outras, de Aquilino Ribeiro, n'A Casa Grande de Romarigães, «Génese». Aqui, sinto-me cativado desde o primeiro travessão. E digo travessão e não desde a primeira palavra, para não perder nada. Acho uma delícia o termo «estacionamento» utilizado para significar o estado de cristalização que se tornou o dos continuadores de uma herança, sendo que a verdadeira herança seria a replicação das qualidades e acção do ancestral, do fundador da «dinastia», em situações diferentes.
Germa parece ser a personagem em que podemos ver Agustina. E foi com os olhos de ver Agustina em Germa, que me encantei com este texto. Agustina a dissecar.

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Referências

O riso de Agustina, por Anabela Mota Ribeiro
Bom dia, Agustina, por Miguel Esteves Cardoso

Homenagem a Agustina, em Vila Meã (ANTO Associação dos Amigos de António Nobre)

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