24 de Fevereiro
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Fica aqui uma
memória mínima do segundo dia. Na Sala Antão de Almada em ambiente de amizade,
amigos e colegas no mundo da educação e da filosofia vieram homenagear Manuel
Ferreira Patrício com a presença, mais do que assistir à homenagem. As pessoas
estavam ali, estávamos ali, porque queríamos viver um momento tão especial,
algo surpreendente..., inesperado. Como surge o poema? O poema também surge
como acção. Creio que o tempo foi relativamente escasso entre a ideia e o
feito. Os «poetas» que nos trouxeram aqui foram muitos, afinal: os promotores,
as entidades associadas, a comissão organizadora e... os apresentadores de
comunicação; os que deram o seu testemunho.
As comunicações foram muito boas. Não
querendo distinguir ninguém, apreciei a análise do Prof. Manuel Cândido
Pimentel sobre A Pedagogia de Leonardo
Coimbra: Teoria e Prática1, no
tempo que dispôs para a fazer, mesmo sabendo que escreveu obras de fundo sobre
Leonardo Coimbra. Falou, na leitura que dela ia fazendo, da parte da tese de
Manuel Ferreira Patrício em que este analisa e saboreia com vagar A Alegria, a Dor e a Graça. A Alegria, a Dor e a Graça, regiões da
existência. Pareceu-me ouvir isto. Vamos esperar pelas actas. Leonardo fala, logo na página um, de núcleos de realidade, entre eles, o Píncaro da Alegria.
Leio algumas
páginas de A Alegria, A Dor e a Graça, uma obra-prima de Leonardo Coimbra. A memória do livro parece que se
desvaneceu, ficando apenas a certeza do grande prazer que tive na sua leitura.
O folheto, acima, merece leitura pelo
dizer muito em pouco espaço, numa breve nota sobre «o mestre eborense» e a sua
actividade científica, no horizonte da formação do homem e nas mais
informações, incluindo o programa.
________________
1 Tese de doutoramento do homenageado, escrita em 1983, mas só
publicada em 1991. O título é um tanto enganador, pois a pedagogia é interpretada, fundamentada e vivida numa perspectiva filosófica.
Manuel Cândido Pimentel, Manuel Ferreira Patrício, Maria de Lurdes Sirgado Ganho, António Braz Teixeira
Os mesmos e Sofia A. Carvalho
Maria Leonor Xavier, Fernanda Enes, Joaquim Cerqueira Gonçalves, Mendo Castro Henriques, Renato Epifânio
Manuel Ferreira Patrício, Joaquim Cerqueira Gonçalves, Esteves Pereira, Pinharanda Gomes, Joaquim Pinto, Samuel Dimas
(Fotografia: Maria Emília Apolinário)
Maria Lucena Sampaio Borges, Helena Briosa e Mota, Joaquim Cerqueira Gonçalves, Maria Emilia Apolinário
*
A Alegria, a Dor e a Graça
Tópicos e Antologia
Tópicos
«A Experiência é a socialização do nosso
ser ou liberdade com os outros seres.» O indivíduo e a pessoa; o abstracto
(particular) e o concreto (universal).O indivíduo é abstracto; é-se concreto no
movimento e na sociedade cósmica. A dor e o pessimismo: a morte de um
filho, a morte do primeiro filho de Leonardo Coimbra (págs. 170-172). Referência ao segundo filho nas páginas 33 e 34.
As
teorias evolucionistas e fixistas e a unidade excedente; a Unidade revelada na
evolução (págs. 226-228). Sente-se Teilhard de Chardin; são pensadores
independentes um do outro; as obras ditas não científicas de Teilhard foram
publicadas a título póstumo, a partir de 1955. Cristificação. Cristo, S.
Francisco. Também lembro Nietzsche, pelo fascínio que a escrita de ambos exerce
em quem os lê, apesar da enorme distância que os separa, desde logo Nietzsche é
anticristão e Leonardo, cristão até à medula. O cristianismo vulgar. A
humildade. Também, aqui, nomeia Nietzsche, na sua arrogância. Cita e admira
Newton; imponderabilidade e peso bom. «Quando Newton se contenta em dar a forma
da gravitação, deixando como problema pendente o estudo do agente, não é a
comovida humildade da sua alma, pressentindo e amando o Ser, vivo e
omnipresente, que lhe permite livrar-se da idólatra exigência duma acção local
para explicar o movimento?» Admira Bergson. Entropia. Evolução planetária e
involução. Unidade. Irracional. Excesso. Invisível, Inefável, Inominado.
Os sábios medíocres e a sensação pronta e fácil. Os teóricos do
progresso; progresso e involução; evolução, involução e nova evolução; involução
nodal. O Capital e o Trabalho. Materialismo e espiritualismo: elogio à França e
censura à Alemanha. A escravidão e a tirania, tentativas niilistas. O Mistério.
Solidão. Altitude. O Silêncio da Montanha. A Alegria. A Dor. A Graça.
Um relevo especial para as últimas páginas
(274 a 280), abaixo integralmente transcritas.
Antologia
[A Alegria*]
O mundo sai do Caos todas as manhãs. louvores à primeira
alegria, que é a perpétua vitória sobre a Morte, a renovada e eterna Criação.
É a alegria da cotovia e das crianças!
No primeiro sorriso luminoso caminha embalado o canto da
cotovia e a babélica garrulice da humanidade infante.
A criança nada e canta na luz matutina. Olhai o pequeno
bebé: todo ele é movimento para o Oriente, inconsciente, rápida e decisiva
oração de carne; todo ele, como imponderável, se agita, soergue e balança na
réstia de Luz, que lhe beija os cabelos; todo ele grita, se atira à Luz, lança
a treva da palavra, crepúsculo da alma que se avizinha.
Vindas da Unidade
Maternal, as formas apenumbradas conservam-se fora de limites nítidos e
isoladores. A vibração inicial não se estendeu ainda à superfície definitiva,
brinca no Espaço como se fora seu, exibindo, na agilidade graciosa do seu
descuido, o poder infinito donde dimana.
Nas proximidades da Origem, é para uma//criança, mais no seu espaço, mais em contacto, o Sol, que lhe auscultou
a fronte, que as próprias mãos do
seu corpo.
O sorriso duma criança adormecida é a espuma da Alegria
flutuando sobre a sua mesma oceânica fundura.
(A Alegria, a Dor e a Graça / Do Amor e
da Morte, I volume das Obras Completas de Leonardo
Coimbra, Livraria Tavares Martins, Porto, 1956, páginas 12-13. A primeira
edição é de 1916, da Renascença Portuguesa, Porto.)
* Esta parte vem desmerecidamente breve. Tem páginas maravilhosas sobre o amor.
[A Dor]
Por mim, nunca tive tanta vontade de afirmação espiritual,
nunca de tão fremente impulso tendi para um consciente e obstinado quixotismo,
como depois que um filho me adoece e morre, quando ergo, no primeiro livro, a melancólica
afirmação do meu optimismo.
Optimismo, não porque o mundo seja óptimo, // mas porque o
desejamos fazer bom, amoroso, penetrado de consciência e entendimento.
E, agora, ao meu lado, um outro filho brinca e grita a
alegria de viver, sem que a sombra da Morte, que vou evocando, me tolde a
serena meditação das palavras.
É fácil ser pessimista no correr duma vida sem atritos; mas
se a tragédia surge, se o dilema aperta, é então tamanho o nosso conhecimento
do mal, tão profunda a sua assimilação que, do outro lado do abismo, clareiam
novos astros.
Que saberão dizer da vida os que nela passam em busca de
pretextos literários, de opiniões totais focadas do seu quarto de leitura?
O mar é tão fundo, tão fundo que duas cordas de carro não
chegam ao fundo, dizia um dia um camponês, que fora a banhos, para um patrício
assombrado.
A vida a duas braças, mal beliscada a epiderme, que pode
saber da Dor, oceano insondável, se nos não valemos dos máximos afectos, das
mais amplas e compreensíveis ligações.
A Dor leva ao maior conhecimento, porque obriga a uma
indagação em todas as direcções e sem repouso, porque torna sensíveis os
mínimos laços, porque é a penetração da alma através do cosmo, como raízes
famintas estalando os penedos, que, da boa e desejada terra, as estão
separando.
A Alegria é vitoriosa e simples, a Dor é como-//vida e
transcendente: é um amoroso recurso às profundidades do abismo, um inclinar de
atenção para todas as forças ocultas, um paroxismo de metafísico amparo, um
esforço do coração para o ritmo dos outros corações.
A Dor é uma incessante pergunta, uma humildade
contemplativa e amorosa, um andar de companhia com o mais recatado sentido das
almas, é o maravilhoso cristal através do qual se recompõe a unidade da luz
para se nos mostrar o Universo em nova claridade.
Se me dobro sobre a boca duma fonte, é o murmúrio da água
que me leva para o interior da terra; se escuto uma alma, que sofre, é infinito
o meu caminho e na obscuridade, que percorro, vou divisando um remoto luar,
amanhecendo do abismo das almas e dos mundos.
A primeira promessa de lealdade e o primeiro beijo de amor
foram feitos do primeiro sofrimento duma alma, que se viu incompleta e procurou
além...
Os homens e os povos só são grandes pela Dor. A Alegria
banaliza e adormece, a Dor inquieta e dinamiza.
A derrota da Alemanha é, numa boa parte, feita da dos
Belgas.
A Alegria atravessa o mundo em marcha; a Dor bate às portas
a esmolar companhia.
O mendigo, que atravessa a aldeia, de casal // em casal, é
a dor que lembra aos homens o quanto de impenetrabilidade e solidão eles
lançaram sobre a vida. E ele diz que a indiferença do Céu para os nossos
desejos não é maior que a nossa incompreensão de alma para alma.
Nunca uma grande ama se sentiu desgraçada no meio da Dor;
e, aí, a alma de Óscar Wilde atingiu a beleza divina, a altura do pensamento, a
simplicidade de infinita fundura.
Há quem, com o pretexto de amar a vida, dê ao paganismo a
superioridade da Alegria sobre o cristianismo como religião da Dor.
Nem é outro o motivo das teorias de Nietzsche.
Sim; o cristianismo é a grande religião da Dor. De tal modo
ele acolheu os pobres e os miseráveis que não nos acode a lembrança da mais
luxuosa catedral ou da mais modesta capela sem um longo círculo de escorraçados
da Alegria, implorando amor e piedade.
Amar a vida é compreendê-la, alargar o seu círculo de
acesso para lá das vitórias naturalistas da selecção, dar-lhe um sentido que se
não perca e valha em absoluto e substância.
Se o paganismo vibra de infantil alegria naturalista, o
cristianismo é a Alegria reconquistada, o sol depois da tempestade, a dignidade
e certeza da vida, de olhos abertos e atentos na face da morte.
A Dor é o caminho da redenção. // Para salvar as almas da
treva exterior e da morte, preciso era ter delas um conhecimento que as talhasse
em relevo inapagável; só a dor leva os olhos ao fundo do abismo e arranca a
profundidade à luz da superfície.
Vènus Antheia deixava, em vestígios dos passos, sulcos de
flores; o rasto do cristianismo é de lágrimas, agonias e bênçãos.
Leprosos, paralíticos, endemoninhados, bordam os caminhos
de Cristo; e tantas vezes a sua palavra, toda perfume, enlevo e mimo, se
interrompe para que as mãos toquem gangrenas.
Eu também acredito que Jesus veio em testemunho de Deus e,
por isso mesmo, sofreu como ninguém, sondou a Dor até àquele ponto onde ela se
transfigura em imortal Alegria.
Por isso amou os que sofrem, os inquietos, que buscam, na
singeleza da sua alma, um seio de amor, onde acalentam a bondade.
A sua palavra dissolvia os corações empedernidos, em viva
água de humildade, porque falava à dor, ao naufrágio das consciências no grande
deserto da vida mortal.
O que há de mais sublime na vida de Cristo é a nova
harmonia, que realiza dentro da Dor.
Antes dele houve uma vida de proporção e harmonia, mas
dentro da clara alegria de viver.
Só ele conseguiu a tranquilidade na Dor, a // beleza na
tragédia; fundir o sublime na harmonia do belo.
Percorreu todo o ciclo da Dor, mas com tanta liberdade que
os seus gemidos caminham a sorrir para as nossas almas.
A Dor é, para nós, o sentimento de separação, de
insubsistência e fragilidade.
Se nos obstinamos pela consciência, por um significado
espiritual da vida, se, trepado o nosso Gólgota, olhamos o horizonte, o
vendaval do Mistério impele-nos duma força sempre pronta e excessiva, o ser penetra-nos da sua essência
espiritual.
A cada momento nos é preciso o esforço de bem para que o
bem nos envolva da sua presença.
Cristo sabe que Deus fica para além dos areais da Dor, que
é preciso atravessar o Deserto para alcançar o nemoroso oásis de água viva e
perene; o seu passo é seguro desde o princípio, ele leva, em si, a frescura da
fonte original.
Atravessa a Noite, como o cometa flamejante, ardendo em luz
própria e originária.
Não se curva de incerteza na expectativa da mão que o há-de
guiar e impelir; é do Interior, onde já Deus é vivo, que a certeza o conduz.
Não é um drama em que uma alma defronta o Universo e clama
exigências que a excedem; é o Drama duma alma já certa do seu caminho, senhora
da sua essência de vida eterna.
O nosso quixotismo é heróico, sobressaltado. // Jesus é
sereno, porque o heroísmo leva desde o início a certeza da vitória.
No entanto, tudo ele atravessou: a traição, a insegurança
da amizade ameaçada, o escárnio, a ingratidão e a cegueira, a brutalidade, a
cobardia, a sede e o abandono.
Todo o cristianismo é um ensinamento da Dor. [...]
A indigência facilita a salvação, porque tira o homem
debaixo dos bens, que, não sendo da alma, a sobrecarregam e desviam.
Ela é precisa para fazer sentir ao homem quanto é fútil a
riqueza exterior, alheia ao destino, ao sentido da alma.
Ela é boa, porque não esconde o peso da existência, o
sofrimento e o mal; não furta o homem à grande experiência da Dor.
Mas de nada servirá a lição do cristianismo, se nos
furtarmos ao conhecimento da sua experiência. O cristianismo vulgar, simples
pretexto para // um certo número de festas mundanas, ou o cristianismo chamado,
apenas, a proteger os interesses quotidianos, nada possuem da grande
experiência de dor, que o alimentou e subiu à maior das atitudes do homem
perante a indiferença da Natureza para a sua insaciável sede de alma. Toda a
vida de Cristo é o mesmo drama do homem e da natureza, da consciência e da
indiferença, da memória que perdura e do mundo que dispersa e morre. É uma
relação do homem com o Todo; quem a não vive jamais poderá compreender o
cristianismo, que de cósmica atitude religiosa se torna uma fórmula da
hipocrisia social.
A preferência pelos simples, por aqueles para quem a
facilidade de vida não tem regalos, que adormentem, afirma a Dor como uma
cósmica experiência insubstituível.
A agonia de Jesus na herdade de Getsémani «a minha alma se
acha numa tristeza mortal...» mostra a sua figura alada e forte carregada de
todo o peso da dor, conservando ainda a liberdade de aceitar e cumprir
a vontade do Pai celestial.
Essa confiança no perfeito amor e cuidadosa presença do Pai
celeste, só o homem a pode conseguir vivendo profundamente as suas dores, a tal
ponto que ele as sofra como dores universais.
Então, quando cada homem sentir a morte dum filho, não como
uma perda pessoal, mas como uma radical impotência da Natureza, tal será a //
distância entre os desejos da sua alma e a imediata realidade do mundo que o
heroísmo das suas virtudes, a persistência das suas afirmações espirituais
serão, para ele, a presença duma força moral, que o impele e levanta. A Dor
há-de aparecer-lhe como o melhor caminho para Deus, e as chagas de Cristo os
buracos dolorosos por onde, e para sempre, os olhos do homem viram o Infinito.
E aquele estupendo hiato do evangelho (lugar aberto a toda
a especulação) em que Pilatos pretende saber o que é a Verdade, será cheio de toda a Dor humana; Jesus,
falando, apenas acrescentaria, de palavras, o corpo sangrento da Verdade...
(A
Alegria, a Dor e a Graça, páginas 171-179.)
[A Graça]
A graça é a sensação da liberdade. Aparece em toda a parte,
onde uma força se liberte e pouse, sobre a tranquilidade da forma, o sorriso do
seu excesso. (A. D. G., p. 181.)
O Universo é uma ordenada coexistência.
Nenhum ser se pode esconder ou furtar às // actividades que
o cercam. No ponto e no instante está o Espaço e está o Tempo.
No indivíduo está a Espécie e, mais além, a própria Vida,
ligando-o ao planeta e aos mundos.
O episódio não existe, porque, ao acidente, que passa,
assiste a essência que perdura.
A Graça, sendo o sorriso do Universo, que se possui e ama,
pode revelar-se no acidente e no indivíduo, no ponto e no instante.
Na agilidade contente do movimento infantil, ou na
microscópica magnificência duma diatomácea, trabalha uma força, que, sob o
Oceano e o Céu, sem esforço nem diminuição, desdobra o infinito no seu poder,
sobrelevando a obra.
A Graça é a sensação da liberdade, porque é, em cada forma,
a presença do Infinito, que a criou e sustenta.
Há criaturas cheias de Graça, que, pela libertação duma
força de excesso, no meio das mais apertadas crises, tornam a sua presença um
bálsamo, um conforto e uma certeza para as nossas almas. [...]
O sentido fruste e trivial, que tem a graça, é ainda o de
libertação e facilidade. (A. D. G., págs. 182-183.)
A Alegria é a unidade concreta dum Universo: sociedade
pronta e patente; é, pode dizer-se, a realidade do Ser planificada.
A Dor é a nova direcção da Unidade, quebrada em mil
destroços, fragmentada e dispersa, buscando para além.
A Graça é, antes da Dor, o sorriso da Alegria; é, depois da
Dor, a Unidade reconquistada boiando sobre os destroços, que, por ela, tomam um
novo sentido de Alegria, um lúcido corpo de drama, um valor de revelo e
exaltação.
A Alegria atinge-se, é a nossa realidade imediata e é
também a nossa conquista.
A Graça é, no indivíduo, a presença dum Infinito de
qualidade, que tudo abrange e excede.
A alegria é a vitória, em cada ser, do sentido // de
concreto universalismo sobre o abstracto individualismo.
A Graça é o próprio Universo que é presente, por dentro e
em espírito, em cada parcela -- átomo, mundo ou criatura.
A Alegria canta, a Dor procura e atende, a Graça é.
A Realidade, desde a mecânica à moral, é uma unidade
concreta; quer dizer, a comunicação de muitos. A sensação é, na psicologia, o
análogo da inércia na mecânica. [...] O mundo sensual é ainda um Caos, mas um
Caos real e significativo, afirmando um conjunto, um todo.
A Graça é a apreensão do universal no parti- // cular, e,
quando o primeiro sorriso infantil luariza uma face, é a providência amparando
a fraqueza, o anjo da guarda que está vigilante.
Quem uma vez sentiu a graça, viu o próprio Deus. Vejam como
ela é variável e sempre fácil em cada instante e realização.
Qual de nós, de amorosas comunicações tão estreitas,
poderia, com graça, libertar um cordeiro que vai destinado à morte?
E não o fez S. Francisco de Assis?
É que, nele, a amorosa comunicação vai até ao irmão lobo,
ao Sol e à Lua, e, em nós, mal chega aos mais próximos seres humanos.
O que, no humílimo santo, é a presença da amorosa unidade,
seria nos outros uma inversão das ligações, uma estúpida separatividade.
Conheço uma senhora que oferecia dinheiro a quem, ao Mar
encapelado, fora a buscar-lhe uma cadelita. Era a vida humana explorada em
proveito da vida animal.
No entanto, era graciosa essa mulher; mas implìcitamente,
mas linhas do seu corpo, na flexibilidade ondulante da vida, espraiada nas suas
formas. O Deus que a sua graça mostrava, era um bom deus pagão, pelas margens
dos regatos procurando, nos salgueiros, as ninas que os habitam.
Graça panteísta e simples era a sua, graça búdica e cristianíssima,
o maior valor do Universo, era a do santo mendigo. //
É gracioso o jogo de luz que é o brincar dos peixes ao lume
da água, mas também (e a que distância!) é gracioso o falar de Cristo.
Todavia é sempre um excesso; o excesso sobre a utilidade do
instante, sobre todo o Tempo, todo o Espaço, todas as formas e todas as vidas.
Em nenhum caso existiria, pois, a graça, se o Universo
fosse um mecanismo, uma mera necessidade, uma absoluta actualização.
A Graça é o sorriso da liberdade.
Mas existe a liberdade? Não será uma ilusão e, com ela, a
Graça uma sensação falaz?
Se quereis um universo sólido e consistente, onde a acção
encontre ponto de partida, fim e meios, tereis de admitir o mais absoluto e
completo determinismo.
Se quereis um Universo alegre e gracioso, que que vos não
apague e suprima, que não substitua a cada um todos os outros, de modo que
nenhum exista, tendes de nele colocar a mais positiva e real liberdade.
Eis os dois extremos, que tendes a respeitar. [...] (A. D. G., págs. 184-187.)
[Liberdade e tirania; sentido cósmico]
Os dois escolhos da liberdade humana são a escravidão e a
tirania.
[...] A tirania e a escravidão têm um mesmo processo e um
fim comum — o homogéneo.
[...] A escravidão e a tirania são a mesma coisa, são
tentativas niilistas.» (A. D.
G., pág. 188.)
Pode dizer-se que a realidade é o infinito animando o nada.
É, neste sentido, que se deve entender a criação; e, neste
sentido, ela é contínua e permanente.
Se os deuses dormissem, haveria o nada. (A. D. G., p. 189.)
Só o sentido cósmico da realidade vos poderá dar a
compreensão do planeta e do abismo, rumoroso de astros. Sim; só o significado
universal da // existência pode fazer ouvir certas vozes, dar verbo a certas
ansiedades suspensas.
O que significa nossa emoção, a súbita fonte de eloquência,
que, em nós, desperta a presença dos espectáculos da fatalidade?
Quem não tem sentido que basta uma palavra a pronunciar
para desfazer a fatalidade, que esta resulta dum equívoco, que vamos evitar?
[...]
Trazei ao quotidiano, o eterno; à parcela, o todo, ao
acidente, a essência.
A fatalidade não é mais que a queda das forças criadoras, o
sono da vida, a lâmpada que quer dispensar o sol e se morre à míngua de
alimento.
Se deixarmos cristalizar as formas da actividade, ficará
esta enclausurada entre os cristais.
Desde a prática metafísica até à prática social de todos os
dias, são os produtos da actividade os seus piores inimigos.
Porque deixou estagnar o Tempo e o Espaço longe da ideia
que lhes dá o ser, foi o pensamento humano aprisionado no ponto e no instante.
O materialismo do Tempo e do Espaço, de // qualquer
absolutismo que ele resulte, aniquila a liberdade, retirando o interior a todas
as existências.
O materialismo das obras duma civilização pesa sobre o seu
espírito criador.
É a tirania das coisas, que a guerra europeia veio revelar
aos mais míopes e que, desde o nosso primeiro (1) livro, predissemos e
afirmamos.
Na grande guerra, é exactamente a civilização industrialista
pura, a superioridade das coisas humanas sobre o homem, que sofre o juízo de
Deus. (A. D. G., páginas 191-192.)
[Unidade]
Em cada ser vivo é presente uma unidade do seu corpo e uma
unidade de vida, que o liga em todos os seres.
E todas as leis científicas são a procura da ideia
platónica de que participa cada
realidade singular. (A. D. G., p. 195.)
Esta Unidade é sempre presente desde a simples existência
mecânica aos laços da gravitação, do abraço eléctrico, esboço da alma
envolvendo o planeta, dando aos corpos uma polarização, até à unidade da vida
criando as formas e à grande unidade moral ligando as pessoas, dando aos seres
um destino comum.
Por não ser quantificável, não a esgota também nenhuma
qualidade, ela é sempre um excesso sobre todos os seres e fenómenos.
Daí o duplo aspecto da realidade. Ela é contável e
descritível, ela é infinita e inominada. (A. D. G., p. 196.)
[A acção, o movimento]
A primeira, a única, a constante realidade é a acção.
É, por isso, que o movimento é a expressão do Universo, a
sua única linguagem.
É o movimento que cria os novos meios da acção, e, sobre
este ponto de vista, o espaço o tempo são criações do movimento. (A. D.
G., p. 197.)
O movimento é profundamente realista, porque o Universo é
uma sociedade. [...]
Sendo o movimento a simples afirmação metafísica da
realidade social do Universo, ele será subjacente a todas as posteriores
manifestações dos seres ou arranjos dos fenómenos.
Daí a sua universalidade, que Descartes apontou e toda a
ciência mais não fez que confirmar. O erro materialista consiste em, esquecendo
o seu sentido metafísico, dizer que tudo é movimento em vez de dizer que em
tudo há movimento.
Nós só conhecemos seres e fenómenos. (A. D. G.,p.
199.)
*
O determinismo e a liberdade são dois pólos abstractos da
actividade cósmica, que sabe muito bem viver entre eles sem falsos
compromissos, mas em superior e criadora síntese. (A. D. G.,p.
202.)
Há, pois, em tudo o que se nos afigura real e positivo, uma
implícita actividade.
Essa actividade exige um ser, este ser é a alma. (A. D. G.,p.
203.)
A alma é, pois, um ser.
[...]
A alma humana é um ser, tem actividade própria, é livre. (A. D. G.,p.
204.)
Em nenhum caso é necessitado o acto moral, e, se compreendemos
inteiramente um carácter, isto é, se é do nosso carácter que se trata, ainda só
a experiência nos pode ensinar o acontecimento.
Só a matéria (e há homens materiais) é previsível, porque o
nosso ritmo ou poder de acção a excede. (A. D. G.,
p. 207.)
Temos a liberdade da interpretação, do meditativo esforço.
É essa que deve erguer, sobre o Universo visto em
fatalidade, o Universo resplendente de acção criadora e presença divina. (A. D. G.,
p. 211.)
*
A liberdade existe, a graça é o seu corpo. (A. D. G.,p.
211.)
Na graça sentimos o excessivo, o Irracional, que palpita nas formas e paira sobre as
criações. (A. D. G.,p.
219.)
As sensações da quantidade e do movimento // são reais e
afirmativas. São a imediata presença do Ser. Também só este significado
idealista as pode libertar das dificuldades tradicionais. (A. D. G.,
p. 224-225.)
A sensação da quantidade e do
movimento // são reais e afirmativos. São a imediata presença do Ser. Também só
este significado idealista as pode libertar das dificuldades tradicionais.
O mundo finito ou infinito deixa de ser um problema, para
sabermos que a quantidade é infinita para revelação do Ser e determinável pelo
número, porque o Ser é sociedade realizada, sistema de relações. Nenhum sistema
de formas esgota o Ser, mas cada sistema o traduz. (A. D. G.,p.
224-225.)
[A existência cósmica.
Transcendência e imanência]
A existência cósmica, a despeito das dificuldades, que o
nosso precipitado absolutismo científico pode criar, é garantida pela
idealidade do ser. Se, com efeito, procurais um Universo material que se baste,
como é que os vossos instrumentos medem nesse uniforme infinito? Se é um
Universo material finito, como existe em vida e acção, se, no tempo finito, ele
deve morrer pletórico de entropia?
O Universo é real pela existência dum Ser de pensamento,
que é a sua ordem e razão. As sensações, colocadas no coração ideal do Ser, são
duma sólida realidade; é, por isso, que, desde a quantidade ao espírito, elas,
de acordo com o pen- // samento, revelam uma universal presença, uma
comunicativa unidade de compreensão.
Passando do mundo físico à vida, mais nítida aparece a
transcendência das formas e a presença da Unidade interior.
As teorias evolucionistas da biologia moderna, mais ainda
que as hipóteses fixistas, patenteiam essa Unidade excedente.
As hipóteses fixistas colocaram de pronto a unidade interna
da vida no pensamento divino, que criou os tipos específicos.
O evolucionismo dá essa mesma unidade em efectivo trabalho
de construção.
Há como uma descida ao imediato, que iludiu tantos
medíocres pensadores, fazendo-os supor que isto era uma substituição do
transcendente pelo imanente.
A única diferença entre a transcendência e a imanência
reside em que o transcendente está nas formas e para além das formas, e o
imanente é simplesmente nas formas. Mas, se o imanente está nas formas em
nenhuma ele se esgota; em cada forma há a razão que ela representa no total e o
Irracional que cria e conserva essa razão.
O imanente, que nos seres vivos é a vida, não é o resultado das formas ou dos órgãos, mas a força
criadora desses mesmos órgãos, neles presente e capaz de reconstruções. (A. D. G.,p.
225-226.)
O plano animal, que, para além da apropriação às condições
de vida, se revela em toda as formas zoológicas, é bem mais admirável no
evolucionismo de formas primitivas que na sua imediata criação por um mesmo
agente.
[Bergson]
Esta Unidade revelada na evolução, presente em cada forma e
em todas as formas, é o ponto por onde o Irracional, o excedente se revela ao
profundo e originalíssimo filósofo francês Bergson.
É na vida que se lhe manifesta a Graça; e é na profundidade
vital da consciência que irá procurar a liberdade. (A. D. G.,
p. 228.)
Eis toda a filosofia bergsonista como uma manifestação de
Graça. [...]
O movimento é cheio de Graça, porque é vivo, ondulado,
pleno de continuidade activa.
Tem-se dito que a sua filosofia abre as portas a um novo
misticismo. É verdade. O misticismo está sempre onde o homem mergulha numa
realidade mais vasta, que o exalte e amplie.
Mas é esse misticismo, que, no momento actual, lhe permite ver
a vitória da França com profundos olhos de profeta. (A. D. G.,
p. 230.)
Todos precisam dinamizar a vida da alma, e para lhe
conservar a unidade só têm o falso recurso das faculdades ou o recurso de um
falso irracionalismo que, não sendo o excesso, mas a deficiência de razões, não
se compreende como exista e unifique.
No entanto nada mais evidente que a unidade do Irracional,
que se afirma nos espíritos.
Tão real é essa unidade que Kant consegue um arremedo de
realidade, suspendendo-a da objectividade do conhecimento humano.
Ora esse conhecimento humano ajusta-se à Experiência, à
acção no mundo físico, cresce em harmonia com o Ser; a sua objectividade sai,
pois, do humano para o cósmico. O Irracional, que o cria, será portanto, o
mesmo Ser, que se exprime no movimento, na quantidade, na ascensão graciosa da
vida.
Neste máximo de realidade, como no mínimo // mecânico, a
imediata afirmação é a da sociabilidade, da relação viva e concreta.
O eu não
existe isolado; a actividade espiritual é sempre um esforço por entre estorvos,
uma unidade através de pluralidades.
Desde a quantidade em que vive e de que se apropria, do
movimento em que se exprime e se realiza, até à nítida compreensão do dever
moral, da união total, é sempre uma actividade que se faz una, concreta e real,
num esforço de progressivo universalismo.
O eu é uma
sociedade, onde se apresentam não só os outros eus, mas todas as realidades, desde
o mundo físico até às mais altas afirmações do mundo moral.
O sentimento moral tem raízes metafísicas; onde há
representações existe uma unidade, que as liga e uma pluralidade, que é o seu
motivo original.
O homem é um animal social, porque é um ser metafísico.
Daí a atmosfera de esforço, de constante sedução para uma
invisível finalidade. Os homens em sociedade renovam-se e ganham outros poderes
e modos de actividade.
É possível, é quase certo, que o homem isolado não
conseguiria destacar o seu eu da
confusa representação em que ele mal se distingue dos outros. //
É talvez verdade que esse homem não alcançaria a noção do
dever moral, não elevaria a noção de valor para além do prazer e do sofrimento.
Deste modo se pode afirmar que a ideia de Deus é uma
criação da sociedade, qualquer coisa como a hipóstase da consciência social.
E que essa consciência social existe é o que superiormente
nos mostra o ilustre sociólogo Durckeim.
A consciência social tem os seus imperativos; obriga e
sanciona.
Ela cria, pois, o dever, que é o alegre sentimento da
adaptação aos seus imperativos, bem sensível no desgosto da inadaptação, que é
a base do remorso.
Pode mesmo dizer-se (e Durckeim daí tirou fecundos
proveitos) que ela gera as categorias do pensamento, isto é, a sua
objectividade.
Essas categorias só, porém, adquirem valor na vida da
Experiência. É, por isso, que Kant as procurava pela consideração da
possibilidade da Experiência.
É certo que essa Experiência era apenas formal daí o
círculo vicioso, que o encerrava dentro dum absoluto humanismo.
Ora a Experiência é, como já dissemos, a meditativa
conversa do eu com o Universo.
//
Se, portanto, a consciência social inicia a realidade, ela
só é atingida pela consciência cósmica.
A relativa harmonia dessas consciências revela que a maior
é presente na menor e que a sociedade humana é um círculo da sociedade
universal.
É assim que Deus, começando por ser uma hipóstase da
consciência social, tende sem cessar para ser a própria consciência universal,
a suprema Unidade cósmica. (A. D. G.,
p. 232-235.)
[A consciência social: alargá-la
até ao Universo]
É no Infinito, que é a ilimitada quantidade, a força, o
movimento, o impulso biológico e a fraternidade social, que as sociedades
humanas vivem e actuam. Aí são livres expressões do Espírito., per- // manente
involução em valores morais e pensamentos metafísicos de todo o desenvolvimento
exterior em acção e progresso.
Então é a acção o prolongamento da ideia, e, por isso, o
trabalho é uma obra de amor, de liberdade e alegria.
A acção é o corpo da realidade, que é o drama dos seres,
merecendo pela virtude, crescendo em Espírito, involuindo em amor.
A acção realizada é como o fruto amadurecido, cai para
fecundar a terra; mas, a vida periga, se a Primavera se esquece e não vem
embalsamar os campos e renovar os frutos.
Em cada acção, em todas as instituições, deve estar o
Espírito criador, ultrapassando-as a todas e dando, a cada uma, alma própria,
que a mantenha viva. A instituição sem alma é como a árvore sem seiva; estiola
e morre.
Apagai o sentimento de justiça, que fez uma lei; porque já
tendes a instituição, dispensai o espírito que a criou. Essa lei será, apenas,
mais uma fórmula a complicar a vida social, uma ocasião de inúteis palavras e
degredações intelectuais.
Toda a sociedade tem o seu Deus,, que é a própria
consciência social.
Deixar essa consciência nos estreitos estreitos limites dum
imediato imediatismo humano ou alargá-la até ao Universo, eis o que não é
indiferente. (A. D. G.,
p. 236-237.)
A civilização é a espiritualização da vida. (A. D. G.,
p. 238.)
É necessário que as formas da civilização sejam
condensadoras do Espírito. [...] Descondensai o espírito, essas actividades
serão os senhores da própria liberdade, que as trouxe à luz. Eles vão pesar
sobre a alma, impedindo a involução espiritual, e espalhando-a em movimento,
frenesi e loucura. (A. D. G.,
p. 239.)
[Altitude cósmica]
Parece, por vezes, que a vida humana não
progride interiormente, antes, a despeito de todos os progressos exteriores, a
sua altitude cósmica é a mesma, quando não desce. (A. D. G., p. 241.)
[Comparar a Teilhard; sente-se Teilhard]
Se a vida tem uma realidade cósmica,
total, se é um absoluto, é claro que não pode haver progresso temporal do que
nela é o seu significado eterno.
A finalidade moral é a direcção das almas
para Deus, a sua colocação no sentido do Universo, no ponto de concurso de
todos os seres: ali, onde é o divino foco de todas as actividades religiosas.
As almas, que, batidas das ondas do
Mistério, em silêncio e meditação, humildemente se inclinam ao sopro da
Unidade, atingiram aquela altitude suprema, aquele ponto de convergência de
todos os fios do Universo, aquele foco, onde os raios do amor se concentram e
são a própria divindade. São a Altura, a visão clara e perfeita.
Sob o ponto de vista do eterno que
contenham, // todas as civilizações se igualam, não participam do progresso.
Se o esforço dramático da existência toca
um nódulo de essência espiritual, é o perfeito, o pleno, o absoluto, o contacto
da parcela com o todo, a fusão do corpo com a alma, a ilimitação da alma
vogando no Infinito.
Um progresso espiritual rectilíneo
demonstraria a completa evolução do Ser, um exaustivo fenomenismo, uma integral
exteriorização.
E, como, para lá do Ser, nada há que o
fecunde, este progresso seria o caminhar para um fim de perfeito
desentranhamento, ou para relativos fins, alcançados os quais, tudo teria de
repetir-se.
É, por isso, que os teóricos do progresso
têm sempre dado ou num optimismo de crescente progresso, e batem as palmas ao
vapor, à electricidade, tendo um desdém piedoso pelo pobre Platão, que nunca
andou de automóvel; ou dão no retorno, nas repetições cíclicas; ou num
desesperado negativismo, apelando para o Nirvana.
O que é certo é que o Universo é diverso e
igual; e, se a espiritualização do planeta pode crescer e cresce, a parte de
eterno, a involução nodal, é sempre presente no próprio sentido social da vida,
que é um dramático esforço de compreensão e mérito.
Não quer isto dizer que nos seja
dispensado // o trabalho de trazer, ao quotidiano, a maior fraternidade e as
melhores virtudes; que possamos aceitar as instituições sociais, a organização,
que se nos depara.
É exactamente no esforço de mudar a face
da terra, no desejo activo e eficaz de circundar de bondade e amor todas as
instituições e formas, que afirmamos o divino e realizamos a involução para o
absoluto, para aquele Irracional, que, enchendo todas as razões e afectos,
todas as palavras e fórmulas, é agora o Inominado e o Inefável.
Sobre a vida social existe a vida cósmica,
que é a vida social religiosa, a sociedade total e absoluta. (A. D. G., p.
241-243.)
Regressando ao mundo físico, é, com olhos
cheios de deslumbramento, que vemos, em toda a face do Ser, a plenitude duma
Unidade, que, sem nada se diminuir, insinuando-se através das for- // mas, da
curva astral, do arco-íris, à evolução da vida e à meditação, é a divina Graça
sorrindo. (A. D. G., p. 243-244.)
*
A alma fez, na Experiência, o exercício //
da própria liberdade, circundando delicadamente as liberdades alheias. Não
produz um Universo vazio, simples fruto dum espontâneo agir. Não recebe um
Universo impenetrável, miraculoso fenómeno duma passividade estéril. (A. D. G., p.
244-245.)
[Sentimento de liberdade]
É a presença da Graça, isto é, dum
universal excesso sobre a Criação.
É a possibilidade do homem, equilibrando o
Universo, repassando em si o infinito de todo o Espaço, vibrando da imensidão
que contém essa imensidade, da Unidade que reside nessa plenitude, erguer uma vontade
sua, uma selecta unificação, um quero, que seria a mais ridícula comédia
e o mais diabólico orgulho, se não fora o mais sublime dos heroísmos e a mais
santa das humildades.
Mais que o pensamento em acção, ou o
sentimento, é a própria sensação que nos revela Deus.
A graça é sentimento, sensação e
pensamento.
Se o pensamento e o sentimento nos mostram
Deus no exercício do nosso livre activismo, a sensação da grande Unidade passa
em nós, quando, diante do mar alteroso, apropriando o seu ritmo, repetimos o
movimento, que, reunindo o espaço, é a posse da extensão infinita pela unidade,
que a realiza. (A. D. G., p. 246.)
[A sensação de Deus]
Quem há que não tenha a nítida sensação de
Deus, quando, dentro de si, a alma acompanha o torvelinho duma
tempestade, o volumoso ímpeto da Montanha, a viva e plena imensidade da sua
Solidão? (A. D. G., p. 247.)
[O infinito poder e o poder particular]
A sensação do movimento organizando a
quantidade infinita não é idolatria, porque não suprime, antes solicita as
realidades superiores.
O infinito poder é, pelo seu próprio
infinito, a universal comunicação, o motivo da Beleza e a Unidade da moral.
O poder particular elevado a plena
realidade tem de degradar o que, por o exceder, o negaria. [...]
O movimento universalmente compreensivo é
a própria sensação de Deus.
Todo o homem simples e leal, colocado no
Universo, ergue os olhos, a sua alma abrange, e adora Deus. (A. D. G., p.
249.)
[A Montanha]
No vilancete de Abel pastor diz o nosso
Gil Vicente: Adorai, montanhas, o Deus das alturas!
Nestes dois versos revive um movimento de
Unidade que dá na continuidade da gravitação para o sol, o prolongamento da
terra até ao céu.
Pela volumosa e serena brutalidade da base
conserva a Montanha a estreita prisão com a terra, é, nela, o centro ideal do
planeta, guarda um sólido núcleo de individualismo; pela aligeirada forma dos
cumes, quase delgadas mãos unidas, é já mais o ósculo da gravitação sideral que
o aprisionante abraço da gravidade terrestre.
É por isso que a Montanha, mais ainda que
o Mar, nos apresenta Deus.
A imensidade do Mar requer a imensidade
duma força que o apropria, há uma larga expansão de movimento absorvente; mas,
se a reflexão surge, essa imensidade tem um limite e desaparece a emoção do
Infinito. A Montanha tem a vastidão e a altura. //
Pela vastidão dá o movimento em largueza,
pela altura dá o movimento em ascensão e entusiasmo; e, se reflectirmos, esses
movimentos circundam a terra, aprofundam o planeta para subirem depois ao
espaço sideral, à família cósmica. Da base à altura levanta-se o próprio
planeta em maré de amor, em ânsia de unidade para o Sol, que tem para as
alturas os primeiros afagos da luz e os mais robustos afagos da gravitação.
O sorriso e o beijo começam num alteamento
dos lábios. As montanhas são os lábios do planeta intumescidos de desejo,
prestes a abrirem em humildes flores selvagens, hesitantes entre a aragem da
terra e os estremecimentos do Céu. (A. D. G., p. 250-251.)
[Sensação, sentimento, pensamento
O sentimento da Graça em S. Paulo]
Os sábios medíocres trabalham com sensações
// prontas e fáceis, esquecendo o mistério da sensação e desprezando, por isso
mesmo, o que neles há de mais oculto e interior.
Daí as ridículas e estúpidas pretensões de
explicação do divino por alguns honestos trabalhadores, acumulando uma espantosa
erudição, cujo miolo são absolutamente incapazes de atingir.
Se eles, que têm, por implícito ou
explícito postulado, um integral sensualismo, começam pela ignorância das
próprias sensações!
Deus aparece ao homem na sensação da
Graça, Deus é em amorosa comunicação com o homem no sentimento da Graça e Deus
é a própria realidade integral e plena no pensamento da concreta liberdade, ou
universal ligação, que é o pensamento da Graça.
E, quando o homem se olha como parcela dum
todo, como membro da sociedade Universo, essa plena liberdade, que é a
intimidade social do Ser, é a face do próprio Deus.
É, então, que compreende o mundo, como a
própria graça divina.
O universal princípio da acção, que é a
Unidade plena, procurando-se e realizando-se na comunicação dramática dos
seres, é a própria Graça de Deus penetrando as criaturas, levantando-lhes o
vulto de drama do amoroso seio, dando à vida uma plenitude exultante, um
presente, vivo e intenso, que aparece nos iluminados como a única coisa, que,
na vida, importa.
Uma das mais pujantes manifestações do
Espírito é a energia com que a Graça se apresenta na alma de Paulo num veemente
todo, fusão da sensação, sentimento e ideia, lançando a alma como em ponta,
onde freme o infinito dum poder capaz de deslocar o Universo.
Tão intenso é o frémito interior da Graça
que, adquirindo a violência duma paixão, dum impulso exterior, irá aniquilar a
própria vontade humana e cria a teoria da predestinação. // É o que explica o
contraste entre essa teoria da inutilidade das obras e a desvairante actividade
dos seus apóstolos.
Não se vê a contradição entre uma
explicação moral do Universo e a existência dum Deus, que distribuísse o
mérito, independentemente das acções e intenções, matéria e forma das vontades
pessoais.
É o delírio da sensação da Graça,
da presença divina, obnubilando, excluindo tudo o mais do campo da consciência.
É, nos mais inferiores, a inconsciente
lisonja dum favor pessoal. Cada um vive pela graça, não por uma especial
consideração da sua pessoa, mas porque o Universo activo é um sublime e
carinhoso excesso do próprio Deus, que, em vez da unidade abstracta da solidão,
se quer a concreta unidade das almas.
Há uma liberdade, excedendo as suas
criações; uma intenção de amor, maior que todas as suas obras; um Infinito
unindo, por dentro, todas as formas; um Irracional criando todas as razões, sem
nelas se esgotar nem sequer diminuir.
É o que mostrou a Natureza inteira e a
alma humana.
Uma vida houve, porém, que resumiu, em si,
toda a beleza do Universo, todo o significado transcendente da quantidade, do
movimento e do Ser, todo o heroísmo e astral pensamento da alma, toda // a
comunicabilidade espontânea e todo o amor atento.
Foi Cristo. (A. D. G., p. 251-255.)
[Cristo]
Uma vida houve, porém, que resumiu, em si,
toda a beleza do Universo, todo o significado transcendente da quantidade, do
movimento e do Ser, todo o heroísmo e astral pensamento da alma, toda // a
comunicabilidade espontânea e todo o amor atento.
Foi Cristo.
A Graça andou pelo mundo, e, por caminhos
de açucenas, lírios e boninas, levou os homens para a vida substancial e
eterna.
Os eruditos que carregam a erudição, quer
dizer, os que ignoram a Graça, criaram o problema de Cristo.
Como pouco interessa a sua identificação
civil é, no entanto, fácil o problema.
Como pelas manhãs se erguem, sobre o leito
dos rios, fantasmas de névoa cobrindo o fugidio corpo das águas, das inquietas
páginas do Evangelho levanta-se uma figura serena, mais real e positiva que as
incertas letras da história.
A harmonia, a proporção, o ajustamento natural,
vivo e flexível das intenções e dos actos, a Graça, que ondula, de incessantes
nascentes, a vegetal frescura da palavra; a continuidade duma vida abraçando
todas as pequenas vidas; a perfeita humildade, compreendendo o nada das emoções
e vaidades terrenas, essa ordem transcendente e livre só pode provir duma
Unidade plena, duma alma colocada no foco da Realidade, ali, onde os raios do
Amor, unam todos seres.
Essa unidade é a consciência de Cristo.
Que importa o seu registo civil, se só uma
// suprema personalidade moral pode produzir a vida, que os evangelhos contam?
Quanto ao seu pensamento, o escritor que o
tivesse criado seria o próprio Cristo. Quanto à acção como explicar a unidade
dos testemunhos sem a visão dum exemplar? (A. D. G., p. 254-256.) […]
Só as obras do pensamento são o gomo fora
do Espaço e da sociedade cósmica; só a palavra humana pode surgir, sem comover
o Ser; sem ligações, nem realidade, só ela pode inscrever, no vazio, a forma
fantástica do seu nada?!
Sim; é esta a triste fórmula dos pobres
impotentes e insensíveis, que vão supondo, na Arte, uma vida própria, nula e
artificiosa.
São como a rocha, que pudesse pensar o
ritmo das águas circundantes como um movimento íntimo e tão seu que não
abalasse nem comovesse o Espaço onde repousa.
Mas os que sabem que a Arte é cósmica,
mais real que o sol e o chão que pisamos, bem conhecem em todas as obras do
pensamento a penetração da realidade, a comunhão de ser, a apropriação de vida
universal.
Se o Poeta não pode, fora da Natureza,
matizar os campos de flores, muito menos ele pode acender, no Espaço e fora de
Deus, uma nova consciência moral. Ele pode trazer ao inverno as flores da
primavera, como pode dar ao efémero utilitarismo e quotidiano esquecimento da
nossa alma o eterno sublime das almas infinitas. //
A maior realidade cósmica, que aos homens
foi dado ver com os imediatos olhos do Espírito, foi Cristo.
Quem criou o seu pensamento e a sua vida,
toda ela um imediato pensamento de universal e concreto amor?
Pensamento e vida tão unidos que são o
próprio Verbo fluindo do centro do Universo.
Compreendeis a flor sem raiz?
Aqui o pensamento é raiz, pelos veios da
rocha, através do planeta, abraçando o Cosmo; a vida é a flor, embalsamando o
Mundo.
Não é o caso dum ideal suposto realidade,
mas o caso duma realidade ideal em tangível e corpórea presença.
Quem teria pensado tão alta doutrina sem
plenamente a viver? Não é ela um movimento partindo do centro do Universo e
tudo assimilando ao seu íntimo segredo de amor?
A distância entre o real e o ideal pode
existir para os nossos desejos particularistas, para a insaciável sede de
presença que nos queima; não existe para um ideal que é a própria consciência
da mais absoluta realidade, da completa penetração, da inteira compreensão do
Universo. Isto já é muito para indicar que a essência do cristianismo é a própria
alma da existência cósmica; é terminante para mostrar a impossibilidade da
figura de Cristo como // ideal concebido a que se ajustasse a realidade vivida.
Depois, a vida de Cristo é absolutamente
cheia de imprevistos nos mais ocultos detalhes, repassada de acontecimentos de
aparente fraqueza, que o papel heróico de personagem concebido como Deus não
comportava. Como das mais altas montanhas, surge o sol, ainda mais alto, a
reverberar-se na neve, que as cobre, dos evangelhos levanta-se um vulto, que os
excede, e, de cuja luz, as suas páginas refulgem. É a figura de Cristo.
Através dos evangelistas nós a podemos
reconstruir na sua pureza, como a luz branca para além dos corpos, que dela
colheram isolados aspectos. A personalidade de Cristo revela a sua essência
naquele ponto central da sua vida e do seu pensamento, em que através do finito
e do temporal transparece o infinito e o eterno.
O resto é a refracção no atónito
pensamento dos discípulos, no próprio papel do Evangelho.
Entre o que pensamos e o que escrevemos
vai aquele trágico e fecundo afastamento, que não nos deixa escrever um só
livro, mas muitos e sempre, até que a morte suprima a distância entre o corpo e
a alma
Qual não será a distância entre o que
adoramos e o que dele nos é dado dizer?
Cristo é o novo vidente que olhou o
infinito através da alma do homem. //[…]
[O infinito da alma e o infinito do mundo]
Antes que Giordano Bruno quebrasse o cristal
do céu e visse o Espaço Infinito, já Cristo o tinha feito do outro lado, da
alma humana. Nele e através dela, o infinito azul do firmamento.
É a única alma dada ao nosso conhecimento
que não esmaga o homem com o mundo, nem suprime o mundo pela aparição do homem.
O infinito da alma e o infinito do mundo
não são inimigos, não se combatem.
[Cristo, «a mais completa expressão de
comunicabilidade». Espiritualização do planeta. A civilização: alheamento e
ensimesmamento. Somos divinos?]
São a liberdade na comunicação, isto é, o
esforço activo, o mérito, o drama existencial. Dois infinitos, que são apenas o
infinito amor de Deus.
Cristo é, pois, a verdadeira fonte da civilização.
Já dissemos que esta é a espiritualização
do planeta pelas obras do nosso amor.
Tem uma face exterior, é o nosso
crescimento para fora; mas esse crescimento só vale como expressão dum interior
que o crie e, nele, ache ocasião de se aprofundar.
A civilização é um alheamento, quer dizer,
é um transbordar da alma sobre a matéria; para que // se não perca ou desvie é
preciso que seja também um ensimesmamento, quer dizer, uma involução
espiritual, um movimento íntimo para além da aparência e do fenómeno.
Sem isto a civilização aniquila e
escraviza. Bem basta o cadáver do corpo; e a máquina, como ser e fim, é o
cadáver da alma.
O Irracional, o infinito excedente, a
Graça são as fontes da vida.
Deixai-a correr longe destes e tê-la-eis
petrificada e morta. Cristo é esse infinito, presente na obra que passa; é Espírito
animando o próprio bocado de pão, que o nosso humilde trabalho e a nossa
amorosa vontade bem mereceram.
É divino?
Pois não o somos todos no momento em que
palpitamos o ritmo universal, em que temos a clara consciência da unidade
dramática, em que estamos em religioso acordo com o sentido do Universo?
Fixai esse momento, sob o fluxo da hora, e
tereis o tempo a tocar o eterno, a forma a sentir o além da vida que a
sustenta.
Assim é Cristo; ele é a plenitude de graça,
ele é, para além de si, numa perfeita unidade total, num infinito
estremecimento de amor.
Cristo é a mais completa expressão de
comunicabilidade, por ela é o mais perfeito conhecimento. Cristo é a divina
graça, encontrando no // seu excesso o poder de em cada forma repetir o
Infinito; Deus é a graça, e existir e conhecer é comunicar da graça. (A. D. G., p. 257-262.)]
[A humildade]
(…) Deus é a graça, e existir e conhecer é
comunicar da graça.
Não é a humildade, o sentimento
essencialmente cristão?
A humildade natural é a que Nietzsche via
no verme que se enrosca, furtando-se à agressão.
É a retenção de todas as forças, uma pausa
no impulso vital, uma mineralização da vida para fingir a morte. Alguns autores
têm tentado até uma explicação da imobilidade defensiva de certos insectos por
úteis suspensões nervosas aproveitadas pela selecção. É uma degradação, uma
queda das forças vitais.
É, por isso, que o desdém nos afasta quando se nos rojam essas
humildades.
Mas a humildade,
atitude religiosa, é um alto esforço de universal receptividade, de total
compreensão.
Foi por confundir a primeira com a
segunda, ou antes, por não atingir esta, que Nietzsche pregou a inversão dos
valores. (A. D. G., p. 262.)
Vieira, um largo entendimento da humildade
Foi com estranha emoção que encontramos no
altissonante Vieira um largo entendimento da humildade como o sentimento da
própria dependência, imperfeição e miséria.
É o horror da solidão, que ao próprio Deus
não bastou; e, com esse horror, o reconhecimento duma infinita dependência, que
só um infinito amor pode estabelecer e conservar.
Essa humildade é a base metafísica do
respeito pela Experiência, interrogativa conversa dos seres; da tolerância,
reconhecimento dum interior em cada ser; do sentimento social, que é uma longa
experiência de tolerância, conquistando, pouco a pouco, espaço social para as
almas afastadas.
Essa religiosa atitude, que abre na alma
humana // uma cósmica vontade de união, é a fonte da ciência e da arte.
Quando Newton se contenta em achar a forma
da gravitação, deixando como problema pendente o estudo do agente, não é a comovida
humildade da sua alma, pressentindo e amando o Ser, vivo e omnipresente, que
lhe permite livrar-se da idólatra exigência duma acção local para explicar o
movimento? […] Não se vê, aqui, claramente, a alma de Newton comungando o Ser, que enche o Espaço e,
por toda a parte, é presente na íntima e oculta unidade do disperso?
E o que é a arte, senão o Universo visto
através duma alma? // […]
É este sentimento de amável dependência e
inteira comunicação que dá à figura de Cristo uma certeza sem obstinações e uma
majestosa simplicidade. (A. D. G., p. 263-265.)
[Seguem vários exemplos do que é
humildade: «A humildade é […]»; «Ser humilde é […]»…, o rio, o sol, as plantas…
— p. 265-266. A descoberta das almas — p. 267.]
Ser humilde é viver a vida diante de Deus,
em plena e total comunicação com o que existe; é pôr a comoção dos grandes
acontecimentos no episódio mais insignificante; é apagar a banalidade da face
do Ser e dar a cada instante, que passa, a presença do infinito que o anima.
É nesta humildade, neste cósmico
cristianismo activo, que o fenómeno toca a essência e o tempo se tinge de
eternidade.
Aqui mergulha a civilização as suas raízes
espirituais, e daqui ela parte de novo com a seriedade e substância duma alma,
que, criando máquinas e instituições, o faz para órgãos e não para fins ou
destinos da acção. […] //
Em face do cristianismo, um novo sentido
adquirem as instituições: elas são um melhoramento das manifestações ou obras
do espírito
As instituições valem pela maior ou menor
realidade de convivência, de comunicação, que dêem às almas.
Foi a humildade que permitiu a descoberta
das almas. Não se sabia que, em todo o homem existe uma realidade fora de todo
o preço, porque o preço é o particular e a alma é o concreto universal. Só a
humildade podia fazer com que cada alma se dirigisse a outra, aberta em
solicitude interrogativa; sem ela só pode cada alma aviltar as outras, porque a
elas se dirige com o que é só seu a
afirmar e impor.
Só o cristianismo acabou com os escravos;
os estóicos tinham, apenas, uma terapêutica contra a doença ou medo da escravatura.
O cristianismo torna-nos livres, porque o
Espírito existe, é substancial e concreto; o estoicismo dava a liberdade por
uma sábia abdicação oportunista.
Lugar social, isto é, direito para todas as almas, é o que o cristianismo, e só ele,
justifica e exige.
O cristianismo é o que na tradição melhor
representa a realidade como uma manifestação do Ser, como a existência dum
Irracional superior a // todas as razões, a presença em cada forma de um Infinito
que a envolve e vitaliza.
É, por isso, que a integração cósmica da
vida humana está num cristianismo renovado.
O que é a tradição
A tradição é o laço do presente com o
passado, é a refracção do tempo duma unidade anterior, dum princípio de ser. Os
povos vivem na tradição, quando têm uma unidade colectiva a manifestar.
Mas também a tradição não pode ser repetida
simplesmente, porque isso seria a inutilidade de toda a acção, uma nova
degradação da realidade até à identificação pura.
Uma alma, quando se coloca no Universo e
cria a religiosa atitude do dever, faz o que muitas outras já fizeram; mas não
é uma repetição, porque a conquista da máxima comunicação cósmica é a própria
essência de todas as almas.
Viver é renascer, e renascer é retomar o seu lugar no Universo, o seu
esforço de expansiva unidade e dramática comunicação.
A tradição é uma das revelações naturais
do lealismo, persistência e sólida realidade do Ser.
Se não houvesse, para além do Tempo,
princípios de existência, tudo se dispersaria em instantâneas particularidades.
Porque se reencontra a aparência é que
claramente vemos, para além dela, uma sólida e constante realidade. Mas essa
aparência seria diante de nós inabordável e escravizadora, coisa cega e //
bruta, se a nossa actividade a não reintegra no seu valor de comunicativa
realidade. É a estupidez dos que pretendem estagnar as sociedades em nome da
tradição. Estupidez igual à dos supostos inimigos que a dispersem em puro
actualismo sem entranhas, ou dinamismo sem raízes. […]
Uns e outros se abandonam ao demónio do
niilismo, trabalham pela morte.
[Cristianismo, evolução planetária e involução
espiritual,
equivalência das almas,
socialismo, anarquismo, capital, trabalho]
O cristianismo rejuvenescido, levado ao
coração do Ser, é o que pode dar à vida humana o alto significado, que lhe
compete como agente da evolução planetária e da involução espiritual. Nele
devem mergulhar as instituições; a partir dele, elas devem lançar o voo do seu
entusiasmo.
É, assim, que as aspirações de justiça,
que os socialistas e os anarquistas podem representar, encontram possibilidade
de realização, porque recebem um alto valor de verdade.
Essas tendências, quando simplesmente
naturalistas, são equívocos insubsistentes.
A Justiça tem por postulado implícito uma equivalência das almas.
Ora essa equivalência só pode existir na
sua realidade metafísica, no seu valor de absoluto, de amorosa comunicação do
Infinito.
Em relação aos expedientes da sua
actividade, nenhuma alma pode equivaler outra, antes cada uma é um separado eu, e tudo o resto é fora da sua propriedade e inexistente. (A. D. G., p.
266-270.)
O socialismo, sendo dum certo modo uma
reacção contra a dispersão industrialista, não deixa // de pecar do mesmo
vício. É uma idolatria da organização, uma crença na justiça intrínseca das
instituições.
Traria uma tremenda sobrecarga de
regulamentação e burocratismo, exactamente daquela parte da vida social que,
por mais materialista, mais esmaga e esconde a vida interior, a realidade
espiritual.
O anarquismo tem um grande horror à
regulamentação e tudo espera das grandes virtudes individuais e do natural
acordo dos indivíduos. Ùnicamente, como já vimos, não é possível um acordo
natural das vontades, porque a simples natureza não pode levar o homem para
além do conceito de interesse colectivo, difícil de definir e sempre sem poder
próprio bastante a subordinar todas as modalidades dos interesses pessoais.
São dois modos de pensamento, ambos
maculados da ignorância e ausência do infinito, reflectindo temperamentos
distintos.
O socialista é o homem metódico, de formas
claras de activismo técnico.
O anarquista tem mais violência e sonho, é
inimigo das formas, cujo cujo aprisionamento pressente e receia; mas, como não
atingiu a Unidade em que desapareça a antítese, para além das formas, vê apenas
uma força inqualificada e estuante. Um é, em sociologia, o católico apaixonado
do exteriorismo das instituições, nelas supondo virtude // própria e
fecundidade. O outro tem a fluidez do cristianismo, mas, sem ter aprendido a
fonte original, está ainda no informe, antes, da concreta unidade de
comunicação, que é a razão das formas, o infinito que as levanta e embebe.
O Trabalho será remodelado conforme a
Justiça, quando ele for apenas a manifestação do Espírito. O Trabalho não é um
castigo a que a nossa imperfeição nos condena, é, muito diferentemente, a mais
clara e pronta afirmação da nossa compreensiva dependência.
Se o homem não tivesse os olhos abertos
sobre o espaço constelado, errando de astro em astro, em contemplativa
admiração dos cósmicos laços, que o abraçam no Infinito, bastaria o trabalho a
trazer a vida planetária e com ela a vida sideral, ao amor da sua atenção.
Se trabalhamos, é porque uma relação sem
apoio nem esforço, nenhum valor representa para o nosso desejo de comunicação.
Uma só coisa é gratuita: a própria
existência social, o Universo comunicativo e dramático. Isso é o generoso
excesso divino, a Graça persuasiva para onde se inclinam, doce, mas firmemente,
todas as intenções da alma, desde o mais oculto frémito de espaço e movimento
até ao claro desejo de absoluto, à lúcida consciência da substancialidade do
dever. //
O drama da existência, isto é, o rumor e
encanto da vida, a comunicação e o desejo, é a gratuita dádiva de um Deus,
disperso em sociedade para se reencontrar em real e concreto amor.
Mas o trabalho, que é a representação
desse drama, é a acção da nossa liberdade afeiçoando o mundo aos seus intentos;
é a própria vida da nossa atenção, interrogando e refazendo a realidade.
O trabalho é uma consequência da graça
divina, criando um mundo comunicativo e com significação moral.
É, por isso, que o trabalho sendo uma
aplicação da nossa liberdade, é a sua imediata revelação.
Só quem trabalha se sente livre e
realmente existente.
Em todo o trabalho há a comunicação do
homem com o Ser, e, entre o artífice e o poeta, há maior parentesco que é
vulgar supor-se.
O momento, em que o trabalhador sente que
conquistou a técnica, é um solene momento em que compreende a linguagem e a
essência do movimento. A costureira, que trabalha um vestido, repete
interiormente os movimentos, que, na Natureza, talharam as linhas, as
ondulações dos corpos femininos.
Estendendo o movimento até à sua intenção
social, o mínimo trabalho adquire verdadeiro valor.
Dependem tantas ou mais vidas, da atenção
e // seriedade dum guarda de linha ou dum faroleiro, que da honestidade
profissional de um médico.
Quando cada um trouxer ao seu trabalho uma
alma religiosa, um comovido espírito de universal e mútua dependência, será o
trabalho, mais que a Alegria, a directa oração, o espontâneo, pronto e eficaz
agradecimento à divina graça, que nos deu o convívio, a virtude de fraterno auxílio,
que, no mesmo abraço unificador, acolheu as nossas particularidades e
imperfeições.
O Trabalho começando pela penetração da
realidade, pelo relacionamento do homem com a existência, deve alargar o seu
movimento de apropriação até atingir a própria fonte da realidade, donde o seu
esforço de compreensão partirá, renovado, a abraçar todo o Universo.
Este processo de evolução, involução e nova evolução é o caminho das almas no
seu cósmico aperfeiçoamento; deve ser também o processo educativo, a sugestão dada
ao nativo desejo, à intrínseca tendência de comunicar e agir. (A. D. G., p.
270-274.)
*
* *
[A Solidão e o Silêncio. A Graça, a infinita e
absoluta presença]
Na hora serena do crepúsculo escolhei um
lugar bem solitário para a vossa meditação.
Cessa o falar diurno, fundindo as suas
vozes num grande mar de Silêncio. // Dentro de vós, viviam formas e vultos, as
palavras nítidas, as intenções claras.
Agora todas as formas morrem lentamente
como os relevos continentais que um oceano viera cobrir.
Ao grande Silêncio do mundo segue-se o
imenso Silêncio da alma; como dois mares separados pelo beijo do Sol, um
visível da sua luz moribunda, outro de amanhecente e invisível corpo.
Pondo o vosso silêncio de acordo com o
grande Silêncio das coisas, ponde o coração de acordo com uma realidade
cósmica; acompanhai, por exemplo, com uma forte tensão de vontade, o sol no
declinar da despedida.
Olhai bem o disco a afundar-se e imaginai
que a vossa vontade o move. Em breve tomareis a sério a vossa ilusão, e, a um profundo
abalo de todo o ser, conheceis que sobe o Mistério se vos abriu um novo
sentido.
É que o Universo é cheio de misteriosa
vida oculta, que embebe todas as formas; à mínima inclinação no bom caminho
responde o frémito de infinitos contactos do invisível, enchendo de ser e
realidade a quotidiana insuficiência.
Como o ar em torno dos corpos se oferece
aos estremecimentos do seu espaço, como o éter é dócil às mais longínquas
comunicações, o Ser é presente em todo o Universo, pronto a penetrar de
afirmação todas as formas que se inquietem. //
Erguei as mãos ao Céu e o vosso pensamento
seguirá o gesto, pleno de emoção e entusiasmo.
Pascal o disse, e a parte de verdade
contida na teoria das emoções de William James não é mais que a sua
confirmação.
É que entre o movimento e o Ser há uma tal
correspondência que se vos inclinais para o mistério, logo ele vos penetra.
É a divina Graça, a omnipresença
invisível, correndo a encher as almas, como do silencioso flanco das montanhas
corre a loquacidade dos vales verdejantes.
E, como à sombra da Montanha, na sua
protecção amiga, se encostam as aldeias brancas entre os choupos, na sombra
divina se abrigam as almas, interrogativas e humildes.
O Silêncio da Montanha fez-se o murmúrio
dos vales, como a Solidão de Deus se fez amor entre os homens.
Esse amor colocado em Deus é o contacto
pleno e imediato, a convivência perfeita, sem estorvos, nem limites. Eis porque
o imponderável nos aparece lá, onde a nossa alma mergulhou na Solidão, onde a
nossa atenção escutou o Silêncio.
Em toda a parte, onde um grande Silêncio
mora, sentimos o palpitar dum pensamento: a omnipotência do Ser no corpo da
realidade, a posse, que, do Universo, Deus toma permanentemente. //
Fora do rumor todos sentimos uma
misteriosa e exultante imponderabilidade.
É que o peso é uma forma da presença, e,
na vida comunicativa e particular, é o mais absorvente abraço do homem e do
planeta, do planeta e do Céu.
Se o homem vivesse mal pousado sobre a
Terra, que comunhão podia existir entre o seu ser indeciso, sem espaço de
acção, e a plenitude dum Universo que é
se conserva?
Mas, quando fora do rumor ele se encontra
como parcela do todo e sabe colocar a sua alma na directriz da universal
compreensão, sente, quase vive, o infinito excesso, a divina graça, que, sendo a
concreta unidade do amor, em toda a parte é presente, imediatamente, por
intencional virtude, sem esforço de particularização.
A Solidão e o Silêncio dão-nos um
sentimento de imediata presença e integral plenitude; não é Deus sentido na
repetição interior dum movimento que tudo abrange, é a Graça divina espalhada
em todo o Ser, como certos beijos maternais, boiando na face infantil em
líquidos sorrisos de ventura.
Como o viajante, que, chegado ao alto, repousa a vista na frescura das
gargantas, por mais que os olhos se percam no céu, jamais esquecerá a terra, o
pensamento, chegado à Graça, é oração imediata, hino de louvor e alegria, onde
todas as imperfei- // ções fundem o corpo de esforço e drama num eterno
significado de comunicação e amor.
É o Invisível, o Inefável, o Inominado que
povoa toda a Solidão, que enche de cósmicas e substanciais palavras todo o
Silêncio.
Porque sentimos a universal presença,
quando os terrenos e quotidianos olhos nada podem ver, quando os ouvidos, como
as conchas repetindo sem o saberem as vozes do Mar, são abertos perante o
imenso oceano do Silêncio, é que se nos anunciam esplêndidas realidades, no
além dos nossos cuidados, maravilhosos mundos de quimeras, onde, por ventura,
os mais deslumbrantes dos nossos sonhos iriam encontrar a medida da sua
insignificância.
O estado de graça é o sentimento da
presença universal.
Estar em graça é olhar o Universo daquele
invisível centro de amor, que é o seio de Deus.
Estar em graça é parar suspenso no meio do
ruído a ouvir vozes das bandas do Silêncio.
Estar em graça é ir devagar na Solidão a
conversar com o invisível, a encher de humanas palavras amorosas todo o Espaço
sem voz.
Na Solidão e no Silêncio, ali onde a nossa
atenção se volta no sentido do oculto, a Graça tece, de tenuíssimos e
misteriosos fios, as ligações que prendem a multidão rumorosa, medita o verbo,
que é o pão e o amor de todas as bocas. //
E a Graça, em excessivo além dos sentidos,
é simplesmente a absoluta e infinita presença. Enche a Solidão e o Silêncio, mas
de presença inefável, universal contacto amoroso, onde as formas se diluem e a
comoção interior é a fremente quietação dum beijo sem lábios.
Tão para além dos sentidos, tão pura
presença é a Graça que todo o movimento se encerra, e a plena posse é, agora, o
perfeito absoluto contacto.
É a Serenidade em subtil e invisível corpo
de amor, vagueando no Silêncio e na Solidão.
De tudo o que para nós é a vida resta a
Presença, sem formas, nem limites… Tocada a Presença, logo a solidão se faz
companhia!
Essa presença é o Amor, e, por isso, o seu
corpo subtil é de femininas formas, delicado e etéreo. A Graça nós a vemos,
para além dos olhos, imponderável corpo de Mulher, vagueando na imensa Solidão
do Espaço.
E de lá, os seus pensamentos discretos são
a florescência, e a harmonia dos mundos. É a Virgem, porque da sua solidão nasceu o mundo e o amor das
almas. À medida que essa imagem se nos ergue no pensamento, este adquire, de
novo, uma tal fome de certeza e concreto que a Virgem amorosa é já a
maternidade; e, no seu seio, como as flores nos braços primaveris das árvores, sorri
um infante, eterno fruto do seu Amor. //
Dos seus lábios, o sorriso sobe para o
sorriso materno, e, no sulco de luz e bondade, que é o seu encontro, o Universo
voga sem esforço, numa perpétua comunicação do Mundo com Deus pela alma do
homem, de Deus com o homem pela solidária harmonia do Mundo. (A. D. G., p. 274-280.)
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