terça-feira, 15 de março de 2016

SIMPÓSIO DE HOMENAGEM — O PENSAMENTO DE MANUEL FERREIRA PATRÍCIO

24 de Fevereiro

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Fica aqui uma memória mínima do segundo dia. Na Sala Antão de Almada em ambiente de amizade, amigos e colegas no mundo da educação e da filosofia vieram homenagear Manuel Ferreira Patrício com a presença, mais do que assistir à homenagem. As pessoas estavam ali, estávamos ali, porque queríamos viver um momento tão especial, algo surpreendente..., inesperado. Como surge o poema? O poema também surge como acção. Creio que o tempo foi relativamente escasso entre a ideia e o feito. Os «poetas» que nos trouxeram aqui foram muitos, afinal: os promotores, as entidades associadas, a comissão organizadora e... os apresentadores de comunicação; os que deram o seu testemunho.
As comunicações foram muito boas. Não querendo distinguir ninguém, apreciei a análise do Prof. Manuel Cândido Pimentel sobre A Pedagogia de Leonardo Coimbra: Teoria e Prática1, no tempo que dispôs para a fazer, mesmo sabendo que escreveu obras de fundo sobre Leonardo Coimbra. Falou, na leitura que dela ia fazendo, da parte da tese de Manuel Ferreira Patrício em que este analisa e saboreia com vagar A Alegria, a Dor e a Graça. A Alegria, a Dor e a Graça, regiões da existência. Pareceu-me ouvir isto. Vamos esperar pelas actas. Leonardo fala, logo na página um, de núcleos de realidade, entre eles, o Píncaro da Alegria.
Leio algumas páginas de A Alegria, A Dor e a Graça, uma obra-prima de Leonardo Coimbra. A memória do livro parece que se desvaneceu, ficando apenas a certeza do grande prazer que tive na sua leitura. 
O folheto, acima, merece leitura pelo dizer muito em pouco espaço, numa breve nota sobre «o mestre eborense» e a sua actividade científica, no horizonte da formação do homem e nas mais informações, incluindo o programa.
________________
1 Tese de doutoramento do homenageado, escrita em 1983, mas só publicada em 1991. O título é um tanto enganador, pois  a pedagogia é interpretada, fundamentada e vivida numa perspectiva filosófica.

Manuel Cândido Pimentel, Manuel Ferreira Patrício, Maria de Lurdes Sirgado Ganho, António Braz Teixeira

Os mesmos e  Sofia A. Carvalho

Maria Leonor Xavier, Fernanda Enes, Joaquim Cerqueira Gonçalves, Mendo Castro Henriques, Renato Epifânio

Manuel Ferreira Patrício, Joaquim Cerqueira Gonçalves, Esteves Pereira, Pinharanda Gomes, Joaquim Pinto, Samuel Dimas
(Fotografia: Maria Emília Apolinário)

Maria Lucena Sampaio Borges, Helena Briosa e Mota, Joaquim Cerqueira Gonçalves, Maria Emilia Apolinário


*
A Alegria, a Dor e a Graça

Tópicos e Antologia

Tópicos
«A Experiência é a socialização do nosso ser ou liberdade com os outros seres.» O indivíduo e a pessoa; o abstracto (particular) e o concreto (universal).O indivíduo é abstracto; é-se concreto no movimento e na sociedade cósmica.  A dor e o pessimismo: a morte de um filho, a morte do primeiro filho de Leonardo Coimbra (págs. 170-172). Referência ao segundo filho nas páginas 33 e 34.
 As teorias evolucionistas e fixistas e a unidade excedente; a Unidade revelada na evolução (págs. 226-228). Sente-se Teilhard de Chardin; são pensadores independentes um do outro; as obras ditas não científicas de Teilhard foram publicadas a título póstumo, a partir de 1955. Cristificação. Cristo, S. Francisco. Também lembro Nietzsche, pelo fascínio que a escrita de ambos exerce em quem os lê, apesar da enorme distância que os separa, desde logo Nietzsche é anticristão e Leonardo, cristão até à medula. O cristianismo vulgar. A humildade. Também, aqui, nomeia Nietzsche, na sua arrogância. Cita e admira Newton; imponderabilidade e peso bom. «Quando Newton se contenta em dar a forma da gravitação, deixando como problema pendente o estudo do agente, não é a comovida humildade da sua alma, pressentindo e amando o Ser, vivo e omnipresente, que lhe permite livrar-se da idólatra exigência duma acção local para explicar o movimento?» Admira Bergson. Entropia. Evolução planetária e involução. Unidade. Irracional. Excesso. Invisível, Inefável, Inominado.  Os sábios medíocres e a sensação pronta e fácil. Os teóricos do progresso; progresso e involução; evolução, involução e nova evolução; involução nodal. O Capital e o Trabalho. Materialismo e espiritualismo: elogio à França e censura à Alemanha. A escravidão e a tirania, tentativas niilistas. O Mistério. Solidão. Altitude. O Silêncio da Montanha. A Alegria. A Dor. A Graça.
Um relevo especial para as últimas páginas (274 a 280), abaixo integralmente transcritas.

Antologia

[A Alegria*]
Eis a primeira Alegria: a Alegria da Aurora. As vidas não despertam, renascem; e eis porque cada alvorada é inédita, sem par.
O mundo sai do Caos todas as manhãs. louvores à primeira alegria, que é a perpétua vitória sobre a Morte, a renovada e eterna Criação.
É a alegria da cotovia e das crianças!
No primeiro sorriso luminoso caminha embalado o canto da cotovia e a babélica garrulice da humanidade infante.
A criança nada e canta na luz matutina. Olhai o pequeno bebé: todo ele é movimento para o Oriente, inconsciente, rápida e decisiva oração de carne; todo ele, como imponderável, se agita, soergue e balança na réstia de Luz, que lhe beija os cabelos; todo ele grita, se atira à Luz, lança a treva da palavra, crepúsculo da alma que se avizinha.
Vindas da Unidade Maternal, as formas apenumbradas conservam-se fora de limites nítidos e isoladores. A vibração inicial não se estendeu ainda à superfície definitiva, brinca no Espaço como se fora seu, exibindo, na agilidade graciosa do seu descuido, o poder infinito donde dimana.
Nas proximidades da Origem, é para uma//criança, mais no seu espaço, mais em contacto, o Sol, que lhe auscultou a fronte, que as próprias mãos do seu corpo.
O sorriso duma criança adormecida é a espuma da Alegria flutuando sobre a sua mesma oceânica fundura.
(A Alegria, a Dor e a Graça / Do Amor e da Morte, I volume das Obras Completas de Leonardo Coimbra, Livraria Tavares Martins, Porto, 1956, páginas 12-13. A primeira edição é de 1916, da Renascença Portuguesa, Porto.)
* Esta parte vem desmerecidamente breve. Tem páginas maravilhosas sobre o amor.
[A Dor]
Mas, nessa mesma senhora, a intensidade da dor excedeu o pessimismo, e, em breve, o seu conceito mais ou menos materialista do mundo foi pulverizado pela tensão dum espiritualismo, irrompendo com tal fome de presença que hoje é certa a sua esperança numa misteriosa compensação das nossas perdas.
Por mim, nunca tive tanta vontade de afirmação espiritual, nunca de tão fremente impulso tendi para um consciente e obstinado quixotismo, como depois que um filho me adoece e morre, quando ergo, no primeiro livro, a melancólica afirmação do meu optimismo.
Optimismo, não porque o mundo seja óptimo, // mas porque o desejamos fazer bom, amoroso, penetrado de consciência e entendimento.
E, agora, ao meu lado, um outro filho brinca e grita a alegria de viver, sem que a sombra da Morte, que vou evocando, me tolde a serena meditação das palavras.
É fácil ser pessimista no correr duma vida sem atritos; mas se a tragédia surge, se o dilema aperta, é então tamanho o nosso conhecimento do mal, tão profunda a sua assimilação que, do outro lado do abismo, clareiam novos astros.
Que saberão dizer da vida os que nela passam em busca de pretextos literários, de opiniões totais focadas do seu quarto de leitura?
O mar é tão fundo, tão fundo que duas cordas de carro não chegam ao fundo, dizia um dia um camponês, que fora a banhos, para um patrício assombrado.
A vida a duas braças, mal beliscada a epiderme, que pode saber da Dor, oceano insondável, se nos não valemos dos máximos afectos, das mais amplas e compreensíveis ligações.
A Dor leva ao maior conhecimento, porque obriga a uma indagação em todas as direcções e sem repouso, porque torna sensíveis os mínimos laços, porque é a penetração da alma através do cosmo, como raízes famintas estalando os penedos, que, da boa e desejada terra, as estão separando.
A Alegria é vitoriosa e simples, a Dor é como-//vida e transcendente: é um amoroso recurso às profundidades do abismo, um inclinar de atenção para todas as forças ocultas, um paroxismo de metafísico amparo, um esforço do coração para o ritmo dos outros corações.
A Dor é uma incessante pergunta, uma humildade contemplativa e amorosa, um andar de companhia com o mais recatado sentido das almas, é o maravilhoso cristal através do qual se recompõe a unidade da luz para se nos mostrar o Universo em nova claridade.
Se me dobro sobre a boca duma fonte, é o murmúrio da água que me leva para o interior da terra; se escuto uma alma, que sofre, é infinito o meu caminho e na obscuridade, que percorro, vou divisando um remoto luar, amanhecendo do abismo das almas e dos mundos.
A primeira promessa de lealdade e o primeiro beijo de amor foram feitos do primeiro sofrimento duma alma, que se viu incompleta e procurou além...
Os homens e os povos só são grandes pela Dor. A Alegria banaliza e adormece, a Dor inquieta e dinamiza.
A derrota da Alemanha é, numa boa parte, feita da dos Belgas.
A Alegria atravessa o mundo em marcha; a Dor bate às portas a esmolar companhia.
O mendigo, que atravessa a aldeia, de casal // em casal, é a dor que lembra aos homens o quanto de impenetrabilidade e solidão eles lançaram sobre a vida. E ele diz que a indiferença do Céu para os nossos desejos não é maior que a nossa incompreensão de alma para alma.
Nunca uma grande ama se sentiu desgraçada no meio da Dor; e, aí, a alma de Óscar Wilde atingiu a beleza divina, a altura do pensamento, a simplicidade de infinita fundura.
Há quem, com o pretexto de amar a vida, dê ao paganismo a superioridade da Alegria sobre o cristianismo como religião da Dor.
Nem é outro o motivo das teorias de Nietzsche.
Sim; o cristianismo é a grande religião da Dor. De tal modo ele acolheu os pobres e os miseráveis que não nos acode a lembrança da mais luxuosa catedral ou da mais modesta capela sem um longo círculo de escorraçados da Alegria, implorando amor e piedade.
Amar a vida é compreendê-la, alargar o seu círculo de acesso para lá das vitórias naturalistas da selecção, dar-lhe um sentido que se não perca e valha em absoluto e substância.
Se o paganismo vibra de infantil alegria naturalista, o cristianismo é a Alegria reconquistada, o sol depois da tempestade, a dignidade e certeza da vida, de olhos abertos e atentos na face da morte.
A Dor é o caminho da redenção. // Para salvar as almas da treva exterior e da morte, preciso era ter delas um conhecimento que as talhasse em relevo inapagável; só a dor leva os olhos ao fundo do abismo e arranca a profundidade à luz da superfície.
Vènus Antheia deixava, em vestígios dos passos, sulcos de flores; o rasto do cristianismo é de lágrimas, agonias e bênçãos.
Leprosos, paralíticos, endemoninhados, bordam os caminhos de Cristo; e tantas vezes a sua palavra, toda perfume, enlevo e mimo, se interrompe para que as mãos toquem gangrenas.
Eu também acredito que Jesus veio em testemunho de Deus e, por isso mesmo, sofreu como ninguém, sondou a Dor até àquele ponto onde ela se transfigura em imortal Alegria.
Por isso amou os que sofrem, os inquietos, que buscam, na singeleza da sua alma, um seio de amor, onde acalentam a bondade.
A sua palavra dissolvia os corações empedernidos, em viva água de humildade, porque falava à dor, ao naufrágio das consciências no grande deserto da vida mortal.
O que há de mais sublime na vida de Cristo é a nova harmonia, que realiza dentro da Dor.
Antes dele houve uma vida de proporção e harmonia, mas dentro da clara alegria de viver.
Só ele conseguiu a tranquilidade na Dor, a // beleza na tragédia; fundir o sublime na harmonia do belo.
Percorreu todo o ciclo da Dor, mas com tanta liberdade que os seus gemidos caminham a sorrir para as nossas almas.
A Dor é, para nós, o sentimento de separação, de insubsistência e fragilidade.
Se nos obstinamos pela consciência, por um significado espiritual da vida, se, trepado o nosso Gólgota, olhamos o horizonte, o vendaval do Mistério impele-nos duma força sempre pronta e excessiva, o ser penetra-nos da sua essência espiritual.
A cada momento nos é preciso o esforço de bem para que o bem nos envolva da sua presença.
Cristo sabe que Deus fica para além dos areais da Dor, que é preciso atravessar o Deserto para alcançar o nemoroso oásis de água viva e perene; o seu passo é seguro desde o princípio, ele leva, em si, a frescura da fonte original.
Atravessa a Noite, como o cometa flamejante, ardendo em luz própria e originária.
Não se curva de incerteza na expectativa da mão que o há-de guiar e impelir; é do Interior, onde já Deus é vivo, que a certeza o conduz.
Não é um drama em que uma alma defronta o Universo e clama exigências que a excedem; é o Drama duma alma já certa do seu caminho, senhora da sua essência de vida eterna.
O nosso quixotismo é heróico, sobressaltado. // Jesus é sereno, porque o heroísmo leva desde o início a certeza da vitória.
No entanto, tudo ele atravessou: a traição, a insegurança da amizade ameaçada, o escárnio, a ingratidão e a cegueira, a brutalidade, a cobardia, a sede e o abandono.
Todo o cristianismo é um ensinamento da Dor. [...]
A indigência facilita a salvação, porque tira o homem debaixo dos bens, que, não sendo da alma, a sobrecarregam e desviam.
Ela é precisa para fazer sentir ao homem quanto é fútil a riqueza exterior, alheia ao destino, ao sentido da alma.
Ela é boa, porque não esconde o peso da existência, o sofrimento e o mal; não furta o homem à grande experiência da Dor.
Mas de nada servirá a lição do cristianismo, se nos furtarmos ao conhecimento da sua experiência. O cristianismo vulgar, simples pretexto para // um certo número de festas mundanas, ou o cristianismo chamado, apenas, a proteger os interesses quotidianos, nada possuem da grande experiência de dor, que o alimentou e subiu à maior das atitudes do homem perante a indiferença da Natureza para a sua insaciável sede de alma. Toda a vida de Cristo é o mesmo drama do homem e da natureza, da consciência e da indiferença, da memória que perdura e do mundo que dispersa e morre. É uma relação do homem com o Todo; quem a não vive jamais poderá compreender o cristianismo, que de cósmica atitude religiosa se torna uma fórmula da hipocrisia social.
A preferência pelos simples, por aqueles para quem a facilidade de vida não tem regalos, que adormentem, afirma a Dor como uma cósmica experiência insubstituível.
A agonia de Jesus na herdade de Getsémani «a minha alma se acha numa tristeza mortal...» mostra a sua figura alada e forte carregada de todo o peso da dor, conservando ainda a liberdade de aceitar e cumprir a vontade do Pai celestial.
Essa confiança no perfeito amor e cuidadosa presença do Pai celeste, só o homem a pode conseguir vivendo profundamente as suas dores, a tal ponto que ele as sofra como dores universais.
Então, quando cada homem sentir a morte dum filho, não como uma perda pessoal, mas como uma radical impotência da Natureza, tal será a // distância entre os desejos da sua alma e a imediata realidade do mundo que o heroísmo das suas virtudes, a persistência das suas afirmações espirituais serão, para ele, a presença duma força moral, que o impele e levanta. A Dor há-de aparecer-lhe como o melhor caminho para Deus, e as chagas de Cristo os buracos dolorosos por onde, e para sempre, os olhos do homem viram o Infinito.
E aquele estupendo hiato do evangelho (lugar aberto a toda a especulação) em que Pilatos pretende saber o que é a Verdade, será cheio de toda a Dor humana; Jesus, falando, apenas acrescentaria, de palavras, o corpo sangrento da Verdade...
(A Alegria, a Dor e a Graça, páginas 171-179.)

[A Graça]
A graça é a sensação da liberdade. Aparece em toda a parte, onde uma força se liberte e pouse, sobre a tranquilidade da forma, o sorriso do seu excesso. (A. D. G., p. 181.)
O Universo é uma ordenada coexistência.
Nenhum ser se pode esconder ou furtar às // actividades que o cercam. No ponto e no instante está o Espaço e está o Tempo.
No indivíduo está a Espécie e, mais além, a própria Vida, ligando-o ao planeta e aos mundos.
O episódio não existe, porque, ao acidente, que passa, assiste a essência que perdura.
A Graça, sendo o sorriso do Universo, que se possui e ama, pode revelar-se no acidente e no indivíduo, no ponto e no instante.
Na agilidade contente do movimento infantil, ou na microscópica magnificência duma diatomácea, trabalha uma força, que, sob o Oceano e o Céu, sem esforço nem diminuição, desdobra o infinito no seu poder, sobrelevando a obra.
A Graça é a sensação da liberdade, porque é, em cada forma, a presença do Infinito, que a criou e sustenta. 
Há criaturas cheias de Graça, que, pela libertação duma força de excesso, no meio das mais apertadas crises, tornam a sua presença um bálsamo, um conforto e uma certeza para as nossas almas. [...]
O sentido fruste e trivial, que tem a graça, é ainda o de libertação e facilidade. (A. D. G., págs. 182-183.)
A Alegria é a unidade concreta dum Universo: sociedade pronta e patente; é, pode dizer-se, a realidade do Ser planificada.
A Dor é a nova direcção da Unidade, quebrada em mil destroços, fragmentada e dispersa, buscando para além.
A Graça é, antes da Dor, o sorriso da Alegria; é, depois da Dor, a Unidade reconquistada boiando sobre os destroços, que, por ela, tomam um novo sentido de Alegria, um lúcido corpo de drama, um valor de revelo e exaltação.
A Alegria atinge-se, é a nossa realidade imediata e é também a nossa conquista.
A Graça é, no indivíduo, a presença dum Infinito de qualidade, que tudo abrange e excede.
A alegria é a vitória, em cada ser, do sentido // de concreto universalismo sobre o abstracto individualismo.
A Graça é o próprio Universo que é presente, por dentro e em espírito, em cada parcela -- átomo, mundo ou criatura.
A Alegria canta, a Dor procura e atende, a Graça é.
A Realidade, desde a mecânica à moral, é uma unidade concreta; quer dizer, a comunicação de muitos. A sensação é, na psicologia, o análogo da inércia na mecânica. [...] O mundo sensual é ainda um Caos, mas um Caos real e significativo, afirmando um conjunto, um todo.
A Graça é a apreensão do universal no parti- // cular, e, quando o primeiro sorriso infantil luariza uma face, é a providência amparando a fraqueza, o anjo da guarda que está vigilante.
Quem uma vez sentiu a graça, viu o próprio Deus. Vejam como ela é variável e sempre fácil em cada instante e realização.
Qual de nós, de amorosas comunicações tão estreitas, poderia, com graça, libertar um cordeiro que vai destinado à morte?
E não o fez S. Francisco de Assis?
É que, nele, a amorosa comunicação vai até ao irmão lobo, ao Sol e à Lua, e, em nós, mal chega aos mais próximos seres humanos.
O que, no humílimo santo, é a presença da amorosa unidade, seria nos outros uma inversão das ligações, uma estúpida separatividade.
Conheço uma senhora que oferecia dinheiro a quem, ao Mar encapelado, fora a buscar-lhe uma cadelita. Era a vida humana explorada em proveito da vida animal.
No entanto, era graciosa essa mulher; mas implìcitamente, mas linhas do seu corpo, na flexibilidade ondulante da vida, espraiada nas suas formas. O Deus que a sua graça mostrava, era um bom deus pagão, pelas margens dos regatos procurando, nos salgueiros, as ninas que os habitam.
Graça panteísta e simples era a sua, graça búdica e cristianíssima, o maior valor do Universo, era a do santo mendigo. //
É gracioso o jogo de luz que é o brincar dos peixes ao lume da água, mas também (e a que distância!) é gracioso o falar de Cristo.
Todavia é sempre um excesso; o excesso sobre a utilidade do instante, sobre todo o Tempo, todo o Espaço, todas as formas e todas as vidas.
Em nenhum caso existiria, pois, a graça, se o Universo fosse um mecanismo, uma mera necessidade, uma absoluta actualização.
A Graça é o sorriso da liberdade.
Mas existe a liberdade? Não será uma ilusão e, com ela, a Graça uma sensação falaz?
Se quereis um universo sólido e consistente, onde a acção encontre ponto de partida, fim e meios, tereis de admitir o mais absoluto e completo determinismo.
Se quereis um Universo alegre e gracioso, que que vos não apague e suprima, que não substitua a cada um todos os outros, de modo que nenhum exista, tendes de nele colocar a mais positiva e real liberdade.
Eis os dois extremos, que tendes a respeitar. [...] (A. D. G., págs. 184-187.)

[Liberdade e tirania; sentido cósmico]
Os dois escolhos da liberdade humana são a escravidão e a tirania.
[...] A tirania e a escravidão têm um mesmo processo e um fim comum — o homogéneo.
[...] A escravidão e a tirania são a mesma coisa, são tentativas niilistas.» (A. D. G., pág. 188.)
Pode dizer-se que a realidade é o infinito animando o nada.
É, neste sentido, que se deve entender a criação; e, neste sentido, ela é contínua e permanente.
Se os deuses dormissem, haveria o nada. (A. D. G., p. 189.)
Só o sentido cósmico da realidade vos poderá dar a compreensão do planeta e do abismo, rumoroso de astros. Sim; só o significado universal da // existência pode fazer ouvir certas vozes, dar verbo a certas ansiedades suspensas.
O que significa nossa emoção, a súbita fonte de eloquência, que, em nós, desperta a presença dos espectáculos da fatalidade?
Quem não tem sentido que basta uma palavra a pronunciar para desfazer a fatalidade, que esta resulta dum equívoco, que vamos evitar? [...]
Trazei ao quotidiano, o eterno; à parcela, o todo, ao acidente, a essência.
A fatalidade não é mais que a queda das forças criadoras, o sono da vida, a lâmpada que quer dispensar o sol e se morre à míngua de alimento.
Se deixarmos cristalizar as formas da actividade, ficará esta enclausurada entre os cristais.
Desde a prática metafísica até à prática social de todos os dias, são os produtos da actividade os seus piores inimigos.
Porque deixou estagnar o Tempo e o Espaço longe da ideia que lhes dá o ser, foi o pensamento humano aprisionado no ponto e no instante.
O materialismo do Tempo e do Espaço, de // qualquer absolutismo que ele resulte, aniquila a liberdade, retirando o interior a todas as existências.
O materialismo das obras duma civilização pesa sobre o seu espírito criador.
É a tirania das coisas, que a guerra europeia veio revelar aos mais míopes e que, desde o nosso primeiro (1) livro, predissemos e afirmamos.
Na grande guerra, é exactamente a civilização industrialista pura, a superioridade das coisas humanas sobre o homem, que sofre o juízo de Deus. (A. D. G., páginas 191-192.)

[Unidade]
Em cada ser vivo é presente uma unidade do seu corpo e uma unidade de vida, que o liga em todos os seres.
E todas as leis científicas são a procura da ideia platónica de que participa cada realidade singular. (A. D. G., p. 195.)
Esta Unidade é sempre presente desde a simples existência mecânica aos laços da gravitação, do abraço eléctrico, esboço da alma envolvendo o planeta, dando aos corpos uma polarização, até à unidade da vida criando as formas e à grande unidade moral ligando as pessoas, dando aos seres um destino comum.
Por não ser quantificável, não a esgota também nenhuma qualidade, ela é sempre um excesso sobre todos os seres e fenómenos.
Daí o duplo aspecto da realidade. Ela é contável e descritível, ela é infinita e inominada. (A. D. G., p. 196.)
[A acção, o movimento]
A primeira, a única, a constante realidade é a acção.
É, por isso, que o movimento é a expressão do Universo, a sua única linguagem.
É o movimento que cria os novos meios da acção, e, sobre este ponto de vista, o espaço o tempo são criações do movimento. (A. D. G., p. 197.)
O movimento é profundamente realista, porque o Universo é uma sociedade. [...]
Sendo o movimento a simples afirmação metafísica da realidade social do Universo, ele será subjacente a todas as posteriores manifestações dos seres ou arranjos dos fenómenos.
Daí a sua universalidade, que Descartes apontou e toda a ciência mais não fez que confirmar. O erro materialista consiste em, esquecendo o seu sentido metafísico, dizer que tudo é movimento em vez de dizer que em tudo há movimento.
Nós só conhecemos seres e fenómenos. (A. D. G.,p. 199.)

*
O determinismo e a liberdade são dois pólos abstractos da actividade cósmica, que sabe muito bem viver entre eles sem falsos compromissos, mas em superior e criadora síntese. (A. D. G.,p. 202.)
Há, pois, em tudo o que se nos afigura real e positivo, uma implícita actividade.
Essa actividade exige um ser, este ser é a alma. (A. D. G.,p. 203.)
A alma é, pois, um ser. [...]
A alma humana é um ser, tem actividade própria, é livre. (A. D. G.,p. 204.)
Em nenhum caso é necessitado o acto moral, e, se compreendemos inteiramente um carácter, isto é, se é do nosso carácter que se trata, ainda só a experiência nos pode ensinar o acontecimento.
Só a matéria (e há homens materiais) é previsível, porque o nosso ritmo ou poder de acção a excede. (A. D. G., p. 207.)
Temos a liberdade da interpretação, do meditativo esforço.
É essa que deve erguer, sobre o Universo visto em fatalidade, o Universo resplendente de acção criadora e presença divina. (A. D. G., p. 211.)
*
A liberdade existe, a graça é o seu corpo. (A. D. G.,p. 211.)
Na graça sentimos o excessivo, o Irracional, que palpita nas formas e paira sobre as criações.  (A. D. G.,p. 219.)
As sensações da quantidade e do movimento // são reais e afirmativas. São a imediata presença do Ser. Também só este significado idealista as pode libertar das dificuldades tradicionais. (A. D. G., p. 224-225.)
A sensação da quantidade e do movimento // são reais e afirmativos. São a imediata presença do Ser. Também só este significado idealista as pode libertar das dificuldades tradicionais.
O mundo finito ou infinito deixa de ser um problema, para sabermos que a quantidade é infinita para revelação do Ser e determinável pelo número, porque o Ser é sociedade realizada, sistema de relações. Nenhum sistema de formas esgota o Ser, mas cada sistema o traduz. (A. D. G.,p. 224-225.)

[A existência cósmica. Transcendência e imanência]
A existência cósmica, a despeito das dificuldades, que o nosso precipitado absolutismo científico pode criar, é garantida pela idealidade do ser. Se, com efeito, procurais um Universo material que se baste, como é que os vossos instrumentos medem nesse uniforme infinito? Se é um Universo material finito, como existe em vida e acção, se, no tempo finito, ele deve morrer pletórico de entropia?
O Universo é real pela existência dum Ser de pensamento, que é a sua ordem e razão. As sensações, colocadas no coração ideal do Ser, são duma sólida realidade; é, por isso, que, desde a quantidade ao espírito, elas, de acordo com o pen- // samento, revelam uma universal presença, uma comunicativa unidade de compreensão.
Passando do mundo físico à vida, mais nítida aparece a transcendência das formas e a presença da Unidade interior.
As teorias evolucionistas da biologia moderna, mais ainda que as hipóteses fixistas, patenteiam essa Unidade excedente.
As hipóteses fixistas colocaram de pronto a unidade interna da vida no pensamento divino, que criou os tipos específicos.
O evolucionismo dá essa mesma unidade em efectivo trabalho de construção.
Há como uma descida ao imediato, que iludiu tantos medíocres pensadores, fazendo-os supor que isto era uma substituição do transcendente pelo imanente.
A única diferença entre a transcendência e a imanência reside em que o transcendente está nas formas e para  além das formas, e o imanente é simplesmente nas formas. Mas, se o imanente está nas formas em nenhuma ele se esgota; em cada forma há a razão que ela representa no total e o Irracional que cria e conserva essa razão.
O imanente, que nos seres vivos é a vida, não é o resultado das formas ou dos órgãos, mas a força criadora desses mesmos órgãos, neles presente e capaz de reconstruções. (A. D. G.,p. 225-226.)
O plano animal, que, para além da apropriação às condições de vida, se revela em toda as formas zoológicas, é bem mais admirável no evolucionismo de formas primitivas que na sua imediata criação por um mesmo agente.
[Bergson]
Esta Unidade revelada na evolução, presente em cada forma e em todas as formas, é o ponto por onde o Irracional, o excedente se revela ao profundo e originalíssimo filósofo francês Bergson.
É na vida que se lhe manifesta a Graça; e é na profundidade vital da consciência que irá procurar a liberdade. (A. D. G., p. 228.)
Eis toda a filosofia bergsonista como uma manifestação de Graça. [...]
O movimento é cheio de Graça, porque é vivo, ondulado, pleno de continuidade activa.
Tem-se dito que a sua filosofia abre as portas a um novo misticismo. É verdade. O misticismo está sempre onde o homem mergulha numa realidade mais vasta, que o exalte e amplie.
Mas é esse misticismo, que, no momento actual, lhe permite ver a vitória da França com profundos olhos de profeta. (A. D. G., p. 230.)
Todos precisam dinamizar a vida da alma, e para lhe conservar a unidade só têm o falso recurso das faculdades ou o recurso de um falso irracionalismo que, não sendo o excesso, mas a deficiência de razões, não se compreende como exista e unifique.
No entanto nada mais evidente que a unidade do Irracional, que se afirma nos espíritos.
Tão real é essa unidade que Kant consegue um arremedo de realidade, suspendendo-a da objectividade do conhecimento humano.
Ora esse conhecimento humano ajusta-se à Experiência, à acção no mundo físico, cresce em harmonia com o Ser; a sua objectividade sai, pois, do humano para o cósmico. O Irracional, que o cria, será portanto, o mesmo Ser, que se exprime no movimento, na quantidade, na ascensão graciosa da vida.
Neste máximo de realidade, como no mínimo // mecânico, a imediata afirmação é a da sociabilidade, da relação viva e concreta.
O eu não existe isolado; a actividade espiritual é sempre um esforço por entre estorvos, uma unidade através de pluralidades.
Desde a quantidade em que vive e de que se apropria, do movimento em que se exprime e se realiza, até à nítida compreensão do dever moral, da união total, é sempre uma actividade que se faz una, concreta e real, num esforço de progressivo universalismo.
O eu é uma sociedade, onde se apresentam não só os outros eus, mas todas as realidades, desde o mundo físico até às mais altas afirmações do mundo moral.
O sentimento moral tem raízes metafísicas; onde há representações existe uma unidade, que as liga e uma pluralidade, que é o seu motivo original.
O homem é um animal social, porque é um ser metafísico.
Daí a atmosfera de esforço, de constante sedução para uma invisível finalidade. Os homens em sociedade renovam-se e ganham outros poderes e modos de actividade.
É possível, é quase certo, que o homem isolado não conseguiria destacar o seu eu da confusa representação em que ele mal se distingue dos outros. //
É talvez verdade que esse homem não alcançaria a noção do dever moral, não elevaria a noção de valor para além do prazer e do sofrimento.
Deste modo se pode afirmar que a ideia de Deus é uma criação da sociedade, qualquer coisa como a hipóstase da consciência social.
E que essa consciência social existe é o que superiormente nos mostra o ilustre sociólogo Durckeim.
A consciência social tem os seus imperativos; obriga e sanciona.
Ela cria, pois, o dever, que é o alegre sentimento da adaptação aos seus imperativos, bem sensível no desgosto da inadaptação, que é a base do remorso.
Pode mesmo dizer-se (e Durckeim daí tirou fecundos proveitos) que ela gera as categorias do pensamento, isto é, a sua objectividade.
Essas categorias só, porém, adquirem valor na vida da Experiência. É, por isso, que Kant as procurava pela consideração da possibilidade da Experiência.
É certo que essa Experiência era apenas formal daí o círculo vicioso, que o encerrava dentro dum absoluto humanismo.
Ora a Experiência é, como já dissemos, a meditativa conversa do eu com o Universo. //
Se, portanto, a consciência social inicia a realidade, ela só é atingida pela consciência cósmica.
A relativa harmonia dessas consciências revela que a maior é presente na menor e que a sociedade humana é um círculo da sociedade universal.
É assim que Deus, começando por ser uma hipóstase da consciência social, tende sem cessar para ser a própria consciência universal, a suprema Unidade cósmica. (A. D. G., p. 232-235.)

[A consciência social: alargá-la até ao Universo]
É no Infinito, que é a ilimitada quantidade, a força, o movimento, o impulso biológico e a fraternidade social, que as sociedades humanas vivem e actuam. Aí são livres expressões do Espírito., per- // manente involução em valores morais e pensamentos metafísicos de todo o desenvolvimento exterior em acção e progresso.
Então é a acção o prolongamento da ideia, e, por isso, o trabalho é uma obra de amor, de liberdade e alegria.
A acção é o corpo da realidade, que é o drama dos seres, merecendo pela virtude, crescendo em Espírito, involuindo em amor.
A acção realizada é como o fruto amadurecido, cai para fecundar a terra; mas, a vida periga, se a Primavera se esquece e não vem embalsamar os campos e renovar os frutos.
Em cada acção, em todas as instituições, deve estar o Espírito criador, ultrapassando-as a todas e dando, a cada uma, alma própria, que a mantenha viva. A instituição sem alma é como a árvore sem seiva; estiola e morre.
Apagai o sentimento de justiça, que fez uma lei; porque já tendes a instituição, dispensai o espírito que a criou. Essa lei será, apenas, mais uma fórmula a complicar a vida social, uma ocasião de inúteis palavras e degredações intelectuais.
Toda a sociedade tem o seu Deus,, que é a própria consciência social.
Deixar essa consciência nos estreitos estreitos limites dum imediato imediatismo humano ou alargá-la até ao Universo, eis o que não é indiferente. (A. D. G., p. 236-237.)
A civilização é a espiritualização da vida. (A. D. G., p. 238.)
É necessário que as formas da civilização sejam condensadoras do Espírito. [...] Descondensai o espírito, essas actividades serão os senhores da própria liberdade, que as trouxe à luz. Eles vão pesar sobre a alma, impedindo a involução espiritual, e espalhando-a em movimento, frenesi e loucura. (A. D. G., p. 239.)
[Altitude cósmica]
Parece, por vezes, que a vida humana não progride interiormente, antes, a despeito de todos os progressos exteriores, a sua altitude cósmica é a mesma, quando não desce. (A. D. G., p. 241.)

[Comparar a Teilhard; sente-se Teilhard]
Se a vida tem uma realidade cósmica, total, se é um absoluto, é claro que não pode haver progresso temporal do que nela é o seu significado eterno.
A finalidade moral é a direcção das almas para Deus, a sua colocação no sentido do Universo, no ponto de concurso de todos os seres: ali, onde é o divino foco de todas as actividades religiosas.
As almas, que, batidas das ondas do Mistério, em silêncio e meditação, humildemente se inclinam ao sopro da Unidade, atingiram aquela altitude suprema, aquele ponto de convergência de todos os fios do Universo, aquele foco, onde os raios do amor se concentram e são a própria divindade. São a Altura, a visão clara e perfeita.
Sob o ponto de vista do eterno que contenham, // todas as civilizações se igualam, não participam do progresso.
Se o esforço dramático da existência toca um nódulo de essência espiritual, é o perfeito, o pleno, o absoluto, o contacto da parcela com o todo, a fusão do corpo com a alma, a ilimitação da alma vogando no Infinito.
Um progresso espiritual rectilíneo demonstraria a completa evolução do Ser, um exaustivo fenomenismo, uma integral exteriorização.
E, como, para lá do Ser, nada há que o fecunde, este progresso seria o caminhar para um fim de perfeito desentranhamento, ou para relativos fins, alcançados os quais, tudo teria de repetir-se.
É, por isso, que os teóricos do progresso têm sempre dado ou num optimismo de crescente progresso, e batem as palmas ao vapor, à electricidade, tendo um desdém piedoso pelo pobre Platão, que nunca andou de automóvel; ou dão no retorno, nas repetições cíclicas; ou num desesperado negativismo, apelando para o Nirvana.
O que é certo é que o Universo é diverso e igual; e, se a espiritualização do planeta pode crescer e cresce, a parte de eterno, a involução nodal, é sempre presente no próprio sentido social da vida, que é um dramático esforço de compreensão e mérito.
Não quer isto dizer que nos seja dispensado // o trabalho de trazer, ao quotidiano, a maior fraternidade e as melhores virtudes; que possamos aceitar as instituições sociais, a organização, que se nos depara.
É exactamente no esforço de mudar a face da terra, no desejo activo e eficaz de circundar de bondade e amor todas as instituições e formas, que afirmamos o divino e realizamos a involução para o absoluto, para aquele Irracional, que, enchendo todas as razões e afectos, todas as palavras e fórmulas, é agora o Inominado e o Inefável.
Sobre a vida social existe a vida cósmica, que é a vida social religiosa, a sociedade total e absoluta. (A. D. G., p. 241-243.)
Regressando ao mundo físico, é, com olhos cheios de deslumbramento, que vemos, em toda a face do Ser, a plenitude duma Unidade, que, sem nada se diminuir, insinuando-se através das for- // mas, da curva astral, do arco-íris, à evolução da vida e à meditação, é a divina Graça sorrindo. (A. D. G., p. 243-244.)
A alma fez, na Experiência, o exercício // da própria liberdade, circundando delicadamente as liberdades alheias. Não produz um Universo vazio, simples fruto dum espontâneo agir. Não recebe um Universo impenetrável, miraculoso fenómeno duma passividade estéril. (A. D. G., p. 244-245.)

[Sentimento de liberdade]
É a presença da Graça, isto é, dum universal excesso sobre a Criação.
É a possibilidade do homem, equilibrando o Universo, repassando em si o infinito de todo o Espaço, vibrando da imensidão que contém essa imensidade, da Unidade que reside nessa plenitude, erguer uma vontade sua, uma selecta unificação, um quero, que seria a mais ridícula comédia e o mais diabólico orgulho, se não fora o mais sublime dos heroísmos e a mais santa das humildades.
Mais que o pensamento em acção, ou o sentimento, é a própria sensação que nos revela Deus.
A graça é sentimento, sensação e pensamento.
Se o pensamento e o sentimento nos mostram Deus no exercício do nosso livre activismo, a sensação da grande Unidade passa em nós, quando, diante do mar alteroso, apropriando o seu ritmo, repetimos o movimento, que, reunindo o espaço, é a posse da extensão infinita pela unidade, que a realiza. (A. D. G., p. 246.)
[A sensação de Deus]
Quem há que não tenha a nítida sensação de Deus, quando, dentro de si, a alma acompanha o torvelinho duma tempestade, o volumoso ímpeto da Montanha, a viva e plena imensidade da sua Solidão? (A. D. G., p. 247.)
[O infinito poder e o poder particular]
A sensação do movimento organizando a quantidade infinita não é idolatria, porque não suprime, antes solicita as realidades superiores.
O infinito poder é, pelo seu próprio infinito, a universal comunicação, o motivo da Beleza e a Unidade da moral.
O poder particular elevado a plena realidade tem de degradar o que, por o exceder, o negaria. [...]
O movimento universalmente compreensivo é a própria sensação de Deus.
Todo o homem simples e leal, colocado no Universo, ergue os olhos, a sua alma abrange, e adora Deus. (A. D. G., p. 249.)
[A Montanha]
No vilancete de Abel pastor diz o nosso Gil Vicente: Adorai, montanhas, o Deus das alturas!
Nestes dois versos revive um movimento de Unidade que dá na continuidade da gravitação para o sol, o prolongamento da terra até ao céu.
Pela volumosa e serena brutalidade da base conserva a Montanha a estreita prisão com a terra, é, nela, o centro ideal do planeta, guarda um sólido núcleo de individualismo; pela aligeirada forma dos cumes, quase delgadas mãos unidas, é já mais o ósculo da gravitação sideral que o aprisionante abraço da gravidade terrestre.
É por isso que a Montanha, mais ainda que o Mar, nos apresenta Deus.
A imensidade do Mar requer a imensidade duma força que o apropria, há uma larga expansão de movimento absorvente; mas, se a reflexão surge, essa imensidade tem um limite e desaparece a emoção do Infinito. A Montanha tem a vastidão e a altura. //
Pela vastidão dá o movimento em largueza, pela altura dá o movimento em ascensão e entusiasmo; e, se reflectirmos, esses movimentos circundam a terra, aprofundam o planeta para subirem depois ao espaço sideral, à família cósmica. Da base à altura levanta-se o próprio planeta em maré de amor, em ânsia de unidade para o Sol, que tem para as alturas os primeiros afagos da luz e os mais robustos afagos da gravitação.
O sorriso e o beijo começam num alteamento dos lábios. As montanhas são os lábios do planeta intumescidos de desejo, prestes a abrirem em humildes flores selvagens, hesitantes entre a aragem da terra e os estremecimentos do Céu. (A. D. G., p. 250-251.)

[Sensação, sentimento, pensamento
O sentimento da Graça em S. Paulo]
Os sábios medíocres trabalham com sensações // prontas e fáceis, esquecendo o mistério da sensação e desprezando, por isso mesmo, o que neles há de mais oculto e interior.
Daí as ridículas e estúpidas pretensões de explicação do divino por alguns honestos trabalhadores, acumulando uma espantosa erudição, cujo miolo são absolutamente incapazes de atingir.
Se eles, que têm, por implícito ou explícito postulado, um integral sensualismo, começam pela ignorância das próprias sensações!
Deus aparece ao homem na sensação da Graça, Deus é em amorosa comunicação com o homem no sentimento da Graça e Deus é a própria realidade integral e plena no pensamento da concreta liberdade, ou universal ligação, que é o pensamento da Graça.
E, quando o homem se olha como parcela dum todo, como membro da sociedade Universo, essa plena liberdade, que é a intimidade social do Ser, é a face do próprio Deus.
É, então, que compreende o mundo, como a própria graça divina.
O universal princípio da acção, que é a Unidade plena, procurando-se e realizando-se na comunicação dramática dos seres, é a própria Graça de Deus penetrando as criaturas, levantando-lhes o vulto de drama do amoroso seio, dando à vida uma plenitude exultante, um presente, vivo e intenso, que aparece nos iluminados como a única coisa, que, na vida, importa.
Uma das mais pujantes manifestações do Espírito é a energia com que a Graça se apresenta na alma de Paulo num veemente todo, fusão da sensação, sentimento e ideia, lançando a alma como em ponta, onde freme o infinito dum poder capaz de deslocar o Universo.
Tão intenso é o frémito interior da Graça que, adquirindo a violência duma paixão, dum impulso exterior, irá aniquilar a própria vontade humana e cria a teoria da predestinação. // É o que explica o contraste entre essa teoria da inutilidade das obras e a desvairante actividade dos seus apóstolos.
Não se vê a contradição entre uma explicação moral do Universo e a existência dum Deus, que distribuísse o mérito, independentemente das acções e intenções, matéria e forma das vontades pessoais.
É o delírio da sensação da Graça, da presença divina, obnubilando, excluindo tudo o mais do campo da consciência.
É, nos mais inferiores, a inconsciente lisonja dum favor pessoal. Cada um vive pela graça, não por uma especial consideração da sua pessoa, mas porque o Universo activo é um sublime e carinhoso excesso do próprio Deus, que, em vez da unidade abstracta da solidão, se quer a concreta unidade das almas.
Há uma liberdade, excedendo as suas criações; uma intenção de amor, maior que todas as suas obras; um Infinito unindo, por dentro, todas as formas; um Irracional criando todas as razões, sem nelas se esgotar nem sequer diminuir.
É o que mostrou a Natureza inteira e a alma humana.
Uma vida houve, porém, que resumiu, em si, toda a beleza do Universo, todo o significado transcendente da quantidade, do movimento e do Ser, todo o heroísmo e astral pensamento da alma, toda // a comunicabilidade espontânea e todo o amor atento.
Foi Cristo. (A. D. G., p. 251-255.)
[Cristo]
Uma vida houve, porém, que resumiu, em si, toda a beleza do Universo, todo o significado transcendente da quantidade, do movimento e do Ser, todo o heroísmo e astral pensamento da alma, toda // a comunicabilidade espontânea e todo o amor atento.
Foi Cristo.
A Graça andou pelo mundo, e, por caminhos de açucenas, lírios e boninas, levou os homens para a vida substancial e eterna.
Os eruditos que carregam a erudição, quer dizer, os que ignoram a Graça, criaram o problema de Cristo.
Como pouco interessa a sua identificação civil é, no entanto, fácil o problema.
Como pelas manhãs se erguem, sobre o leito dos rios, fantasmas de névoa cobrindo o fugidio corpo das águas, das inquietas páginas do Evangelho levanta-se uma figura serena, mais real e positiva que as incertas letras da história.
A harmonia, a proporção, o ajustamento natural, vivo e flexível das intenções e dos actos, a Graça, que ondula, de incessantes nascentes, a vegetal frescura da palavra; a continuidade duma vida abraçando todas as pequenas vidas; a perfeita humildade, compreendendo o nada das emoções e vaidades terrenas, essa ordem transcendente e livre só pode provir duma Unidade plena, duma alma colocada no foco da Realidade, ali, onde os raios do Amor, unam todos seres.
Essa unidade é a consciência de Cristo.
Que importa o seu registo civil, se só uma // suprema personalidade moral pode produzir a vida, que os evangelhos contam?
Quanto ao seu pensamento, o escritor que o tivesse criado seria o próprio Cristo. Quanto à acção como explicar a unidade dos testemunhos sem a visão dum exemplar? (A. D. G., p. 254-256.) […]
Só as obras do pensamento são o gomo fora do Espaço e da sociedade cósmica; só a palavra humana pode surgir, sem comover o Ser; sem ligações, nem realidade, só ela pode inscrever, no vazio, a forma fantástica do seu nada?!
Sim; é esta a triste fórmula dos pobres impotentes e insensíveis, que vão supondo, na Arte, uma vida própria, nula e artificiosa.
São como a rocha, que pudesse pensar o ritmo das águas circundantes como um movimento íntimo e tão seu que não abalasse nem comovesse o Espaço onde repousa.
Mas os que sabem que a Arte é cósmica, mais real que o sol e o chão que pisamos, bem conhecem em todas as obras do pensamento a penetração da realidade, a comunhão de ser, a apropriação de vida universal.
Se o Poeta não pode, fora da Natureza, matizar os campos de flores, muito menos ele pode acender, no Espaço e fora de Deus, uma nova consciência moral. Ele pode trazer ao inverno as flores da primavera, como pode dar ao efémero utilitarismo e quotidiano esquecimento da nossa alma o eterno sublime das almas infinitas. //
A maior realidade cósmica, que aos homens foi dado ver com os imediatos olhos do Espírito, foi Cristo.
Quem criou o seu pensamento e a sua vida, toda ela um imediato pensamento de universal e concreto amor?
Pensamento e vida tão unidos que são o próprio Verbo fluindo do centro do Universo.
Compreendeis a flor sem raiz?
Aqui o pensamento é raiz, pelos veios da rocha, através do planeta, abraçando o Cosmo; a vida é a flor, embalsamando o Mundo.
Não é o caso dum ideal suposto realidade, mas o caso duma realidade ideal em tangível e corpórea presença.
Quem teria pensado tão alta doutrina sem plenamente a viver? Não é ela um movimento partindo do centro do Universo e tudo assimilando ao seu íntimo segredo de amor?
A distância entre o real e o ideal pode existir para os nossos desejos particularistas, para a insaciável sede de presença que nos queima; não existe para um ideal que é a própria consciência da mais absoluta realidade, da completa penetração, da inteira compreensão do Universo. Isto já é muito para indicar que a essência do cristianismo é a própria alma da existência cósmica; é terminante para mostrar a impossibilidade da figura de Cristo como // ideal concebido a que se ajustasse a realidade vivida.
Depois, a vida de Cristo é absolutamente cheia de imprevistos nos mais ocultos detalhes, repassada de acontecimentos de aparente fraqueza, que o papel heróico de personagem concebido como Deus não comportava. Como das mais altas montanhas, surge o sol, ainda mais alto, a reverberar-se na neve, que as cobre, dos evangelhos levanta-se um vulto, que os excede, e, de cuja luz, as suas páginas refulgem. É a figura de Cristo.
Através dos evangelistas nós a podemos reconstruir na sua pureza, como a luz branca para além dos corpos, que dela colheram isolados aspectos. A personalidade de Cristo revela a sua essência naquele ponto central da sua vida e do seu pensamento, em que através do finito e do temporal transparece o infinito e o eterno.
O resto é a refracção no atónito pensamento dos discípulos, no próprio papel do Evangelho.
Entre o que pensamos e o que escrevemos vai aquele trágico e fecundo afastamento, que não nos deixa escrever um só livro, mas muitos e sempre, até que a morte suprima a distância entre o corpo e a alma
Qual não será a distância entre o que adoramos e o que dele nos é dado dizer?
Cristo é o novo vidente que olhou o infinito através da alma do homem. //[…]
[O infinito da alma e o infinito do mundo]
Antes que Giordano Bruno quebrasse o cristal do céu e visse o Espaço Infinito, já Cristo o tinha feito do outro lado, da alma humana. Nele e através dela, o infinito azul do firmamento.
É a única alma dada ao nosso conhecimento que não esmaga o homem com o mundo, nem suprime o mundo pela aparição do homem.
O infinito da alma e o infinito do mundo não são inimigos, não se combatem.
[Cristo, «a mais completa expressão de comunicabilidade». Espiritualização do planeta. A civilização: alheamento e ensimesmamento. Somos divinos?]
São a liberdade na comunicação, isto é, o esforço activo, o mérito, o drama existencial. Dois infinitos, que são apenas o infinito amor de Deus.
Cristo é, pois, a verdadeira fonte da civilização.
Já dissemos que esta é a espiritualização do planeta pelas obras do nosso amor.
Tem uma face exterior, é o nosso crescimento para fora; mas esse crescimento só vale como expressão dum interior que o crie e, nele, ache ocasião de se aprofundar.
A civilização é um alheamento, quer dizer, é um transbordar da alma sobre a matéria; para que // se não perca ou desvie é preciso que seja também um ensimesmamento, quer dizer, uma involução espiritual, um movimento íntimo para além da aparência e do fenómeno.
Sem isto a civilização aniquila e escraviza. Bem basta o cadáver do corpo; e a máquina, como ser e fim, é o cadáver da alma.
O Irracional, o infinito excedente, a Graça são as fontes da vida.
Deixai-a correr longe destes e tê-la-eis petrificada e morta. Cristo é esse infinito, presente na obra que passa; é Espírito animando o próprio bocado de pão, que o nosso humilde trabalho e a nossa amorosa vontade bem mereceram.
É divino?
Pois não o somos todos no momento em que palpitamos o ritmo universal, em que temos a clara consciência da unidade dramática, em que estamos em religioso acordo com o sentido do Universo?
Fixai esse momento, sob o fluxo da hora, e tereis o tempo a tocar o eterno, a forma a sentir o além da vida que a sustenta.
Assim é Cristo; ele é a plenitude de graça, ele é, para além de si, numa perfeita unidade total, num infinito estremecimento de amor.

Cristo é a mais completa expressão de comunicabilidade, por ela é o mais perfeito conhecimento. Cristo é a divina graça, encontrando no // seu excesso o poder de em cada forma repetir o Infinito; Deus é a graça, e existir e conhecer é comunicar da graça. (A. D. G., p. 257-262.)]
[A humildade]
(…) Deus é a graça, e existir e conhecer é comunicar da graça.
Não é a humildade, o sentimento essencialmente cristão?
A humildade natural é a que Nietzsche via no verme que se enrosca, furtando-se à agressão.
É a retenção de todas as forças, uma pausa no impulso vital, uma mineralização da vida para fingir a morte. Alguns autores têm tentado até uma explicação da imobilidade defensiva de certos insectos por úteis suspensões nervosas aproveitadas pela selecção. É uma degradação, uma queda das forças vitais.
É, por isso, que o desdém nos afasta quando se nos rojam essas humildades.
Mas a humildade, atitude religiosa, é um alto esforço de universal receptividade, de total compreensão.
Foi por confundir a primeira com a segunda, ou antes, por não atingir esta, que Nietzsche pregou a inversão dos valores. (A. D. G., p. 262.)
Vieira, um largo entendimento da humildade
Foi com estranha emoção que encontramos no altissonante Vieira um largo entendimento da humildade como o sentimento da própria dependência, imperfeição e miséria.
É o horror da solidão, que ao próprio Deus não bastou; e, com esse horror, o reconhecimento duma infinita dependência, que só um infinito amor pode estabelecer e conservar.
Essa humildade é a base metafísica do respeito pela Experiência, interrogativa conversa dos seres; da tolerância, reconhecimento dum interior em cada ser; do sentimento social, que é uma longa experiência de tolerância, conquistando, pouco a pouco, espaço social para as almas afastadas.
Essa religiosa atitude, que abre na alma humana // uma cósmica vontade de união, é a fonte da ciência e da arte.
Quando Newton se contenta em achar a forma da gravitação, deixando como problema pendente o estudo do agente, não é a comovida humildade da sua alma, pressentindo e amando o Ser, vivo e omnipresente, que lhe permite livrar-se da idólatra exigência duma acção local para explicar o movimento? […] Não se vê, aqui, claramente, a alma de Newton comungando o Ser, que enche o Espaço e, por toda a parte, é presente na íntima e oculta unidade do disperso?
E o que é a arte, senão o Universo visto através duma alma? // […]
É este sentimento de amável dependência e inteira comunicação que dá à figura de Cristo uma certeza sem obstinações e uma majestosa simplicidade. (A. D. G., p. 263-265.)
[Seguem vários exemplos do que é humildade: «A humildade é […]»; «Ser humilde é […]»…, o rio, o sol, as plantas… — p. 265-266. A descoberta das almas — p. 267.]
Ser humilde é viver a vida diante de Deus, em plena e total comunicação com o que existe; é pôr a comoção dos grandes acontecimentos no episódio mais insignificante; é apagar a banalidade da face do Ser e dar a cada instante, que passa, a presença do infinito que o anima.
É nesta humildade, neste cósmico cristianismo activo, que o fenómeno toca a essência e o tempo se tinge de eternidade.
Aqui mergulha a civilização as suas raízes espirituais, e daqui ela parte de novo com a seriedade e substância duma alma, que, criando máquinas e instituições, o faz para órgãos e não para fins ou destinos da acção. […] //
Em face do cristianismo, um novo sentido adquirem as instituições: elas são um melhoramento das manifestações ou obras do espírito
As instituições valem pela maior ou menor realidade de convivência, de comunicação, que dêem às almas.
Foi a humildade que permitiu a descoberta das almas. Não se sabia que, em todo o homem existe uma realidade fora de todo o preço, porque o preço é o particular e a alma é o concreto universal. Só a humildade podia fazer com que cada alma se dirigisse a outra, aberta em solicitude interrogativa; sem ela só pode cada alma aviltar as outras, porque a elas se dirige com o que é só seu a afirmar e impor.
Só o cristianismo acabou com os escravos; os estóicos tinham, apenas, uma terapêutica contra a doença ou medo da escravatura.
O cristianismo torna-nos livres, porque o Espírito existe, é substancial e concreto; o estoicismo dava a liberdade por uma sábia abdicação oportunista.
Lugar social, isto é, direito para todas as almas, é o que o cristianismo, e só ele, justifica e exige.
O cristianismo é o que na tradição melhor representa a realidade como uma manifestação do Ser, como a existência dum Irracional superior a // todas as razões, a presença em cada forma de um Infinito que a envolve e vitaliza.
É, por isso, que a integração cósmica da vida humana está num cristianismo renovado.
O que é a tradição
A tradição é o laço do presente com o passado, é a refracção do tempo duma unidade anterior, dum princípio de ser. Os povos vivem na tradição, quando têm uma unidade colectiva a manifestar.
Mas também a tradição não pode ser repetida simplesmente, porque isso seria a inutilidade de toda a acção, uma nova degradação da realidade até à identificação pura.
Uma alma, quando se coloca no Universo e cria a religiosa atitude do dever, faz o que muitas outras já fizeram; mas não é uma repetição, porque a conquista da máxima comunicação cósmica é a própria essência de todas as almas.
Viver é renascer, e renascer é retomar o seu lugar no Universo, o seu esforço de expansiva unidade e dramática comunicação.
A tradição é uma das revelações naturais do lealismo, persistência e sólida realidade do Ser.
Se não houvesse, para além do Tempo, princípios de existência, tudo se dispersaria em instantâneas particularidades.
Porque se reencontra a aparência é que claramente vemos, para além dela, uma sólida e constante realidade. Mas essa aparência seria diante de nós inabordável e escravizadora, coisa cega e // bruta, se a nossa actividade a não reintegra no seu valor de comunicativa realidade. É a estupidez dos que pretendem estagnar as sociedades em nome da tradição. Estupidez igual à dos supostos inimigos que a dispersem em puro actualismo sem entranhas, ou dinamismo sem raízes. […]
Uns e outros se abandonam ao demónio do niilismo, trabalham pela morte.
[Cristianismo, evolução planetária e involução espiritual,
equivalência das almas,
socialismo, anarquismo, capital, trabalho]
O cristianismo rejuvenescido, levado ao coração do Ser, é o que pode dar à vida humana o alto significado, que lhe compete como agente da evolução planetária e da involução espiritual. Nele devem mergulhar as instituições; a partir dele, elas devem lançar o voo do seu entusiasmo.
É, assim, que as aspirações de justiça, que os socialistas e os anarquistas podem representar, encontram possibilidade de realização, porque recebem um alto valor de verdade.
Essas tendências, quando simplesmente naturalistas, são equívocos insubsistentes.
A Justiça tem por postulado implícito uma equivalência das almas.
Ora essa equivalência só pode existir na sua realidade metafísica, no seu valor de absoluto, de amorosa comunicação do Infinito. 
Em relação aos expedientes da sua actividade, nenhuma alma pode equivaler outra, antes cada uma é um separado eu, e tudo o resto é fora da sua propriedade e inexistente. (A. D. G., p. 266-270.)
O socialismo, sendo dum certo modo uma reacção contra a dispersão industrialista, não deixa // de pecar do mesmo vício. É uma idolatria da organização, uma crença na justiça intrínseca das instituições.
Traria uma tremenda sobrecarga de regulamentação e burocratismo, exactamente daquela parte da vida social que, por mais materialista, mais esmaga e esconde a vida interior, a realidade espiritual.
O anarquismo tem um grande horror à regulamentação e tudo espera das grandes virtudes individuais e do natural acordo dos indivíduos. Ùnicamente, como já vimos, não é possível um acordo natural das vontades, porque a simples natureza não pode levar o homem para além do conceito de interesse colectivo, difícil de definir e sempre sem poder próprio bastante a subordinar todas as modalidades dos interesses pessoais.
São dois modos de pensamento, ambos maculados da ignorância e ausência do infinito, reflectindo temperamentos distintos.
O socialista é o homem metódico, de formas claras de activismo técnico.

O anarquista tem mais violência e sonho, é inimigo das formas, cujo cujo aprisionamento pressente e receia; mas, como não atingiu a Unidade em que desapareça a antítese, para além das formas, vê apenas uma força inqualificada e estuante. Um é, em sociologia, o católico apaixonado do exteriorismo das instituições, nelas supondo virtude // própria e fecundidade. O outro tem a fluidez do cristianismo, mas, sem ter aprendido a fonte original, está ainda no informe, antes, da concreta unidade de comunicação, que é a razão das formas, o infinito que as levanta e embebe.
O Trabalho será remodelado conforme a Justiça, quando ele for apenas a manifestação do Espírito. O Trabalho não é um castigo a que a nossa imperfeição nos condena, é, muito diferentemente, a mais clara e pronta afirmação da nossa compreensiva dependência.
Se o homem não tivesse os olhos abertos sobre o espaço constelado, errando de astro em astro, em contemplativa admiração dos cósmicos laços, que o abraçam no Infinito, bastaria o trabalho a trazer a vida planetária e com ela a vida sideral, ao amor da sua atenção.
Se trabalhamos, é porque uma relação sem apoio nem esforço, nenhum valor representa para o nosso desejo de comunicação.
Uma só coisa é gratuita: a própria existência social, o Universo comunicativo e dramático. Isso é o generoso excesso divino, a Graça persuasiva para onde se inclinam, doce, mas firmemente, todas as intenções da alma, desde o mais oculto frémito de espaço e movimento até ao claro desejo de absoluto, à lúcida consciência da substancialidade do dever. //
O drama da existência, isto é, o rumor e encanto da vida, a comunicação e o desejo, é a gratuita dádiva de um Deus, disperso em sociedade para se reencontrar em real e concreto amor.
Mas o trabalho, que é a representação desse drama, é a acção da nossa liberdade afeiçoando o mundo aos seus intentos; é a própria vida da nossa atenção, interrogando e refazendo a realidade.
O trabalho é uma consequência da graça divina, criando um mundo comunicativo e com significação moral.
É, por isso, que o trabalho sendo uma aplicação da nossa liberdade, é a sua imediata revelação.
Só quem trabalha se sente livre e realmente existente.
Em todo o trabalho há a comunicação do homem com o Ser, e, entre o artífice e o poeta, há maior parentesco que é vulgar supor-se.
O momento, em que o trabalhador sente que conquistou a técnica, é um solene momento em que compreende a linguagem e a essência do movimento. A costureira, que trabalha um vestido, repete interiormente os movimentos, que, na Natureza, talharam as linhas, as ondulações dos corpos femininos.
Estendendo o movimento até à sua intenção social, o mínimo trabalho adquire verdadeiro valor.
Dependem tantas ou mais vidas, da atenção e // seriedade dum guarda de linha ou dum faroleiro, que da honestidade profissional de um médico.
Quando cada um trouxer ao seu trabalho uma alma religiosa, um comovido espírito de universal e mútua dependência, será o trabalho, mais que a Alegria, a directa oração, o espontâneo, pronto e eficaz agradecimento à divina graça, que nos deu o convívio, a virtude de fraterno auxílio, que, no mesmo abraço unificador, acolheu as nossas particularidades e imperfeições.
O Trabalho começando pela penetração da realidade, pelo relacionamento do homem com a existência, deve alargar o seu movimento de apropriação até atingir a própria fonte da realidade, donde o seu esforço de compreensão partirá, renovado, a abraçar todo o Universo.
Este processo de evolução, involução e nova evolução é o caminho das almas no seu cósmico aperfeiçoamento; deve ser também o processo educativo, a sugestão dada ao nativo desejo, à intrínseca tendência de comunicar e agir. (A. D. G., p. 270-274.)

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[A Solidão e o Silêncio. A Graça, a infinita e absoluta presença]
Na hora serena do crepúsculo escolhei um lugar bem solitário para a vossa meditação.
Cessa o falar diurno, fundindo as suas vozes num grande mar de Silêncio. // Dentro de vós, viviam formas e vultos, as palavras nítidas, as intenções claras.
Agora todas as formas morrem lentamente como os relevos continentais que um oceano viera cobrir.
Ao grande Silêncio do mundo segue-se o imenso Silêncio da alma; como dois mares separados pelo beijo do Sol, um visível da sua luz moribunda, outro de amanhecente e invisível corpo.
Pondo o vosso silêncio de acordo com o grande Silêncio das coisas, ponde o coração de acordo com uma realidade cósmica; acompanhai, por exemplo, com uma forte tensão de vontade, o sol no declinar da despedida.
Olhai bem o disco a afundar-se e imaginai que a vossa vontade o move. Em breve tomareis a sério a vossa ilusão, e, a um profundo abalo de todo o ser, conheceis que sobe o Mistério se vos abriu um novo sentido.
É que o Universo é cheio de misteriosa vida oculta, que embebe todas as formas; à mínima inclinação no bom caminho responde o frémito de infinitos contactos do invisível, enchendo de ser e realidade a quotidiana insuficiência.
Como o ar em torno dos corpos se oferece aos estremecimentos do seu espaço, como o éter é dócil às mais longínquas comunicações, o Ser é presente em todo o Universo, pronto a penetrar de afirmação todas as formas que se inquietem. //
Erguei as mãos ao Céu e o vosso pensamento seguirá o gesto, pleno de emoção e entusiasmo.
Pascal o disse, e a parte de verdade contida na teoria das emoções de William James não é mais que a sua confirmação.
É que entre o movimento e o Ser há uma tal correspondência que se vos inclinais para o mistério, logo ele vos penetra.
É a divina Graça, a omnipresença invisível, correndo a encher as almas, como do silencioso flanco das montanhas corre a loquacidade dos vales verdejantes.
E, como à sombra da Montanha, na sua protecção amiga, se encostam as aldeias brancas entre os choupos, na sombra divina se abrigam as almas, interrogativas e humildes.
O Silêncio da Montanha fez-se o murmúrio dos vales, como a Solidão de Deus se fez amor entre os homens.
Esse amor colocado em Deus é o contacto pleno e imediato, a convivência perfeita, sem estorvos, nem limites. Eis porque o imponderável nos aparece lá, onde a nossa alma mergulhou na Solidão, onde a nossa atenção escutou o Silêncio.
Em toda a parte, onde um grande Silêncio mora, sentimos o palpitar dum pensamento: a omnipotência do Ser no corpo da realidade, a posse, que, do Universo, Deus toma permanentemente. //
Fora do rumor todos sentimos uma misteriosa e exultante imponderabilidade.
É que o peso é uma forma da presença, e, na vida comunicativa e particular, é o mais absorvente abraço do homem e do planeta, do planeta e do Céu.
Se o homem vivesse mal pousado sobre a Terra, que comunhão podia existir entre o seu ser indeciso, sem espaço de acção, e a plenitude dum Universo que é se conserva?
Mas, quando fora do rumor ele se encontra como parcela do todo e sabe colocar a sua alma na directriz da universal compreensão, sente, quase vive, o infinito excesso, a divina graça, que, sendo a concreta unidade do amor, em toda a parte é presente, imediatamente, por intencional virtude, sem esforço de particularização.
A Solidão e o Silêncio dão-nos um sentimento de imediata presença e integral plenitude; não é Deus sentido na repetição interior dum movimento que tudo abrange, é a Graça divina espalhada em todo o Ser, como certos beijos maternais, boiando na face infantil em líquidos sorrisos de ventura.
Como o viajante, que, chegado ao alto, repousa a vista na frescura das gargantas, por mais que os olhos se percam no céu, jamais esquecerá a terra, o pensamento, chegado à Graça, é oração imediata, hino de louvor e alegria, onde todas as imperfei- // ções fundem o corpo de esforço e drama num eterno significado de comunicação e amor.
É o Invisível, o Inefável, o Inominado que povoa toda a Solidão, que enche de cósmicas e substanciais palavras todo o Silêncio.
Porque sentimos a universal presença, quando os terrenos e quotidianos olhos nada podem ver, quando os ouvidos, como as conchas repetindo sem o saberem as vozes do Mar, são abertos perante o imenso oceano do Silêncio, é que se nos anunciam esplêndidas realidades, no além dos nossos cuidados, maravilhosos mundos de quimeras, onde, por ventura, os mais deslumbrantes dos nossos sonhos iriam encontrar a medida da sua insignificância.
O estado de graça é o sentimento da presença universal.
Estar em graça é olhar o Universo daquele invisível centro de amor, que é o seio de Deus.
Estar em graça é parar suspenso no meio do ruído a ouvir vozes das bandas do Silêncio.
Estar em graça é ir devagar na Solidão a conversar com o invisível, a encher de humanas palavras amorosas todo o Espaço sem voz.
Na Solidão e no Silêncio, ali onde a nossa atenção se volta no sentido do oculto, a Graça tece, de tenuíssimos e misteriosos fios, as ligações que prendem a multidão rumorosa, medita o verbo, que é o pão e o amor de todas as bocas. //
E a Graça, em excessivo além dos sentidos, é simplesmente a absoluta e infinita presença. Enche a Solidão e o Silêncio, mas de presença inefável, universal contacto amoroso, onde as formas se diluem e a comoção interior é a fremente quietação dum beijo sem lábios.
Tão para além dos sentidos, tão pura presença é a Graça que todo o movimento se encerra, e a plena posse é, agora, o perfeito absoluto contacto.
É a Serenidade em subtil e invisível corpo de amor, vagueando no Silêncio e na Solidão.
De tudo o que para nós é a vida resta a Presença, sem formas, nem limites… Tocada a Presença, logo a solidão se faz companhia!
Essa presença é o Amor, e, por isso, o seu corpo subtil é de femininas formas, delicado e etéreo. A Graça nós a vemos, para além dos olhos, imponderável corpo de Mulher, vagueando na imensa Solidão do Espaço.
E de lá, os seus pensamentos discretos são a florescência, e a harmonia dos mundos. É a Virgem, porque da sua solidão nasceu o mundo e o amor das almas. À medida que essa imagem se nos ergue no pensamento, este adquire, de novo, uma tal fome de certeza e concreto que a Virgem amorosa é já a maternidade; e, no seu seio, como as flores nos braços primaveris das árvores, sorri um infante, eterno fruto do seu Amor. //

Dos seus lábios, o sorriso sobe para o sorriso materno, e, no sulco de luz e bondade, que é o seu encontro, o Universo voga sem esforço, numa perpétua comunicação do Mundo com Deus pela alma do homem, de Deus com o homem pela solidária harmonia do Mundo. (A. D. G., p. 274-280.)

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