Hoje acontece mais uma partilha. Quando
calha, mas não ao calha...
É um texto saído no Público, da pena de Frei Bento
Domingues... Procurei e acrescento dois textos por ele referidos, acolhidos nas
páginas dos Cadernos ISTA.
Quem quiser, pode consultar...
https://drive.google.com/file/d/0B353yM2703KjQ0I0a1Z1bk1pUzg/view (MundosBíblicos; etc.)
OPINIÃO
A ignorância não é um dever
Não foi a
Bíblia que deu origem à subordinação das mulheres na civilização ocidental.
1. Lutero não passou por Portugal. Na
revista Brotéria, de Outubro, tentei explicar porque lhe negaram o
passaporte. Apesar disso, de vez em quando, surgem acontecimentos que levam os
meios de comunicação a lembrar que existe uma coisa muito antiga chamada
Bíblia, que ele próprio traduziu para alemão. Agora parece que foi invocada,
juntamente com o código penal de 1886, pelos juízes Neto Moura e Maria Luísa
Arantes, para atenuar um crime horroroso contra uma mulher adúltera.
Não admira, dizia-me um leitor de Saramago. A Bíblia está cheia de
histórias escandalosas e de maus exemplos. O diabo não precisa de ser muito
pior do que um deus que mata e manda matar. Esse livro parece escrito por um
bipolar: passa facilmente do sublime ao detestável, por vezes no mesmo salmo.
No entanto, cuidadosamente encadernado fica bem numa sala, ainda que pouco
frequente numa casa portuguesa. Entre as dificuldades em ler e interpretar
esses textos antigos figura uma insistente ignorância ou esquecimento: a Bíblia
não é um livro!
Habituados, como estamos, a ver as Sagradas Escrituras cristãs num só
volume e a dar-lhes um nome no singular, a Bíblia, somos levados a imaginar que
é uma obra que um autor divino escreveu, de fio-a-pavio, mas com mais heterónimos
do que Fernando Pessoa.
Na verdade, não se trata de um livro, mas de uma biblioteca formada por 73
ou 74 obras, segundo o cânone da Igreja católica, e 66, segundo o cânone das
Igrejas reformadas. Foi escrita ao longo de vários séculos em diversos
contextos geográficos, sociais e culturais.
Sem poder entrar aqui em pormenores, convém lembrar o seguinte: quase dois
terços dos livros da Bíblia cristã são comuns ao cristianismo e ao judaísmo
rabínico, herdeiro imediato das escrituras do judaísmo antigo. Na verdade, o
Antigo Testamento (AT) católico é mais vasto e variado do que o TaNak e
o AT das Igrejas reformadas que adoptaram o cânone judaico. A escrita dos
livros do AT católico durou cerca de um milénio. Teve como quadro essencial a
Palestina. É possível que alguns livros tenham sido escritos, em parte, na
Babilónia e outros no Egipto (em Alexandria).
A exegese histórico-crítica mostrou que figuram no AT diferentes géneros
literários e temas que são documentados nas outras literaturas
próximo-orientais do primeiro milénio a.C., em particular, nas literaturas dos
demais povos semitas [1].
2. Os juízes, se queriam referir-se à
relação de homens e mulheres na Bíblia, teriam de se aconselhar com o trabalho
de investigação e de militância das feministas que reexaminam não só a própria
Bíblia, mas também a interpretação que os homens fazem dela, tentando, muitas
vezes, justificar e perpetuar uma dominação ancestral, própria de sociedades
patriarcais. A mulher era propriedade do marido; a virgem, antes do noivado,
propriedade do pai. O adultério da mulher e a defloração de uma rapariga eram,
antes de mais, um atentado contra o direito de propriedade [2].
A exegese bíblica feminista assume-se como instrumento de luta pela
igualdade social. O seu objectivo expressa-se em termos de emancipação ou de
libertação das mulheres. Desse ponto de vista, a leitura feminista da Bíblia é
comparada e, em parte, comparável ao trabalho da Teologia da Libertação.
Contrariamente ao que às vezes se afirma, não foi a Bíblia que deu origem à
subordinação das mulheres na civilização ocidental. A subordinação era um traço
das civilizações europeias antes da chegada da Bíblia. Essas civilizações
tinham esse traço em comum com as civilizações do Próximo Oriente de que a
Bíblia é uma expressão. O que a Bíblia fez foi dar a essa prática a sua
legitimação religiosa.
Sendo fruto da civilização ocidental, o próprio feminismo é herdeiro da
mesma Bíblia que deu caução religiosa à supremacia dos homens sobre as
mulheres. Por isso, é natural que a Bíblia ocupe um lugar muito importante nos
estudos feministas, mas as mulheres ainda estão longe da paridade com os
homens. Na Igreja Católica, intérprete autorizada da Bíblia, a hierarquia
continua a ser formada só por homens e, além disso, celibatários [3].
O NT não legitima as atitudes dominadoras do AT em relação às mulheres.
Pelo contrário, elas estão incluídas no espantoso universalismo cristão,
sublinhado por Paulo: “Não há judeu nem grego, não há escravo nem livre, não há
homem e mulher, porque todos sois um só em Cristo Jesus” [4]. No Evangelho de
Marcos, mostra-se que o homem pode ser adúltero contra a mulher. Como nota
Frederico Lourenço, trata-se de “um desenvolvimento notável rumo à igualdade de
género” [5].
Quanto à atitude de Jesus em relação ao apedrejamento de uma mulher
apanhada em adultério, aconselho a leitura das admiráveis observações do mesmo
autor ao texto atribuído ao evangelista João [6].
Se houve mulheres que se emanciparam para servir o projecto de Jesus, é
porque esse projecto as incluía. O Ressuscitado encarregou-as de evangelizar os
próprios apóstolos. Daí que a Maria Madalena tivesse sido designada como
Apóstola dos Apóstolos.
3. Frederico Lourenço entregou-se a um
empreendimento que julguei impossível, quando foi anunciado: traduzir, do texto
grego, o conjunto da Bíblia, tradicionalmente conhecido pelo nome de Septuaginta,
com apresentação, introdução e notas dos vários livros. Sobre a significação, a
originalidade e as explicações acerca da Bíblia Grega, o tradutor encarregou-se
de nos elucidar logo no Vol. I, consagrado aos Quatro Evangelhos, em 2016.
Em 2017, surgiram o Vol. II, Apóstolos, Epístolas, Apocalipse, e o Vol.
III, Os Livros Proféticos. Este, em Outubro. É o segundo acontecimento
mais importante do ano para todos os que julgam que a ignorância do mundo
bíblico não é obrigatória.
Francolino Gonçalves, O.P., morreu a 15 de Junho deste ano, na Escola
Bíblica de Jerusalém, na qual viveu, investigou e ensinou, durante mais de 40
anos. Segundo alguns confrades, sofreu muito por não poder continuar as
investigações do AT, que tinha em mãos, especialmente do universo profético,
bíblico e extra bíblico, de que era um reconhecido especialista. Tenho muita
pena que ele não pudesse acompanhar a obra impressionante de Frederico
Lourenço, que lhe daria grande alegria.
[1] Para as informações fundamentais sobre os mundos em que se formou e
desenvolveu essa biblioteca, ver o amplo e rigoroso estudo de Francolino J.
Gonçalves, Mundos bíblicos, Cadernos ISTA, n.º 18, 2005, pp 7-34. [2] Ex
20,14; 22,15-16; Lv 20,10; Dt 5,21; 22, 22-29; Ez 16, 38-40.
[3] Cf. Francolino J. Gonçalves, professor da Escola Bíblica de Jerusalém e
membro da Comissão Bíblica Pontifícia, As mulheres na Bíblia, Cadernos
ISTA, n.21 (2008), pp 109-158 [4] Gal 3, 25-28 [5] Mc 10, 1-12 e nota ao v. 11.
[6] Jo 8, 1-11; cf. Frederico Lourenço, Bíblia, Vol. I, pp.357-360
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