José Luís Peixoto é um autor que admiro
desde Nenhum Olhar (bastaria este livro para ser um grande
escritor), seguido de Morreste-me, pouco mais, e alguns artigos. É
natural de Galveias e partilhamos o mesmo concelho. De Montargil vejo Galveias
desde sempre e quando veio a luz eléctrica, também de noite, antes ainda de
Montargil a ter, trazida pela barragem, inaugurada em 1958. Fica do lado
montante da ribeira, como dizíamos dantes, na outra margem.
Tenho dele já bastantes livros «por abrir». Também é poeta. Outro livro que me deliciou, me entrou em fibras íntimas, gerando um movimento especial, co-movendo, foi A Criança em Ruínas. O poema sem título que se impôs entre todos é este, que peço a licença de transcrever:
na hora de pôr a mesa,
éramos cinco:
o meu pai, a minha
mãe, as minhas irmãs
e eu. depois, a minha
irmã mais velha
casou-se. depois, a
minha irmã mais nova
casou-se. depois, o
meu pai morreu. hoje,
na hora de pôr a mesa,
somos cinco,
menos a minha irmã
mais velha que está
na casa dela, menos a
minha irmã mais
nova que está na casa
dela, menos o meu
pai, menos a minha mãe
viúva. cada um
deles é um lugar vazio
nesta mesa onde
como sozinho. mas irão
estar sempre aqui.
na hora de pôr a mesa,
seremos sempre cinco.
enquanto um de nós
estiver vivo, seremos
sempre cinco.
Vem tudo isto para justificar o
interesse com que fui lendo a evocação de Coimbra, passado, futuro antevisto,
presente, futuro que não podemos saber. Há planos de tempo como no cinema.
«Nas costas, sinto os passos do meu pai,
aproxima-se, avança sobre a terra. Agora, num instante que não fui capaz de
prever com exactidão, pousa-me a mão sobre o ombro, o peso da mão.»
A minha irmã conta que há letreiros nos
cafés a proibirem o estudo, entusiasma-se com essa ideia. — Assim começa «As
certezas do Mondego» na revista da TAP UP Magazine. Percorremos Coimbra,
presente e passado presente.
Convido a ler:
As certezas do Mondego
A minha irmã conta que há letreiros nos
cafés a proibirem o estudo, entusiasma-se com essa ideia. Adora a extravagância
de uma cidade cheia de estudantes e, também, encanta-se a imaginar esses
estudantes de mesas de café, a sua perigosa vida académica, estudiosos e
rebeldes.
Subimos as escadas
monumentais a pé. Lá no alto, demoramos um par de minutos a recuperar o fôlego.
As faculdades têm as especialidades escritas nas fachadas com letras de metal.
A minha irmã dá-nos essa informação, como se não soubéssemos ler. Ao passar por
estudantes de traje, capa negra debaixo de um sol seco, todo-poderoso, calor
como lixa, a minha irmã cala-se de repente e disfarça o fascínio. Se algum de
nós comenta alguma coisa, demora a responder, não nos conhece.
A propósito de nada, o meu
pai ameaça-me de falhar a vida se continuar a ser preguiçoso e desinteressado,
se não for mais parecido com a minha irmã. Em silêncio, de lábios apertados,
juro que nunca irei estudar numa universidade. Não preciso. Em breve, terei 16
anos. As minhas certezas são feitas de raiva.
Um país dentro de uma cidade
que, por sua vez, faz parte desse mesmo país. Coimbra tem Portugal inteiro num
dos seus terrenos, construiu-lhe um muro à volta e cobra bilhetes de entrada,
são baratos, ainda ao preço do Estado Novo. Passamos de carrinha à frente do
portão do Portugal dos Pequenitos. Lembro-me de outra visita à cidade,
lembro-me de ser pequeno, da alegria de caber no interior das casas e dos
monumentos, mini-país.
Diante do Mosteiro de Santa
Clara-a-Nova, a minha irmã insiste que tiremos uma fotografia de costas para a
paisagem. A esta hora abranda o sol e, por isso, somos capazes de abrir os
olhos. Onde é que se carrega? Desfazemos a pose para dar explicações técnicas
ao rapaz a quem pedimos que nos tirasse uma fotografia. Esperemos que não nos
tenha cortado as pernas, diz a minha irmã enquanto o rapaz se afasta.
Calo-me perante o mármore.
Alargo os olhos para ver todo o tamanho do altar da igreja. Lá, em cima, está o
corpo da Rainha Santa Isabel, incólume ao fim de séculos. O meu pai não é
religioso, mas acredita em milagres. Ignoro tudo o que, anos depois, viverei
neste altar, nesta igreja.
Descemos, atravessamos uma
ponte, estacionamos. Este parque chama-se Manuel Braga. O comboio para a Lousã
apanha-se do outro lado da rua. Tenho o Mondego diante de mim, preenche-me o
olhar, águas que não querem ser demasiado rápidas. O fim do dia entende-se
pelas cores. A luz desfalece, cede perante a força da noite. Ainda no toque da
minha pele, o Jardim da Sereia, a Sé Velha, a Rua da Sofia, Coimbra desarrumada
e, ao mesmo tempo, a transformar-se em memória, a evaporar. O passado
descola-se devagar do presente.
As águas do Mondego são
constantes. Nada do que é agora permanecerá para sempre. Tudo o que me rodeia
terá desenvolvimentos insuspeitos. Sei que ignoro o futuro.
Nas costas, sinto os passos
do meu pai, aproxima-se, avança sobre a terra. Agora, num instante que não fui
capaz de prever com exatidão, pousa-me a mão sobre o ombro, o peso da mão.
Nesta viagem ou durante os
anos em que, mais tarde, viverei em Coimbra, nunca vi letreiros em cafés a
proibirem o estudo.
Ver, também, no Estaleiro: todo o texto na UP.
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