quarta-feira, 15 de maio de 2019

Vergílio Ferreira no centenário do seu nascimento


Esta mensagem aguarda publicação desde o centenário do nascimento de Vergílio Ferreira (28 de Janeiro de 2016), para sair com outras, o que acontece agora.

Carta de Vergílio Ferreira à Censura




Évora, 31 – Maio- 953
   (R. Mesquita, 28)

Exmo Snr:
Foi para mim uma amarga surpresa a eliminação radical do meu livro Cavalo degolado. A amargura deriva da impossibilidade em que me vejo de lutar pela realização de mim próprio como artista: às mil dificuldades de mil ordens, acresce o obstáculo da Censura que da minha escassa bibliografia eliminou já três livros. E a surpresa advém de me parecer incomensurável a distância que separa o meu romance da decisão censorial.
Eu suponho que à Censura não interessará apenas suprimir o que julga prejudicial, mas defender, na medida do possível, o que representa esforço sério para melhoramento da arte e da cultura. Seguro como estou de que o meu livro foi escrito seriamente e representa alguma coisa nos domínios da arte, ouso apelar para V. Ex.ª rogando um novo exame, e mais clemente, do livro.
Sobre o tema do Cavalo degolado tenho fundadas razões para supor que ele não inclui ofensas à religião, ao clero, à moral, muito menos à ordem estabelecida, de modo a justificar-se a sua eliminação pura e simples. Pois de que trata o livro afinal? Apenas da original aspiração do homem à sua realização integral. O ambiente em que o livro se passa é o de um Seminário. Mas nem sequer o rigor dos Prefeitos tem nada de ofensivo, porque é o rigor banal de um qualquer colégio. O que há, sim, é uma enorme angústia do narrador, no desejo de evitar uma errada vocação. Mas essa angústia é a arte que a dá, – não os factos. O próprio problema sexual abordei-o por símbolos, formas esquemáticas; e quando o enfrento de caras, evito sempre a pornografia. De resto a Censura já me tinha autorizado a publicação de dois trechos deste romance, – que foram realmente publicados com surpreendente sucesso na Vértice e na Eva. Ora estes trechos estão ao nível de tudo o mais no livro.
Compreendo no entanto apesar de tudo que uma ou outra frase possa ser melhorada; que um ou outro termo possa ser substituído. Compreendo, enfim, que o livro sofra alguns cortes. Mas é doloroso que tenha de ser atirado todo ao esquecimento. Porque, temo bem, tal livro representa inumeráveis vigílias, meses e meses de esforço e sobretudo representa muitíssimo para o futuro de um escritor que há longos meses vem lutando por conquistar um público com o qual possa estabelecer um diálogo de artista. Já que as circunstâncias a tal me obrigam, ouso reafirmar a V. Ex.ª, com a consciência serena, que o Romance eliminado não é um livro banal; que se a arte, como fundamental valor de cultura, tem entre nós a defesa que merece, é inteiramente justo que o meu livro seja revisto com uma tolerância que se lhe negou.

Aguardando confiante, uma nova e mais favorável decisão
       De V. Ex.ª
              Subscrevo-me atenciosamente
                                              Vergílio Ferreira

                                                                      *
De Vergílio Ferreira, que havemos de dizer?

Sem comentários:

Enviar um comentário