Esta mensagem aguarda publicação desde o centenário do nascimento de Vergílio Ferreira (28 de Janeiro de 2016), para sair com outras, o que acontece agora.
Carta de Vergílio Ferreira à Censura
(R. Mesquita, 28)
Exmo Snr:
Foi para mim uma amarga surpresa a
eliminação radical do meu livro Cavalo
degolado. A amargura deriva da impossibilidade em que me vejo de lutar pela
realização de mim próprio como artista: às mil dificuldades de mil ordens,
acresce o obstáculo da Censura que da minha escassa bibliografia eliminou já
três livros. E a surpresa advém de me parecer incomensurável a distância que
separa o meu romance da decisão censorial.
Eu suponho que à Censura não interessará
apenas suprimir o que julga prejudicial, mas defender, na medida do possível, o
que representa esforço sério para melhoramento da arte e da cultura. Seguro
como estou de que o meu livro foi escrito seriamente e representa alguma coisa
nos domínios da arte, ouso apelar para V. Ex.ª rogando um novo exame, e mais
clemente, do livro.
Sobre o tema do Cavalo degolado tenho fundadas razões para supor que ele não inclui
ofensas à religião, ao clero, à moral, muito menos à ordem estabelecida, de
modo a justificar-se a sua eliminação pura e simples. Pois de que trata o livro
afinal? Apenas da original aspiração do homem à sua realização integral. O
ambiente em que o livro se passa é o de um Seminário. Mas nem sequer o rigor
dos Prefeitos tem nada de ofensivo, porque é o rigor banal de um qualquer
colégio. O que há, sim, é uma enorme angústia do narrador, no desejo de evitar
uma errada vocação. Mas essa angústia é a
arte que a dá, – não os factos. O próprio problema sexual abordei-o por
símbolos, formas esquemáticas; e quando o enfrento de caras, evito sempre a
pornografia. De resto a Censura já me tinha autorizado a publicação de dois
trechos deste romance, – que foram realmente publicados com surpreendente sucesso
na Vértice e na Eva. Ora estes trechos estão ao nível de tudo o mais no livro.
Compreendo no entanto apesar de tudo que
uma ou outra frase possa ser melhorada; que um ou outro termo possa ser
substituído. Compreendo, enfim, que o livro sofra alguns cortes. Mas é doloroso
que tenha de ser atirado todo ao esquecimento. Porque, temo bem, tal livro
representa inumeráveis vigílias, meses e meses de esforço e sobretudo
representa muitíssimo para o futuro de um escritor que há longos meses vem
lutando por conquistar um público com o qual possa estabelecer um diálogo de
artista. Já que as circunstâncias a tal me obrigam, ouso reafirmar a V. Ex.ª,
com a consciência serena, que o Romance eliminado não é um livro banal; que se
a arte, como fundamental valor de cultura, tem entre nós a defesa que merece, é
inteiramente justo que o meu livro seja revisto com uma tolerância que se lhe
negou.
Aguardando confiante, uma nova e mais
favorável decisão
De V. Ex.ª
Subscrevo-me atenciosamente
Vergílio
Ferreira
*
De
Vergílio Ferreira, que havemos de dizer?
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