Eis um texto, hoje saído no Público, que vale a pena (de) ler.
Eu sou dos que pensam que a ideia de acordo tem fundamento extralinguístico e «não havia necessidade», sem embargo de haver defensores dele de alto gabarito e honestidade. Lá mais para trás, não sei, mas a prática começou em 45.
O Manifesto
de Girona
e os “fatos
com-seus-medos”
Debate Dia Mundial da Língua Materna
Teresa R. Cadete*
Em Maio de 2011, os participantes do encontro anual do
Comité de Tradução e Direitos Linguísticos do PEN Internacional, reunidos na
cidade catalã de Girona, terminavam de redigir um pequeno manifesto que sintetizava
em dez pontos o documento muito mais extenso, até então em vigor, de defesa dos
direitos das línguas, sobretudo minoritárias, em particular daquelas que
estavam — e estão — ameaçadas de extinção. Pela sua importância, transcrevemos
aqui este texto, que condensa as preocupações de todos os que cuidam do tecido
que nos conecta quando pensamos, comunicamos, criamos, sonhamos:
1. A diversidade linguística é um património da humanidade
que deve ser valorizado e protegido.
2. O respeito por todas as línguas e culturas é fundamental
no processo de construção e manutenção do diálogo e da paz no mundo.
3. Cada pessoa aprende a falar no seio de uma comunidade que
lhe dá vida, língua, cultura e identidade.
4. As diversas
línguas e os diversos falares não são só instrumentos de comunicação; são
também o meio em que os seres humanos crescem e as culturas se constroem.
5. Qualquer
comunidade linguística tem direito a que a sua língua seja utilizada oficialmente
no seu território.
6. O ensino escolar
deve contribuir para prestigiar a língua falada pela comunidade linguística do
território.
7. O conhecimento
generalizado de diversas línguas por parte dos cidadãos é um objectivo
desejável, porque favorece a empatia e a abertura intelectual, ao mesmo tempo
que contribui para um conhecimento profundo da língua própria.
8. A tradução de
textos — particularmente dos grandes textos das diversas culturas — representa
um elemento muito importante no necessário processo de maior conhecimento e
respeito entre os homens.
9. Os meios de
comunicação são amplificadores privilegiados quando se trata de tornar efectiva
a diversidade linguística e de prestigiá-la com competência e rigor.
10. O direito ao uso e protecção da língua própria deve ser reconhecido
pelas Nações Unidas como um dos direitos humanos fundamentais.
Este manifesto
encontra-se traduzido em numerosas línguas e foi ratificado na assembleia geral
anual do PEN Internacional, que ocorreu em Belgrado no mês de Setembro desse
mesmo ano. Como vemos, não se trata apenas de uma defesa da integridade das línguas,
na sua qualidade de organismos vivos, que não só palpitam, mas fluem como rios.
Note-se de passagem que a defesa do método directo de aprendizagem das línguas
começou por ir a par da ideia de falar fluentemente uma língua. Num primeiro momento,
tal método terá contribuído para libertar muitas pessoas do espartilho gramatical
a que obrigava uma aprendizagem obsessivamente fixada em regras.
Se a valorização da
comunicabilidade imediata é importante num primeiro momento, porém o caminho
para uma aprendizagem aprofundada — sustentada — passa pela interiorização de
regras. Isso pode ser feito de numerosas maneiras e sempre com o suporte da
leitura em voz alta de autores consagrados, da poesia musicada (sim, sim, vivam
essas lyrics que nos acompanham no dia-a-dia, graças às novas tecnologias: e
experimente-se cantar ao volante sobre as palavras de um dos nossos autores de
culto, também como meio seguro para evitar o cansaço). Ora tal interiorização torna-se
numa verdadeira descoberta quando se cria esse tecido, essa ponte imediata,
sobretudo num registo de musicalidade. Não o advogavam já os teóricos clássicos
da linguagem, de Rousseau a Herder e Humboldt?
O mais profundo
prazer com a língua materna, ou com outra língua que se aprende, ousaria
afirmá-lo, pode sentir-se quando a sabemos integrada numa família de história e
geografi a específicas. E essa família é grande e antiga. Dou um exemplo da
aprendizagem do alemão, língua cuja dificuldade (mas nenhuma língua é “fácil”
como mascar pastilha elástica) é sentida por quem não aprendeu latim e não
treinou a suspensão da respiração até chegar, nas orações subordinadas, ao fi o
condutor da frase e do pensamento: o verbo que exprime a acção. Aqui chegamos,
quase sem nos apercebermos, ao domínio da filosofia da linguagem: toda a
narrativa conseguida culmina num desfecho que terá entretanto mantido preso o
ouvinte ou o leitor.
Foi precisamente Wilhelm
von Humboldt (1767-1835) que se opôs ao positivismo nascente que tratava a
língua como um produto reversível (ergon) e não como “um ser individual, com
carácter e configuração definidos, dotado de uma força que age sobre o ânimo, e
que não é destituído da faculdade de se reproduzir” (Introdução ao Agamemnon,
1816, trad. de José Miranda Justo) — ou seja, uma forma de energeia que se vai
moldando nesse fluir da aprendizagem e da prática da descoberta que é sempre
uma forma de tradução, de auto-recriação, mesmo dentro da mesma língua e
sobretudo dentro da língua materna.
Não
existirão razões de sobra
que provam a
barbaridade imposta
pelo desacordo ortográfico?
Hoje, Dia Mundial da Língua Materna, é uma data que podemos
celebrar de forma serena, reflectindo, questionando. Quererá, poderá um
professor privar os seus alunos de descobrir a familiaridade dessas percepções
— e isso porque a terão perceBido nesse entrosamento encantatório de intuição,
mnemónica, ritmo e reflexão? Quererá, poderá um tradutor — sobretudo numa
edição bilingue de texto — decepar a raiz indoeuropeia CT e colocar, numa linha
paralela ao inglês aCt, um mísero ato que nem sequer tem a graça explosiva que
ficámos a conhecer do filme de Almodovar? Quem poderá censurar aqueles que
porventura, munidos de uma caneta correctora (de preferência para escrever em
acetatos), tentam reparar um mal que contudo é remediável, bastando que
deputados e governantes tenham a humildade de reconhecer um erro que ficou à
vista de todos o mais tardar desde o adiamento da entrada em vigor de um
recorte ortográfico (sim, porque “acordo” é pura ficção)? E sabemos que os
brasileiros, a fazerem um “acordo”, fá-lo-ão uma vez mais à sua maneira, como
em 1955?
Em Setembro de 2012,
no congresso do PEN Internacional na Coreia do Sul, os delegados dos 89 centros
presentes aprovaram por unanimidade a resolução redigida pelo Comité de
Tradução e Direitos Linguísticos. Devo sublinhar que o centro português não
tomou parte na redacção da mesma – apenas apresentou o problema, sobre o qual
os redactores se debruçaram, e traduziu o texto. Este pode ser lido através do link
http://proximidade.penclubeportugues.
org. Interessante foi, neste contexto, a incredulidade dos presentes —
anglófonos, francófonos, hispanófonos e outros — e a veemência com que afi
rmaram que tal ocorrência seria impossível nos seus países. Vamos acreditar que
estamos num regime totalitário, como um discurso acordista fundamentalista,
usando tortamente o programa Lince já em si uma máquina de produzir erros?
Tratando a língua como um ergon, alega-se “factos consumados”, quando na
realidade se joga com receios atávicos, com “fatos com-seus-medos” por parte de
pessoas que não gostam “daquilo”, mas acham que têm de aplicar “aquilo” no
quotidiano, sem saberem os seus direitos constitucionais? Não existirão razões
de sobra, expostas por especialistas qualificados, que provam a barbaridade
imposta pelo desacordo ortográfico? Não estará aberta a possibilidade de usar
meios jurídicos para o travar, mas não seria preferível uma corajosa vontade
política que o revogasse?
*Professora catedrática da Faculdade de
Letras da Universidade de Lisboa e presidente do PEN Clube Português
Público, pág.
47, 21-2-2013
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