segunda-feira, 2 de setembro de 2013

Gabriel Pereira, em Torres Vedras


GABRIEL PEREIRA

Durante os anos que passou em Lisboa, Gabriel Pereira, falando mais alto o seu espírito de arqueólogo e explorador, fez várias visitas e pequenas viagens aos arredores da cidade. Destes pequenos passeios resultou este relato, no qual há descrições dos vários imóveis de interesse para este autor. No primeiro capítulo, "S. Domingos de Benfica", que foi escrito em 1905, o autor descreve o mosteiro abandonado de S. Domingos de Benfica, a sua fonte, a capela dos Castros, o convento de S. Vicente Martyres, o palácio e jardim de Fronteira.

No "Lindo sítio de Carnide" (1898) e nas "Noticias de Carnide" (1900) o autor relata a temporada que passou nesta localidade e dos seus passeios que fez nas redondezas.

Em "A vila da Ericeira" (1903-1905), Gabriel Pereira apresenta uma pequena nota histórica sobre a vila da Ericeira. Esta localiza-se a uma légua a noroeste de Mafra e o autor refere aspectos sobre a sua fundação e o seu primeiro foral outorgado por D. Dinis, as suas estradas e caminhos, as suas antiguidades romanas e medievais, a sua costa e algumas histórias caricatas.

Sobre o passeio "De Benfica á Quinta do Correio-mor" (1905), o autor descreve o palácio da quinta e a mata. Durante a viagem passa pela igreja de S. Lourenço de Carnide, igreja de Nossa Senhora da Luz, igreja de S. João Baptista no Lumiar e pela ermida de S. Sebastião do Paço também no Lumiar.

Por último, da visita de Gabriel Pereira em 1906 a Torres Vedras, resultou "Torres Vedras, notas de arte e arqueologia". Como arqueólogo o autor descreve os painéis antigos das igrejas de Santa Maria do Castelo, São Pedro, São Miguel e São Tiago. Refere-se ainda à ermida e forte de S. Vicente, ao convento do Varatojo, à quinta das Lapas, entre outros.
      [Este texto, e os citados abaixo, de Gabriel Pereira, pode encontrar-se, pesquisando em http://www.bdalentejo.net/.]


Na missa e no mercado
No domingo, 14 d’agosto, assisti á missa na egreja de S. Pedro. Muita gente, com bastante respeito. Á sahida fiz de janota parado á porta da egreja para vêr o desfilar dos devotos. Primeiro os homens dos campos, das vinhas, com seus varapaus; mulheres do campo de chale, lenços mal postos na cabeça, á larga. Seguiram as mulheres da villa; caras agradáveis poucas, expressões duras não estupidas nem alvares; na grande maioria cabelos castanho-escuro; cabelos pretos mais raros; algumas cabeleiras ruivas, e algumas peles sardentas.
Cabellos compridos, na maioria, poucos em madeixas. Alguns olhos azues, peles avermelhadas.
Homens de construcção regular, as mulheres de thorax estreito, pouco seio, mal geitosas.
Durante a missa os homens não largam os varapaus; quando ajoelham vê-se grande numero, porque se encostam, e não deitam no chão o inseparavel.
Usam o simples marmelleiro ou zambujeiro, raros os paus ferrados.
As mulheres usam poucos ornatos, e pouco ouro.
No terreiro próximo da egreja faz-se o mercado. Vendiam melões, melancias, uvas lindas, brunhos vários, maçãs grandes, variedade de peras, aboboras, tomates, pouca hortaliça.
No mercado de peixe, atraz da egreja, sardinha e sarda, fresca e salgada, cação, gorazes; o peixe vem de Nazareth e de Peniche.
Mulheres do campo aviavam os seus cabazes; levavam pão, meio cento de sardinhas, meia dúzia de sardas.
A um cantinho do mercado estavam algumas mulheres com polvo, mexilhão, caranguejos grandes. Não faltava a mulher dos tremoços e da pevide de abobora. Dois homens vendiam planta de couve. Vi ainda vendedores de enxadas, e de calçado forte, sapatos de dura.
Os homens na maioria usam botas altas.
Todo o povo destes sítios é calçado, só por excepção vi gente descalça. Isto de pé descalço é uma inferioridade, que talvez acabasse com um pequeno impulso.
Dizem-me que a gente hespanhola está toda calçada já, tem conseguido o sapato e a alpargata de preço baixo. Talvez que as comissões parochiaes de beneficência podessem resolver o problema. Eu acho o pé descalço uma cousa deprimente, que entristece.
Na pequena praça do Município (em 1904) faz-se o mercado da batata; mal se transitava tanta era a saccaria; vende-se a batata arrobada; pareceu-me de boa qualidade. Em 1905 este mercado fazia-se no largo de S. Thiago.
Pelas lojas nas ruas próximas grande freguesia, de gente dos arredores que ao domingo vem mercar á villa.
Há movimento comercial em Torres, lojas com muitos contos de réis em existência. A villa é pequena mas os arredores são muito povoados.
Vi industria de ferragens e mobilia especial, com algum geito.
Pelo aspecto geral é gente que trabalha, sóbria, um tanto rude.
É escusado dizer que o fomento oficial é nullo, depois da pobre escola primaria nada mais; algumas creanças vão de Torres ao Varatojo! Para aprender alguma cousa; uma caminhada de uma hora.

Aqui em Torres seriam uteis uma aula de desenho, outra de agricultura, e uma terceira de arithmetica e geometria com ensino especial de contabilidade; porque esta villa é centro de uma região agricola importante, tem commercio grande e pequeno, e industrias que se podem desenvolver.

A feira franca

(21 DE AGOSTO DE 1904)

Na grande varzea em parte arborizada faz-se esta feira muito concorrida pela gente d’aquelles sítios; a região de Torres Vedras é bastante povoada; aldeias e logarejos, boas quintas, casaes, matizam os campos acidentados, as collinas entremeadas de valles e vareas férteis.
Este rocio onde se faz a feira tem ao lado a casaria da villa, ao norte o monte onde se ergue o castello, entre olivedo e paredões negros alveja a egreja de Santa Maria, muito caiada; mais longe e mais alto o monte de S. Vicente; a poente do rocio a serra do Varatojo, vestida de vinhedos. Na parte arborizada enfileiram-se barracas e tendas, no rocio nú é a feira de gados e a corredoura.
As barracas de ourivesaria agrupam-se com as dos utensílios de arame, cobre, ferro estanhado, latoaria. As dos vidros estão perto do grande estendal de louças branca e vermelha.
A louça ordinária, popular, provém das diferentes olarias do termo de Mafra, a branca vem de Alcobaça.
  A notar um especialista de buzinas de moinhos de vento, aquellas vasilhas de barro, que assobiam e zumbem quando o vento apressa o movimento das quatro velas triangulares.
Vende-se calçado grosso, bastante correaria, não faltando as sogas ornadas, bordadas a pita colorida.
Pequenas quinquilherias, modestas roletas variadas formam uma rua, leiloeiros de várias qualidades chamam a gritos a atenção do povinho, perto das barracas de tiro ao alvo.
Num espaço grande estão as madeiras; o que mais dá na vista é o material vinario; é natural, estamos numa grande região vinhateira.
Cubas, toneis, balseiros, barris, celhas, tinas em abundancia; de castanho as mais; algumas de pinho da terra, género barato. Carros para bois, e também de pequenas dimensões e de construção mais leve para burricos. Há especialistas em arcos, e negociantes de varedo, assim como de crivos e peneiras.
Menos importante a feira do gado; bastantes porcas com leitões, poucas juntas de bois, pouco e inferior o gado cavalar e asinino.
Pareceu-me em geral mal tratado o gado, tanto na feira como no que observei fóra.
É mais pancada que a alimentação regular.
Já se vê não faltavam as barracas de comer e beber, com os seus fritos alourados, e constante freguesia.
Comia-se bem, bebia-se melhor; homens e mulheres espatifavam acerejadas gallinhas, consumiam patos com arroz cheirando que era uma delicia, e sorviam as talhadas dos sumarentos e aromáticos melões, atirando as cascas aos porcos e leitões grunhindo pela gulodice.
A impressão geral é de atrazo, de educação nulla ou rudimentar; de trabalho mau com inferior alfaia, todavia gosto de vêr o povo rural nestas feiras; é naturalmente são; um tanto brutal nos costumes, se ninguém trata d’elle! Mas de bom fundo.
Estamos longe d’aquelles campónios insolentes, turbulentos, cupidos, eivados d’alcoolismo, devastados por seitas ferozes, que preocupam em Allemanha, na Italia, na França a gente que pensa e vê alguma cousa.
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Outros pontos de interesse tocou Gabriel Pereira: painéis antigos de várias igrejas, o túmulo dos Perestrelos, capitéis românicos, ermida e forte de S. Vicente, imagens de santos, uma cadeira do século XV, brasões da vila, arquivos (Câmara, Misericórdia, igreja de Santa Maria,) uma inscrição moderna (Luís da Silva Mouzinho de Albuquerque), sinos, casa dos clérigos pobres, junto à igreja de S. Pedro, o asilo da Conquinha, a jornada de Ceuta, passeio a Santa Cruz de Ribamar (a nossa Santa Cruz), no Vararojo, a igreja de N.ª Senhora do Amial, a de S. Maria do Castelo, a de S. Pedro, a Quinta das Lapas, o caminho dos Cucos..., destacando aqui o que a acção empreendedora de Neiva Vieira fez, o que ainda se poderia fazer aceitando colaboração de outras entidades e a ajuda valiosa do director clínico das termas, o dr. Justino Xavier da Silva Freire(1).
Tem graça o que diz sobre um uso cheio de carácter, no adro da igreja de Santa Maria do Castelo e que se perdeu. Surgem coisas novas, é verdade, mas não deixamos de sentir que, de então para cá, o caminho que Gabriel Pereira apontou com algum desgosto alargou-se muito, embora caminhos, haja sempre vários e o que é bom se vá afirmando também (2). 
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(1) [Na igreja de Santa Maria do Castelo]
 Faz-se alli festa religiosa em 15 d'agosto, porque parece que foi n'este dia que Affonso Henriques tomou a villa aos mouros, em 1148. Ainda no começo do seculo XIX, na noite do dia 14, vespera da festa, faziam grandes fogueiras no adro e por entre as ameias.
Perdeu-se a usança pittoresca, ante esta onda de semsaboria que vae estragando tudo.
(Gabriel Pereira, «Torres Vedras, Notas d'arte e archeologia (1906), in Pelos Suburbios e Visinhanças de Lisboa, Lisboa, Livraria Classica Editora, 1910, págs. 255-305, a páginas 260-261). O texto teve a 1.ª edição em Lisboa, 1906, na Officina Typographica, com o título Torres Vedras, Notas d'Arte e Archeologia (1906)).

(2) [O Sr. Dias Neiva e o Dr. Justino Freire]*
O principal está feito, e isto deve-se á coragem do opulento proprietario sr. José Gonçalves Dias Neiva. Á coragem e á generosidade, porque me affirmaram que embora a freguesia seja grande já, todavia nem 2% rende o capital alli empregado.
[A água dos Cucos]
Eu não bebo doutra; faz bem e é agradavel, com o seu ligeiro sabôr salgado. Liga-se optimamente com o vinho. É uma excellente agua de mesa que os sãos, não só os enfermos, tomam com agrado. Melhoram o appetite e facilitam a digestão.
Esta agua, que tem o maravilhoso lithio, é muito pura segundo a analyse microbiologica, feita em 1904, pelo illustre chimico Carlos Lepiérre.
[...] É generoso o coração do sr. Neiva, consideráveis os seus bens de fortuna, e effectivo o seu altruismo, mas em emprezas destas é bom interessar differentes entidades, para que se uma esmorecer, outras continuem a obra, a util obra começada.
Encontrou o sr. Neiva um ajudante dedicado o dr. Justino Xavier da Silva Freire, director medico das thermas. É um clinico sensato, naturalmente lhano, muito accessivel, attencioso aos muitos enfermos. Que longas narrativas das massadoras enfermidades elle escuta com delicada paciencia, conseguindo extrahir das confusas exposições a historia da doença, o fio do caso, os antecedentes do enfermo. Os seus relatorios annuaes das thermas são muito instructivos e tão nitidamente escriptos que qualquer cliente os comprehende, aproveitando com a leitura.
*Os textos aqui apresentados encontam-se nas páginas 290, 291 e 292 de Pelos Suburbios e Visinhanças de Lisboa.

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     Este verbete sobre Gabriel Pereira foi tirado, com a devida vénia,  da Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, vol. 21, págs. 137 (1.ª col.), 138 (cols. 1 e 2)  e 139 (1.ª col.).


     A sessão da Segunda Classe de 11 de Janeiro do ano passado constitui uma imponente homenagem ao falecido sócio correspondente, Gabriel Vitor do Monte Pereira, discursando os Srs. Teixeira de Queiroz, Brito Aranha, Leite de Vasconcelos e Pedro de Azevedo sobre o vastíssimo e valioso trabalho do primeiro dos bibliógrafos e arqueólogos portugueses, a quem a Biblioteca Nacional deve imensos serviços. 
[Extracto colhido na internet, de Academia das Ciências, História e Memórias, Tomo XII, Parte II. «11 de Janeiro do ano passado» deve referir-se a 1912, mas não me foi possível conferir.]

     Sobre Gabriel Pereira, Notícia Cronológica, por J. Leite de Vasconcelos, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1913.





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