quarta-feira, 20 de março de 2013

Tratado Teológico-Político

  Espinosa
 O Tratado Teológico-Político

     Acabei de ler há dias esta grande obra.   Nela, o autor faz uma crítica da Bíblia, conhecedor do hebraico que era (não dominava o grego), e vê aí uma mensagem ou conteúdo que os erros, emendas, contradições, não conseguem apagar. Essa é a verdade, o essencial que não muda: a palavra de Deus, a verdadeira escritura está dentro de nós, na mente. É necessário procurar a excelência da virtude; o amor pelo próximo, a caridade, a vida verdadeira.
O método que segue para interpretar com segurança a Bíblia é o mesmo que segue para interpretar a natureza.

     Reflecte sobre a sociedade, o poder soberano, os vários tipos de pessoa, com diferentes mentalidades e capacidades, a plebe e os sábios. As pessoas medem-se pelas suas obras. Importante: as ideias que se tem e a vida que se leva. A maior riqueza é a vida que se leva, segundo valores de razão, fraternidade.

     Chego ao fim do livro e penso por momentos que todo o Tratado Teológico-Político que fica para trás é  a preparação deste último capítulo, o XX: a defesa da liberdade, no foro íntimo de cada um; reduto que deve ser inacessível. E o Estado democrático é o que mais se aproxima do estado de natureza.
     Nota: A edição do T. T.-P, que li e donde foram tirados alguns textos e títulos de capítulos que seguem, é a da INCM.



ANTOLOGIA

[A plebe, o vulgo, os sábios]

Assim, se alguém quiser ensinar uma doutrina a toda uma nação, para não dizer a todo o género humano, e quiser ser entendido por todos e em todos os pormenores, terá de a demonstrar unicamente pela experiência e adaptar os seus argumentos e as definições das coisas que vai ensinar à capacidade de compreender própria da plebe, que constitui a maior parte do género humano, em vez de os encadear e de apresentar as definições que melhor serviriam para esse efeito. Caso contrário, condena-se a escrever unicamente para os sábios, quer dizer, não poderá ser entendido senão por um punhado de homens proporcionalmente reduzido. (P. 185)

           É, com efeito, evidente, pelo que acabei de expor, que o conhecimento e a fé nessas histórias são extremamente necessários ao vulgo, cuja maneira de ser é incapaz de perceber as coisas clara e distintamente. (P. 186)
           O vulgo, por conseguinte, só tem de conhecer as histórias que melhor possam incutir-lhe no ânimo a obediência e a piedade. Mas, o vulgo não é sequer suficientemente apto para ter uma opinião sobre estas matérias, e por isso gosta mais das narrativas e do seu lado insólito e inesperado do que propriamente da doutrina aí contida. Donde, além da leitura das histórias, precisa ainda de pastores ou ministros da Igreja que o ensinem de maneira adequada à suas fracas capacidades. (P. 187)

                                                       [As ideias que se tem e a vida que se leva
                                                                       As obras, os frutos]

Tão-pouco está nos meus projectos refutar aqui a opinião dos que admitem que a luz natural não pode ensinar nada de útil no que respeita à verdadeira salvação. Quem a si mesmo não reconhece uma réstea de razão também não pode provar com razão alguma a opinião que sustenta. E se eles se vangloriam de possuir algo de superior à razão, isso não passa de pura ficção, que é de longe inferior à razão, como se tem visto pela vida que habitualmente levam. Mas sobre isto, não é preciso dizer mais nada. Acrescentarei apenas que não se pode conhecer ninguém a não ser pelas suas obras. Por isso, quem produzir em abundância frutos como a caridade, a alegria, a paz, a paciência, a benevolência, a bondade, a fé, a afabilidade, a temperança, aos quais, como diz Paulo, na sua Epístola aos Gálatas, cap. V, 22, a lei não se opõe, esse, quer se guie só pela razão ou só pela Escritura, é realmente guiado por Deus e possui a beatitude. E é tudo quanto queria dizer acerca da lei divina. (P. 188)

 Capítulo XII
Do Verdadeiro Texto da Lei Divina
E por que razão a escritura se designa por sagrada
e se considera a palavra de Deus.
Onde se demonstra, em suma, que a mesma escritura,
enquanto portadora da palavra de Deus,
chegou até nós intacta

         Com efeito, tanto a razão como as declarações dos profetas e dos apóstolos proclamam abertamente que o verbo eterno de Deus, o seu pacto e a verdadeira religião stão inscritos pela mão divina no coração dos homens, isto é, na mente do homem: é esse o verdadeiro documento de Deus, aquele que ele próprio autenticou com o seu selo, quer dizer, com a ideia de si, essa como que imagem da sua divindade.

Capítulo XIII
Onde se mostra que a escritura
só ensina coisas muito simples
e não tem por objectivo senão a obediência;
mesmo da natureza de Deus, ela não ensina
senão aquilo que os homens podem imitar
através de uma certa regra de vida

Capítulo XIV
O que é a fé, quem é que é fiel,
quais os fundamentos da fé
e como se distingue da filosofia

Capítulo XV
Onde se demonstra que nem a teologia
está ao serviço da razão, nem a razão da teologia,
e se apresenta o motivo por que estamos persuadidos
da autoridade da sagrada escritura

 Com efeito, uma vez que não podemos compreender pela luz natural que a simples obediência é uma via para a salvação*, e uma vez que a revelação ensina acontecer assim por uma singular graça de Deus impossível de atingir pela razão, segue-se que a Escritura veio trazer aos mortais uma enorme consolação. É que todos podem obedecer e só um número muito reduzido, se o compararmos com a totalidade do género humano, adquire o hábito da virtude conduzido apenas pela razão, de tal maneira que, se não tivéssemos o testemunho da Escritura, seria caso para duvidar da salvação de quase todos.

 *Isto é, só a revelação, e não a razão [nós não sabemos naturalmente] pode ensinar que é suficiente para a salvação ou beatitude aceitar esses decretos divinos como regras ou mandamentos, e que não é necessário concebê-los como verdades eternas, conforme se vê pelas demonstrações apresentadas no capítulo IV.
Capítulo XVI
Dos fundamentos do Estado,
do direito natural e civil de cada indivíduo
e do direito dos soberanos

 Capítulo XVII
Onde se mostra que é impossível e desnecessário
alguém transferir todos os seus direitos
para o poder soberano; como era o estado hebraico
enquanto viveu Moisés e como foi depois,
entre a morte deste e o início da eleição dos reis;
até que ponto ele estava numa posição privilegiada
e quais as razões por que desapareceu, enfim,
o estado teocrático e porque é que
só se não houvesse luas intestinas ele poderia subsistir.

 Capítulo XVIII
Onde se deduzem,
a partir das instituições hebraicas
e da sua história,
alguns princípios políticos

 Capítulo XIX
Onde se demonstra que o direito em matéria religiosa
pertence integralmente às autoridades soberanas
e que o culto externo não deve perturbar
a paz do Estado, se se quer obedecer fielmente a Deus

 Capítulo XX
Onde se demonstra que num estado livre
é lícito a cada um pensar o que quiser
e dizer aquilo que pensa

[Os três primeiros períodos rezam assim:]
Se fosse tão fácil mandar nos ânimos como é mandar nas línguas, não havia nenhum governo que não estivesse em segurança ou que recorresse à violência, uma vez que todos os súbditos viveriam de acordo com o desígnio dos governantes e só em função das suas prescrições é que ajuizariam do que era bom ou mau, verdadeiro ou falso, justo ou iníquo. Mas isto, como já observámos no início do capítulo XVII, não é possível. A vontade de um homem não pode estar completamente sujeita a jurisdição alheia, porquanto ninguém pode transferir para outrem, nem ser coagido a tanto, o seu direito natural ou a sua faculdade de raciocinar livremente e ajuizar sobre qualquer coisa. (Pág. 385)
[A paragem, aqui, é arbitrária. Deve continuar a ler-se até à página seguinte e, mesmo, até «é este, conforme anunciei no início do capítulo XVI, o meu objectivo principal», já na página 367.]

            E, todavia, é inegável que tanto se podem cometer crimes de lesa-majestade por actos como palavras, razão por que, se é de facto impossível retirar completamente esta liberdade aos súbditos, também será altamente pernicioso conceder-lha sem quaisquer restrições. (P. 366)
          
           O verdadeiro fim do Estado é, portanto, a liberdade. (P. 367)

 A única coisa, pois, a que o indivíduo renunciou foi ao direito de agir segundo a sua própria lei, não ao direito de raciocinar e de julgar. Por isso, ninguém pode, de facto, actuar contra as determinações dos poderes soberanos sem lesar o direito destes, mas pode pensar, julgar e, por conseguinte, dizer absolutamente tudo, desde que se limite só a dizer ou a ensinar e defenda o seu parecer unicamente pela razão, sem fraudes, cólera, ódio ou intenção de produzir por sua exclusiva iniciativa qualquer alteração ao Estado. (P. 367) [Etc., etc.]

 E não há dúvida que esta maneira de governar é a melhor e a que traz menos inconvenientes, porquanto é a que mais se ajusta à natureza humana. Com efeito, num Estado democrático (que é o que mais se aproxima do estado de natureza), todos, como dissemos, se comprometeram pelo pacto a sujeitar ao que for comummente decidido os seus actos, mas não os seus juízos e raciocínios; quer dizer, como é impossível os homens pensarem todos do mesmo modo, acordaram que teria força de lei a opinião que obtivesse o maior número de votos, reservando-se, entretanto, a autoridade de a revogar quando reconhecessem que havia outra melhor. Sendo assim, quanto menos liberdade de opinião se concede aos homens, mais nos afastamos do estado mais parecido com o de natureza e, por conseguinte, mais violento é o poder. (Pp. 371-372)

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