(Chaves, 4 de Dezembro de 1920 — Cascais, 11 de Dezembro de 2013)
GEOG. e METEOR. Lugar da abóbada celeste que é atingido pela extremidade inferior da vertical prolongada através do centro da Terra em direcção aos antípodas.
Do ár.
[...] Del ár.
— Acha que há grandes pintores em Portugal em número suficiente ou existem poucos?
— Há poucos.
— Porque é difícil ser-se hipersensível e a natureza está muito bem feita. Um hipersensível sente as relações matemáticas mas, em compensação, é um infeliz porque se a hipersensibilidade é boa para resolver um quadro também é má para a vida em sociedade.
«Mas eu tenho a impressão, Teresa, que fui o único homem à superfície do planeta (...) que compreendeu o mecanismo da condição artística.»
Diz Nadir: A obra de arte obedece a leis matemáticas, a arquitectura, não. Arquitectura: o esteta. Os objectivos são diferentes; na arquitectura, a perfeição, a qualidade do objecto, cuja função responde à nossa necessidade; na obra de arte, a lei matemática. A qualidade perfeição é distinta da qualidade matemática.
O raciocínio não intervém na elaboração da obra de arte. Há percepções que são inconscientes; é regida por leis de que o indivíduo não tem consciência. O que o indivíduo expressa nas telas, na arte, são leis matemáticas.
Ao contrário de Kant:«A exactidão das formas é o espectáculo da minha vida.»
integração e desintegração.
*
Apontamentos
retirados do documentário
Nadir Afonso
Parte 1/2: O Pensamento e a Obra
Canal
C Cascais, Câmara Municipal de Cascais. Entrevista conduzida por Luísa Rego. Imagem
e Edição de António Maria Correia. Maio de 2012.
«Retoco.»
O
artista regional e o artista universal.
«E
retoco, mas nem sempre.»
«Encontro
erros.»
Às
vezes, quadros antigos. «Caramba! Acertei. Não tenho nada a pôr nem a tirar.»
Nadir face a
face com Einstein
Dizia,
aí, mais ou menos: «A luz não tem velocidade constante.» e «o tempo não existe»
e «há apenas movimento e espaço». (6 min. 50 s.)
Essa
percepção adquiriu-se, agora, ou…
—
Eu penso, mas não tenho a certeza, que tenho andado a meditar nessa lei, há
longos anos. Eu penso que o tempo não existe, mas já há muitos anos. Mas só
pouco a pouco é que eu consegui traduzir em palavras esse sentimento. Eu hoje
tenho já nos textos que têm solidez, que se justifica O Tempo Que não Existe. E
a pessoa que diz: Este macaco tem razão. Este indivíduo tem razão.
—
Quando começava uma obra de raiz, como é que começava esse processo? (8 min. 15 s.)
—
dos pintores mais conhecidos, há assim nomes que aprecie? (10 min.)
—
Max Ernst, Giorgio de Chirico. Eles encontram muito bem as leis da geometria. … O Van Gogh, também, mas o Van Gogh tinha
dificuldades económicas. Pintava num só dia. Num dia pintava uma obra. E eu
penso que é necessário, como eu disse há pouco, namorar o quadro, para se
descobrir as leis. E o Van Gogh mete muita água.
—
Van Gogh, como Picasso, também procurava as mesmas leis que o mestre procura?, …quando
viu a obra deles?
(10 min. 23 s.)
—
Procuravam, mas de uma maneira intuitiva. Eles não tinham, como eu tenho, a
noção que eles procuravam a exactidão matemática. Eles procuravam a exactidão
matemática, sem disso ter consciência. Eu tenho a impressão, e isto é uma
confissão que vos faço, imediata. Eu estou convencido, de tudo aquilo que li,
sobre aquilo que escreveram os estetas. Eu tenho a impressão que sou o único
indivíduo que apreendeu a exactidão matemática. A exactidão matemática. Eles nunca
falam disso. A essência da obra de arte está na matemática.
Nadir Afonso
Parte 2/2: Cascais
e a Vida do Pintor
Nos
anos 40, candidata-se a um lugar na Câmara de Cascais, como arquitecto; foi reprovado.
Diz: «Eu tive muita sorte em ser reprovado. Teria destruído a minha carreira de
pintura. Estoril. Obras suas inspiraram painéis de azulejos, agora no novo
túnel no Estoril. Gostou. Deve-o ao presidente da Câmara, António Capucho. É
bom para promover a obra dos artistas. O facto de a obra de um artista aparecer
em público promove as suas obras. Nisto, concorda com os artistas que se
promove. «Eu nunca me promovi.»
A
Casa das Histórias Paula Rego — horrível. Quando aprecia o trabalho de outros
artistas, não é muito lisonjeiro. A arquitectura da Casa das Histórias — execrável.
«Eu acho aquela pintura horrível; acho a arquitectura execrável.»
Olhando
a vila de Cascais, acha harmoniosa?
A
função da vila é responder às necessidades do Homem. Luísa Rego: «Se a vila
fosse um quadro, estava harmonioso?» A arquitectura e a pintura. Os estetas.
Luísa
Rego: «Até que ponto, as suas raízes de transmontano influenciaram a sua obra?»
«A
arte é intuitiva. Está a fazer uma pergunta à razão.» «Não sei responder.» «A
minha impressão é que não há interferência do meio.» «Não sei.»
Apontamentos
retirados do filme de Jorge Campos
Nadir Afonso
(1993)
(00
min. 47 seg.) a emoção do objecto e a emoção pura, sem qualquer sugestão de
objecto.
(06
min. 55 seg.) Como o artista trabalha; a necessidade de compreensão; «as formas
tornam-se exigentes».
(06
min 09 seg.) As ligações de Paris: falam Roger Aubry, Georges Candilis, André
Wogenscky, Iannis Xenakis, Catherine – filha de Nadir, Yvaral – filho de
Vasarelly; vai falando o próprio Nadir.
[(10 min. 43 s.) La Chansonnette, pela cançonetista Patachou.]
(24
min 17 seg.) Fim da 1.ª parte.
(25
min. 58 seg.) O círculo
(27 min. 04 seg.) As formas geométricas e Kant.
(29
min. 20 seg.) A essência da obra de arte; as formas elementares da natureza são
integradas, desintegradas, segundo uma lei, que o espírito apreende da natureza, igualmente.
A pintura era um círculo vermelho na parede da sala da sua casa, de tal modo perfeito que ninguém se atreveu a repreendê-lo. (31 min. 40 s. ±) (Legenda no documentário)
(33 min. 04 seg.) Identificação com a paisagem da sua infância.
(34 min. 01 seg.) «A paisagem torna-se humana e o homem torna-se paisagem.»
«Tudo o que há entre os homens é coado através da natureza; é sentido através da paisagem.» (34 min. 15 seg.)
«A paisagem torna-se humana e o homem torna-se paisagem.» (34 min. 26 s.)
«Na minha infância, tentei transmitir à tela, justamente, essa simpatia, por tudo aquilo que nos rodeava.» (35 min. 35 seg.)
Os Convencidos da Morte (38 min. 24 s.) No início da década de quarenta, formou-se o grupo dos Independentes
(entre outros, Júlio Resende, Fernando Lanhas, Júlio Pomar, Amândio Silva,
Nadir). «Eu acho que nós começámos por nos intitular Os Convencidos da Morte;
[...] irriter le bourgeois. (39 min. 23 s.)
O centro da nossa atenção era a mulher. (40 min.) [Canção, cantada por mulher: Kiss
me once and kiss me twice / Then kiss me once again /It's been a long, long
time / Haven't felt like this, my dear / Since I can't remember when / It's
been a long, long time / … It’s been a long, long time foi
cantada por Louis Armstrong, entre outros.]
«Eu pinto para ver se compreendo a razão por que pinto.» (40 min. 7 seg.)
A sua, foi uma longa evolução. (41 min. ±)
A Ópera (42 min. 17
seg). «A cor na arte joga como um factor
genético. O que é que isto quer dizer? Neste quadro, o fundo é branco. Aqui a
cúpula da ópera, isto pretende representar a ópera, é amarela. É um amarelo
claro. Este amarelo claro não é uma cor bonita, nem este vermelho é um vermelho
bonito. O que acontece é uma coisa. É que a cor amarela, pela sua intensidade,
em relação ao branco, harmoniza-se.»
A propósito da Ópera: «A cor
na arte joga como um factor geométrico.» (42 min. 30 seg.)
(43 min.) A cidade de S. Paulo.
(44 min. 46 s.) «O período egípcio?, sei lá bem! É... um quadro meu, começa hoje e vai acabar, não sei quando [...].»
O período egípcio: do barroco da igreja dos Grilos, no Porto, a... (45 min.)
Anos 50: Niemeyer, Cavalcanti, Portinari. E, ao longo de quase trinta anos de Paris, convive com homens como Magnelli, Bertrand, Guevan e, naturalmente, Le Corbusier. (46 min.)
— A propósito, Nadir, como era o Corbusier? Era uma pessoa difícil? (46 min. 28 seg.)
— Era. Era difícil, era. Era difícil. Tinha coisas do arco-da-velha, aquele homem.» Era simples, fácil, «mas quando se lhe falava na arte, aí, era o diabo!» (46 min. 29 seg.)
Ideia péssima sobre o mercado da arte: uns mafiosos. O mercado da arte: «Deus nos livre!» (48 min. ±)
*
TRANSCRIÇÃO INTEGRAL DA CONVERSA COM LUÍS CAETANO
[Pequeno trecho musical.]
Boa noite! Ontem, A Ronda conversou com o pintor Cruzeiro
Seixas, no dia em que fez 93 anos. Hoje, A Ronda vai conversar com o pintor
Nadir Afonso, no dia em que faz 93 anos. Vamos também conversar na Última
Edição, sobe a obra do islandês Halldór Laxness, escutar a poesia de Eduardo Pita, dita pelo
próprio, e ouvir a sinfonia Júpiter,
de Mozart, no Espaço Semibreve, de Andrea Lupi. Vai ser, assim, A Ronda. Esta é
a Sinfonia das Cores, de Arthur
Bliss, que ouvimos no momento da cor púrpura, pela Orquestra do Ulster,
direcção de Vernon Handley. Antes da conversa dum homem de nome raro, e «raro»
é o significado deste nome em hebraico, o pintor Nadir Afonso faz, hoje, 93
anos. Quis o acaso que, ontem, a mesma idade fosse celebrada por Cruzeiro
Seixas, que ouvimos n'A Ronda da Noite. A vida de Nadir Afonso foi feita de
acasos, também de encontros decisivos, muitas histórias de uma incessante procura
do conhecimento, que lhe chegou pela intuição, sentida e interpretada nas muitas
telas de que é feita esta vida de 93 anos. Já a seguir, uma conversa com Nadir
Afonso, celebrando-o em dia de aniversário.
[Até aqui, a música de A Sinfonia das Cores, como fundo. Agora, até começar a
conversa com Nadir Afonso, reina sozinha, durante 3 min. e 23 seg.]
— Este nome,
Nadir, de onde vem?
— Ora, bem! O
meu pai era também poeta. O meu pai era poeta e engraçou com o nome. Vem daí.
— É muito
pouco habitual.
— Mas…, há uma história ligada a tudo isso. Há uma história. Eu,
quando fui baptizado, ou melhor, quando o meu pai pegou em mim ao colo, para me
ir registar, encontrou no caminho — nós vivíamos nos arredores de Chaves — e
encontra no caminho um cigano. Isto, acho que é verdade. Pelo menos, é assim
que o meu pai me contou a mim. E o cigano perguntou-lhe: «Ó Artur, onde é que
tu vais?»
— Ah, eu vou aqui — levava-me ao colo —, vou aqui com o catraio,
vou registá-lo.
— Então, que nome lhe vais pôr ao pequeno?
— Eu vou pôr Orlando. — E diz o cigano:
— Orlando? Muito orlando há-de ser ele.
Não sei o que é que o homem queria dizer com isso…; mas, disse.
Então, mas, «muito orlando há-de ser ele».
— Põe-lhe, antes, Nadir.
E o meu pai engraçou com o nome e… fiquei Nadir. Por sugestão do
cigano. Isso é a minha mãe e o meu pai que me contaram, depois, mais tarde.
— Olha, tu és Nadir porque um cigano que encontrámos no caminho é
que se lembrou desse nome. E está muito bem.
— Muitos encontros, ao longo da vida, lhe hão-de ditar outros
caminhos, que não talvez aqueles que tivesse previsto…, já vamos voltar a esses
encontros. Durante essa infância em Chaves, quando é que começou a
pintar? Ouvi falar num círculo…
—
E é verdade, é… Isso é verdade, é… Eu tinha uns quatro ou cinco anos e a dada
altura lembrei-me de pintar um círculo, lá na parede da sala. Pintei um
círculo, porque aquela perfeição impressionou-me. E a minha mãe zangou-se
comigo.
—
Então, estás a sujar a parede?
—
Então, eu era capaz!?
—
Quem é que sujou a parede? — E eu respondi:
—
Eu seria capaz de fazer um círculo tão bem feitinho? — Para me desculpar, disse
que não fui eu.
—
Eu seria capaz de fazer um círculo tão bem feitinho? — E a minha mãe:
—
Bem, realmente, o catraio não seria capaz de fazer este círculo.
De
maneira que desculpei-me dessa maneira. Dizem, também, contam. Da cena já não
me lembro. Da cena já não me lembro. Lembro-me, depois, os meus pais me
contarem essas peripécias.
—
Para todos os efeitos, foi o seu primeiro contacto com a geometria,
—
Pois foi, …, sim.
—
com as formas perfeitas, até por essa perfeição que dizia ser quase pouco
natural para uma criança de quatro anos. O Nadir há-de seguir pela vida e há-de
entrar em arquitectura, por um outro desses encontros, tal como o do cigano,
que lhe há-de mudar um pouco o caminho, pelo menos durante uns anos. …
…
[O encontro com o
contínuo, na Escola de Belas Artes, do Porto, onde foi para se inscrever em
pintura. Foi convencido a inscrever-se em arquitectura. Rasga o requerimento e
faz outro.]
—
Também houve um encontro imprevisto. Houve um encontro imprevisto. E eu fui
arquitecto também de uma maneira improvisada. Eu não era, eu quando peguei no
meu requerimento e me dirigi à Escola de Belas Artes do Porto, para me
inscrever em Pintura, eu vinha de Chaves e era Pintura que eu trazia no
pensamento. E quando che…, não sei se o Luís conhece aquela entrada das Belas
Artes do Porto. Há um hall…, depois, há umas escadinhas, e depois há lá umas
balaustradas, e numa dessas balaustradas estava um empregado lá da das Belas
Artes, um funcionário, estava a dormitar. Estava ali sentado e estava a
dormitar, encostado à balaustrada. E eu, com os meus dezoito anos, cheguei,
timidamente, e perguntei-lhe:
—
O senhor faz-me um favor? Diz-me onde é a secretaria? — E o homem abriu o olho,
olhou para mim, puxa-me pelo requerimento e leu:
—
Então, o senhor tem o curso dos liceus e vem-se inscrever em Pintura? Ó homem,
a pintura não alimenta o seu homem! — palavras do funcionário. — Vá, antes,
para Arquitectura. — «Vá antes para Arquitectura», porque a Arquitectura,
naquela altura, isto é há setenta anos, ninguém se lembrava com um curso dos
liceus ir para Pintura, porque ia-se para a Pintura, sem a instrução primária. Naquela
altura. O próprio director das Belas Artes, um tal Joaquim Lopes, director,
teve que fazer o exame de instrução primária para ser director da escola;
porque ninguém pensava na… E eu, também, a minha ideia era a pintura, mas ele
meteu-se em mim, pressionou-me e eu, cobardemente, rasguei o requerimento e fiz
outro. «Eu venho, respeitosamente, requerer a V. Ex.ª que se digne aceitar-me
como aluno de Arquitectura. E fui para arquitecto.
[Le
Corbusier, Niemeyer]
—
E desses tempos, guarda boas memórias, da experiência, alguém que não queria ir
para Arquitectura, que o vai por um encontro súbito [N. A. — Fortuito...] com um contínuo adormecido,
acabou por ir parar ao convívio com alguns dos melhores, Le Corbusier [N. A. — Le Corbusier...], em
Paris, Niemeyer...
—
É verdade, é verdade.
—
Guarda, apesar desse caminho, que não era a opção principal [N.A.: «Desses encontros.»], guarda boas
memórias disso?
—
Guardo boas memórias, pois conheci esses homens, que…foi, encontro
interessante, sempre. É sempre interessante. Se bem que eu não seja de acordo com
eles. No meu ponto de vista estético, foi sempre um encontro agradável e...
—
Com quem é que se deu melhor!?, com Corbusier ou Niemeyer?
—
Ora bem! O Le Corbusier era mais sério. O Niemeyer era um pouco espalha-brasas,
era impulsivo. Insurgia-se facilmente. Era de um homem difícil. O Óscar
Niemeyer era difícil. Era bom homem e tal, está tudo muito bem, mas, no tocante
à arquitectura, disparatava. Às vezes…, eu tive problemas com ele, quando ele
era impulsivo. Porque, eu, então, seria nessa altura impulsivo… E houve
fricções. Mas acabaram por…, acabámos por ser amigos. Depois, eu pude ir para
Paris, algumas vezes relacionámos…
—
Mantiveram-se em contacto?
—
Tivemos, tivemos contacto ainda muito tempo. Escreveu-me para Paris e eu
respondia-lhe. Mas, mas houve problemas. Porque, o Niemeyer, eu tive problemas.
[Com a mulher e a filha,
surge a necessidade de voltar a Portugal.]
—
E não se sentiu tentado a ficar em Paris?
—
Queria ficar, mas havia problemas de alojamento(s) e, depois, já…, e depois, eu,
havia a minha mulher, francesa, e depois tive uma filha, e depois já não sabia
onde é que, onde é que, onde é que ia, como é que, há um termo, até, não sabia
onde é que ia pendurar o pote. Tive dificuldades, tive dificuldades. E senti a
certa altura necessidade de voltar para Portugal. Porque senti que a minha vida
era difícil. A minha vida era difícil. Enquanto eu fui só, eu vivi em qualquer
parte, naqueles hotéis, naqueles hotéis do Bairro Latino, muito frequentados
pelos argelinos e por aquela malta, os árabes, eu era nesse ambiente, que vivi,
mas quando nasceu a minha filha, já tinha mais responsabilidades, senti muito
mais responsabilidade e tive que resolver a minha vida. E voltei para Portugal.
Porque senti que eu já, problemas de… Porque eu vivia num apartamento, mas o
apartamento não era meu. De maneira que a pessoa que…, quis o apartamento para
ela e expulsou-me. Bem, isto, em termos…
[Em 65, afasta-se da
arquitectura, com perto de cinquenta anos. Tem obras na exposição da Maison des
Beaux Arts e um americano compra-lhe duas telas. Uma dessas telas voltou para
Portugal.
Como aluno das Belas
Artes, no Porto: «Eu não fazia arquitectura; eu
pintava arquitectura. Eu tinha a paixão da pintura. Eu pintava. Dava molho à
minha composição e o professor aí embirrou com essa coisa.»]
—
Muito sintéticos. … Nadir, em sessenta
e cinco, sensivelmente, afasta-se da arquitectura [Nadir Afonso: «Sim, sim.»].
Foi uma libertação?
—
Pois foi, foi. Eu tive, eu tive, em dada altura, a possibilidade de me afastar
da arquitectura, porque fiz uma exposição em Paris, numa…, na Maison des Beaux
Arts, fiz uma exposição em Paris, e as coisas correram-me bem, contra a
evolução natural, eu nunca tinha vendido um quadro, com perto de cinquenta
anos, já, talvez, perto de cinquenta anos, eu nunca tinha vendido um quadro, e
nessa exposição que fiz em Paris, na Maison des Beaux Arts, apareceu-me um
americano, que me comprou duas telas. Salvou-me, aí, em certa medida. Para mim
foi importante.
—
Mais um encontro importante.
—
Foi um encontro importante. Esse homem foi um indivíduo, realmente, era
americano! Eu até sabia o nome dele. Ele deve ter morrido, porque uma dessas
telas voltou para Portugal. Um dia, chamaram-me, para ver essa tela, e eu, em
Leiria. Eu fui a Leiria e vejo uma tela que já não via há…, eu tinha, talvez,
já não me lembro. Mas…, já há muitos anos. Quando vi a tela, fiquei
impressionado.
—
Foi uma grande surpresa.
—
Era um grande surpresa. Era muito linda. Estou-me a gabar a mim próprio.
—
Quem pode, merece.
—
Apareceu-me, lá, até, um antigo professor meu, aqui das Belas Artes do Porto,
com quem eu nunca me dei muito bem.
—
Mas foi uma alegria encontrarem-se.
—
Caímos nos braços um do outro. Caímos nos braços um do outro. Tanta vergonha
teve ele, como eu. Passámos a ser grandes amigos. Ele apareceu na exposição e
eu abracei-o. E fomos, e ele realmente foi, passou a ser um grande amigo meu;
quando eu, nós, houve problemas. Eu cheguei a ser expulso das Belas Artes do
Porto. Eu cheguei a ser expulso. Bem, mas isso, ó Luís, isso era…
—
Mas, diga-me lá porque é que foi expulso.
—
Um dia, o meu professor era Carlos Ramos. Era o Carlos Ramos. Era o director
das Belas Artes do Porto. Carlos Ramos. Disse-me esta coisa. Disse-me isto: «Eu
vejo que o senhor tem habilidade. Eu vejo que o senhor perce…, tem qualidades
para ser arquitecto, mas não tem paciência nenhuma. A sua, os seus trabalhos
são, não são, são descurados; não tem, não tem…» Eu não fazia arquitectura; eu
pintava arquitectura. Eu tinha a paixão da pintura. Eu pintava. Dava molho à
minha composição e o professor aí embirrou com essa coisa. Achava que os meus
trabalhos eram, não eram bem terminados, havia aí uma certa negligência. Havia
negligência, havia. Ele tinha razão, mas eu nessa altura só via pintura, não
via mais nada. «Sinto que o senhor tem dificuldade de material. A sua, o seu
trabalho, vê-se que é, que tem qualidades, mas é negligenciado. Eu vou-lhe
oferecer um estirador. Eu vou-lhe oferecer um estirador. E eu: «Ó Mestre, não
preciso nada, eu precisar, não, obrigado, agradeço, mas não quero, não preciso
do estirador.» Ele não ligou importância àquilo que eu disse. Eu entro no meu
quarto, na Rua Barão de S. Cosme, no Porto, entro no meu quarto e vejo lá um
estirador. Ele tinha, tinha mandado um estirador, mas uma coisa moderna, uma
coisa com roldanas, uma coisa que eu nunca tinha visto, ninguém usava aquilo,
ainda, era um estirador realmente fora de série, um móvel grande… A verdade é
esta. É que eu, o meu trabalho, que eu fiz nesse período, passou a ser
exactamente igual aos períodos anteriores. Ele ofereceu-me o estirador, ele
ofereceu-me o estirador. Eu achei que foi um gesto formidável, mas eu não
respondi, porque o meu trabalho continuou a ser negligenciado, era um trabalho…
—
Era o pintor a fazer arquitectura…
—
Era o pintor… E quando eu apresento o meu trabalho nesse período, eu chego às
Belas Artes do Porto, estavam as notas, na…, estavam as notas no hall, eu vou
por aí fora, e n…, n…, Nadir Afonso; onze valores! Baixou-me a nota. Lá me dava
uns catorzes, uns quinzes, mas ele sentiu que eu fui injusto. Eu não melhorei.
O meu trabalho não melhorou em nada. Ele pensou: «Bem, ofereci-lhe o estirador
e ele vai ser muito mais exímio.» E não. Era a mesma coisa. De maneira que ele
baixou-me a nota. Ele tinha razão. A verdade é esta. Eu só tinha os meus vinte
anos, era espirra-canivetes e quando vejo a minha nota baixar, eu cometi a
estupidez, eu hoje só considero isso uma estupidez, como é que uma pessoa muda!
Fiquei tão incomodado, quando vi que ele que me baixou a nota, e percebi:
«Baixou-me a nota porque eu devia ter respondido…»
—
Ele esperava mais de si.
—
Esperava mais...
—
Devolveu-lhe o estirador.
—
Eu fiz, fiz, assim… Fiz essa imprudência, essa injustiça. Pego no estirador,
pego, pedi a uma funcionária que estava lá em casa, uma empregada… «Pega daí!»
E, ambos, arrastámos o estirador até às Belas Artes. A Rua Barão de S. Cosme é
perto, felizmente. E entrei nas Belas Artes do Porto, com o hall cheio de alunos
que viam as notas…, a dizer incoerências. «Eu pinto qualquer, eu trabalho de
qualquer maneira. Não preciso de atelier, não preciso nada do estirador.
Comecei a dizer burrices. E devolvi o estirador. Ele não disse uma palavra.
Encaixou. Mas, expulsou-me. E arranjou um pretexto, que não era… arranjou um
pretexto que nada tinha a ver com… Eu fui expulso. Um mês.
—
Foi suspenso.
—
É verdade. E, depois, a minha vida foi muito difícil, sempre. Mas, acabei o
curso, acabei o curso.
—
Acabou o curso, teve essa magnífica experiência em Paris e resolveu depois
entregar-se à pintura. Em Portugal, a sua afirmação é progressiva, a partir dos
anos 60.
—
Como é que o Nadir Afonso pode apresentar a essência da sua arte?, como é que
pode apresentar os seus trabalhos?
—
Ó Luís, eu fui toda a vida um coca-bichinhos. Geralmente, um pintor, penso eu,
geralmente os pintores, de uma maneira geral, pintam de maneira intuitiva.
Pintam. Eu também faço isso. Mas, acrescentava sempre uma dúvida. Porque é que
eu ponho aqui um círculo e não ponho um quadrado? Era, eu interrogava-me. Eu
queria saber a razão porque é que estes impulsos são dirigidos à forma A e não
são dirigidos à forma B. Eu tive sempre essa preocupação de compreender, coisas
que não vejo no…, não me parece ver nos outros pintores. Um pintor, geralmente,
é intuitivo e pinta. E, depois, se a coisa lhe agrada: «É o meu mundo interior
que eu expresso na pintura. É o meu mundo interior, é… É a linguagem da minha
alma. É o espiritual.» E… a minha tendência é materialista. Eu nunca acreditei
nisso; nunca acreditei no espiritual, que o indivíduo acrescenta à obra e é
essa obra que gera a obra de arte. O que tenho a impressão e que tive nessa
altura já, que há qualquer coisa, qualquer lei, apanhada de maneira intuitiva e
o indivíduo exprime essa qualidade.»
—
E essa lei, vem da natureza [Nadir: «Ora, bem!»], da matemática?
—
Ora, bem! Essa lei é uma lei de fonte matemática. O que é que é intuitiva e os
estetas ainda não perceberam isso, Luís. Porque o indivíduo pode não ter
consciência do que faz, mas sente as leis. O artista pinta, emprega leis
intuitivas. … A obra de arte é regida por leis
matemáticas, mas essa matemática não é racionalizável. O indivíduo sente e sem
se aperceber que está a sentir matemática. Pensa que está a expressar o seu
mundo interior. … E não. É o que pensam os estetas. «A obra
de arte é a natureza, vista através de uma sensibilidade artística; é o mundo
interior do artista que se revela na pintura». E eu digo: «Não! Há leis! Há
leis.» E depois eu na minha luta. A minha luta foi acreditar que, além da
perfeição, da originalidade, da evocação que o artista imprime à sua obra, há
uma qualidade que não se apercebe, porque é regida por leis puramente
intuitivas. E o indivíduo emprega leis que realçam as outras qualidades. Isto é
que é interessante.
—
Isso quer dizer que um artista nunca é completamente livre, porque tem regras a
cumprir?
—
Pois não é; essa liberdade é um mito. O artista emprega leis que estão na
natureza. A matemática está na natureza. E é essa matemática que realça as
outras qualidades. O indivíduo pode, se ele é realmente um ser sensível, pode
até ir à perfeição, pode ter originalidade, mas, se não trabalhou as formas, se
não trabalhou as formas, se não criou uma apetência às leis que regem a obra de
arte, que são leis matemáticas, ele não faz obra de arte; porque um virtuoso
pode muito bem fazer uma cara muito bonita,
… um rosto, é bonito!, mas se não tem apreendido as leis da, as leis na
natureza, a que eu chamo leis de harmonia, que são leis matemáticas, ele não
faz obra de arte. É, a meu ver, na medida em que o artista realça essas
qualidades de perfeição, de originalidade e tal de leis matemáticas, que
realiza a obra de arte.
—
Quando é que essas fórmulas, quando é que essa harmonia está completa? Quando é
que sabe que uma obra de arte…
—
Ora, bem! Isso foi sempre a minha pergunta a mim próprio. Há o absoluto. Há o
absoluto. Em dada altura em que as formas se organizam de tal modo, que não há
nada a tirar nem a pôr. Eu penso nisso, mas para atingir esse absoluto é
extremamente difícil; porque é intuitivo. Isto é uma coisa do diabo. A
matemática está e é a essência da obra de arte. A matemática está na obra de
arte; é a essência, mas essa qualidade é-lhe dada por leis intuitivas. O
indivíduo sente e não se apercebe, ao nível do raciocínio, que são leis
matemáticas. E é por isso que a minha luta anda há anos e anos contra os
estetas, porque eu leio os estetas, ainda hoje leio os estetas, não há meio de
falarem uma única vez da harmonia de fonte matemática. Falam em perfeição, em
originalidade, em isto, mais aquilo, o mundo interior do artista…; sobre as leis da matemática, não há, não vejo
um único esteta que se refira a elas.
—
É por isso que se preocupa tanto, também, em conhecer, em pensar, em escrever
sobre o pensamento. O Nadir tem também essa faceta. Há uns anos, um livro seu
sobre Van Gogh foi considerado o melhor livro de arte na feira de Frankfurt,
mas falámos também há uns dois, três anos, do seu livro Face a Face com Einstein, e agora temos um novo livro-manifesto, O Tempo não Existe.
—
Que manifesto é este, Nadir Afonso?
—
Bem, eu refiro-me ao tempo, refiro-me às leis que regem a obra de arte, de
fonte matemática, e faço uma pequena, uma pequena introdução à evolução da
espécie humana.
—
Porque é que o Nadir retoca tanto as suas obras? Sei que até o faz nos livros.
Porquê, Nadir?
—
Porque, geralmente, há essa necessidade da perfeição total, a harmonia total, há
o absoluto, eu creio que há um absoluto na pintura. Eu creio que em dada altura
na pintura não há nada a pôr e a tirar. Está exacta. A conjugação das formas é
plena. Há leis matemáticas. E ali não há nada a pôr nem a tirar. Mas, para
chegar a essa precisão, é um longo trabalho…. Para apreender as leis da
matemática, é um trabalho, é uma vida. Eu, hoje, olho para os meus trabalhos de
há trinta ou quarenta ou cinquenta anos e encontro defeitos; encontro defeitos.
Já estou mais frágil, fisicamente estou mais frágil, mas espiritualmente sinto
mais, mais a perfeiç…, mais a harmonia das formas. Sinto mais a matemática.
—
E intervém.
—
E intervenho… E modifico, modifico.Olho para muitos quadros meus, antigos, e retoco…,
retoco. É uma necessidade. Mas é uma necessidade, Luís, a tal ponto, que quando
eu entro na exposição e vejo lá quadros meus que já não via há quarenta ou
cinquenta anos, e se de repente encontro um defeito, porque encontro, porque já
estou com outra acuidade às leis, tenho a impressão que todo o mundo viu, toda
a gente que estava na exposição viu. Aquilo é como quem faz um strip-tease. «Há ali um erro; há ali um
erro.» E é uma obsessão. Eu encontro um erro num quadro e já tenho a tarde
perdida. Tenho, tenho necessidade de retocar o quadro. Se o quadro já não é
meu, eu peço licença para retocar o quadro.
— E dão-lhe essa licença?
—
Isto tem dado problemas. Isso dá problemas…, porque há pessoas que dizem, assim:
«Não! Este quadro é isto! E já foi reproduzido, assim. Já está em livros,
assim. Não quero que o senhor mexa no quadro.» E eu não mexo; mas se a pessoa
acredita em mim, eu retoco o quadro. E então os quadros que estão ainda em meu
poder, eu retoco-os, com esta certeza absoluta que estou a melhorar o quadro.
—
NADIR AFONSO SEM LIMITES foi o título dado à exposição que vimos no Museu do
Chiado. É assim que se sente? Alguém que foi vencendo os limites, ao longo da
vida?
É... Eu acho que sim. O artista é isso. Vai e vai corrigindo o seu trabalho, à
medida que ele vai evoluindo, e vai corrigindo. Porque há uma matemática. Isto
é tão importante! Eu olho para um quadro e, se ele não está dentro das leis
matemáticas, eu sinto logo. Mas, isso é uma capacidade difícil. Os estetas não
têm essa capacidade. Não têm, não. Os estetas olham para a perfeição, olham
para a originalidade, mas falta-lhe esse trabalho, que é um trabalho duro, de
percepção das leis; aí é que está a essência da obra de arte. Porque essa
essência da obra de arte realça as outras qualidades. Um indivíduo que é, que é
emotivo, pode fazer uma bela obra de perfeição, um rosto perfeito e o esteta,
bem, «Ah, é uma linda obra, é uma perfeição.» Mas, se não tem essa perfeição,
essa evocação, essa originalidade, não está regida por leis matemáticas, cai;
cai, para um indivíduo que sente essas leis. Mas, o indivíduo que as sente,
admira. É o que se vê em muitas obras actuais. Falta essa dimensão
matemática. Mas, é difícil. É muito difícil..., de aprender essa qualidade. A perfeição apreende-se.
—
O Nadir Afonso pensa mais no passado ou no futuro? Pensa mais…
—
No passado, no passado…, é, agora, é. Agora, só penso no passado.
—
Pensa em momentos da sua vida?
—
Vejo, vejo…, vem-me sempre agora à memória o meu passado. A infância, tudo
isso. É forte; é muito forte. Os meus erros, todos os, as minhas crenças, tudo
isso. Vejo que não tinham significado nenhum. Microorganismos que evoluíram,
pronto. E é essa a minha convicção. É essa.
—
Continua a pintar, Nadir Afonso?
—
Continuo…, continuo…, continuo, porque é sempre um prazer ver a conjugação
matemática. Há uma harmonia nas formas. Isso dá prazer e eu, eu retoco…,
retoco. Retoco quase que há cinquenta anos. Dá-me prazer ver a harmonia. Mas,
tudo isso é, eu sinto que atrás de tudo isso sempre a mesma, a mesma descrença
de tudo. Há uma descrença. Mas, quanto a isso, não posso fazer nada.
—
Há uma descrença, mas ao mesmo tempo há uma vontade…
—
Uma vontade...
—
…de perseguir uma perfeição.
—
Ai, há… Porque me reconforta ver a perfeição das formas. Ainda hoje estou a
pintar, ainda hoje…, mas é uma descrença ao mesmo tempo. É uma vontade de
aperfeiçoar a obra de arte, a minha obra de arte, mas sinto que isso tudo é, é
limitado por essa outra crença, forte, muito mais forte, que é o nada de tudo
isto. O niilismo de tudo isto. E o vazio de tudo isto. Claro que isto não se
pode dizer à minha mulher, eu nem, nem à…, mas digo ao Luís, porque o Luís
está-me a perguntar e tenho que ser sincero. Tenho que ser sincero. Há um vazio
na vida. Há um vazio. Eu admiro muito os indivíduos que pensam como eu. E não
os encontro muito; mas, no passado havia. Eu, às vezes, ponho-me a ver, a ler
biografias e digo: «Este, cá está ele. Este era niilista como eu.»
—
Mas, quando pinta…, quando pinta…, sente esse vazio?
—
Sinto.
—
Mas, então, é um vazio que preenche!?
—
Eu… preencho, através da amizade, através da contemplação da beleza, mas tudo
isso, eu venho sempre ao princípio, tudo isso é, há um niilismo ligado a tudo
isso. Há um vazio. E nós vamos tentando fugir a isso; vamos… diariamente…,
todos os momentos, eu estou sempre a fugir a isso, a fugir ao vazio, mas ele,
esse está.
—Qual
é a pergunta a que gostava de saber a resposta?
—
A pergunta…, … uma pergunta
engraçada, hã? A pergunta… … Não…, eu
tenho a impressão, Luís, que já compreendi tudo. Que pode ser um egoísmo feroz,
um egocentrismo pensar que já percebeste tudo, mas eu tinha um problema, que
era compreender as leis da arte, mas hoje sinto que as compreendi. E quando vem
um Einstein dizer: «A arte é um mistério.» — Para ti. É para ti um mistério,
porque não trabalhaste as formas. É o que acontece aos estetas. Eles acreditam
na magia, no sobrenatural, na, nisto, «a arte é um mistério», é o que diz o
Einstein. E eu digo: «Não, não há mistério nenhum.» O que aconteceu foi ele nunca
ter percebido, nunca percebeu as qualidades da obra de arte, nunca compreendeu
o mecanismo da criação. Nunca compreendeu, não. Nem ele, nem muitos. A
essência, aquilo que é essencial na obra de arte, que é a matemática, não sabem,
porque é intuitiva. Eles não se apercebem que é uma qualidade intuitiva. Eu
percebo. Se me perguntarem, assim: «Então, explica lá a matemática!», eu sou
incapaz; mas, sinto-a. Mas, dizem assim: «Ah, é que aqui, que, olha, aqui está um
quadrado que só tem três lados e três ângulos.» Eu não compreendo ao nível da compreen…,
da…, do raciocínio, mas sinto. Isto é harmonia. E, quando não tem, eu sinto e
tento retocar. Portanto, é o drama. O drama está aí. Por um lado, eu tento
melhorar os meus quadros, e, por outro, sinto que isso não leva a parte
nenhuma.
—
Mas nesse caminho, nesse drama, conseguiu muitas coisas, venceu muitos limites
e sente que atingiu a compreensão, o que poucos podem dizer, como referiu.
—
Sim…, sim.
—
Nadir Afonso. Celebramo-lo pelo seu trabalho e agradeço-lhe muito esta
conversa.
—Muito
obrigado, Luís, muito obrigado; mas, eu fui, tentei ser sincero.
—
Não o conheço de outra forma.
[Outra
voz.]
—
Parabéns, Nadir Afonso. Faz hoje noventa e três anos. A seguir, a música
leva-nos a Júpiter*. … …
[*
Sinfonia de Mozart.]
*
O FILME DE JORGE CAMPOS. TRANSCRIÇÃO NA ÍNTEGRA DO QUE FOI DITO E
DAS LEGENDAS
(Não
se transcreveu a tradução do que foi dito em francês, preferindo-se o
original.)
NADIR AFONSO
(Jorge
Campos, 1993)
(00:00)
[Música, pinturas de Nadir]
(00:47)
Não
há nada de transcendente, não há nada de misterioso, não há nada de magia, não
há nada de mágico na criação artística. Há unicamente uma segunda dimensão, há
uma justaposição ao objecto, à significação do objecto. O artista justapõe,
hã?, uma lei espacial. O objecto cria uma emoção, mas, pode não existir essa
emoção do objecto, desde que a forma em si se mantenha pelas suas relações
matemáticas. E então a emoção é pura, uma emoção de harmonia; a harmonia pura:
sem qualquer sugestão ou representação de objecto. A harmonia pura. E, aí, está
uma arte abstracta.
(3:43) [A vermelho, em fundo negro]
NADIR
(3:55) Há
pintores que trabalham directamente na tela e eu, na minha juventude, também
fazia assim. Eu também me lançava para os chifres do touro, não é?, como se
costuma dizer. Eu também… começava, mas via que
isso, muitas vezes, era extremamente exaustivo e eu comecei a compreender que a
necessidade da compreensão é essencial na obra.
Eu,
por princípio, começo por fazer pequenos trabalhos a uma escala, porque normalmente
não passa disto. Geralmente, eu faço vários quadros ao mesmo tempo, não é?
Tenho várias composições e vou trabalhando, aqui e acolá, onde eu sinto realmente
que há necessidade de composição, mas tudo isto é intuitivo, rápido, conseguinte,
totalmente gestual, e é rápido.
Normalmente,
há uma segunda etapa em que eu procuro transpor a uma nova escala, e
normalmente é uma escala de guache, ou uma escala maior, estes primeiros
estudos. Mas, acontece uma coisa. Na medida em que nós vamos geometrizando as
formas, elas vão-se tornando mais, cada vez mais exigentes; as formas tornam-se
exigentes. Depois, entra-se numa espécie de meditação, já em face da tela, não
é? Então é que o trabalho é mais elaborado. É um trabalho mais de reflexão.
(06:09)
[A vermelho, sobre o filme, canção.]
As Ligações de Paris
Onde Nadir Afonso chegou em 1946
indo trabalhar como arquitecto no
atelier de Le Corbusier onde conheceu,
entre outros, André Wogenscky,
Georges Candilis e Iannis Xenakis.
(07:22)
[Roger Aubry / galerista]
Actuellement,
les peintres connus, les peintres demandés, car les gens en général ne jugent
pas par eux-mêmes, jugent par le jugement de revues, de journaux, de conseils,
de critiques, etc. Tous les peintres actuels sont des peintres médiatisés, très
médiatisés, trop médiatisés. Ce n’est pas, hélas!, souvent, la qualité qui
conte, mais la notoriété. Donc, les gens sont appelés à acheter ce qui est à la
mode. Et la mode, comme tout, ça se démode.
…
(08:07)
Et,
bien, Afonso, ça fait, je crois, vingt ans au moins que je le connaît, vingt
ans que je l’apprécie, donc, vingt ans qu’on le défend. Ce n’est pas facile. Ce
n’est pas facile, parce que, comme je vous le disait, on se porte à un marché commercial
organisé et, on peut le dire, superfinancé. Mais, pour moi, c’est un grand et c’est un grand, pourquoi? C’est un
grand, parce que il a toute une formation derrière et il a une conception de l’art. Un peintre c’est pas
celui qui reproduit un bel arbre ou une belle fille…, ou une nature morte. Un
peintre c’est celui qui, on peut dire presque le mot, lute avec Dieu; il
reconstruit le monde, suivant sa conception à lui.
(09:37) Il a découvert le monde actuel que on peut dire
construit, construit architecturalement, pratiquement. Regardez les villes,
regardez la champagne, regardez les routes, regardez les spaces, regardez tout;
le monde est construit. Et lui, il l’a compris et, en plus, il ne fait pas que
reproduire. Il cherche à apporter le maximum, on peut dire, d’impressions, si
on peut dire, avec le minimum de moyens. Par exemple, l’ Opéra de Paris, vue par
Afonso. C’est formidable ce que c’est que l’Opéra, mais si vous regardez,
évidemment, c’est pas du tout pareil, mais c’est l’essence, cést, on peut dire,
l’essence, le sens propre, comprenez!?, de l’Opéra. Et quando il représente les
tableaux comme vous en avez vu, comme vous en verrez, comme vous en regardez,
et tout, vous êtes certain que est indémodable.
(10:45)
[La chansonette]
(11:30)
[Legenda, a vermelho, sobreposta ao
filme]
35 Rue
de Sèvres
onde
ficava o atelier de Le Corbusier,
demolido
para dar lugar a este imóvel.
(11:40)
Em
45, 46, quando eu aqui cheguei, Paris estava no após-guerra, praticamente
destruída, havia umas pessoas que circulavam ainda andrajosamente, havia racionamento…
(12:00)
[Georges Candilis]
La guerre est finie et ceux qui rêvent —
c’est bien, rêver — rêvent Paris. Et, parmi ceux qui rêvaient Paris, c’étaient
moi, c’étaient et Nadir et moi. La première chose qui…, pour moi, c’était de
venir à Paris. Jávais eu de la grand’chance de venir, le fin de 45. Et j’avais
la grand’ chance de rencontrer Le Corbusier, qui acceptais que je travaille,
chez lui. Et, à ce moment, de jeunes architectes surtout, de tous les pays du
monde, commençaient à venir. Et l’atelier Le Corbusier, le fameux atelier de Le
Corbusier, c’était vraiment un rassemblage de tous de pays et de tous les
langues*. Mais il y avait, là même, un caractère commun. C’étaient tous des passionés.
Le plus passioné de tous c’était Nadir. Pas tellement pour l’architecture, mais pour la peinture surtout et pour
la vie.
*Transcreve-se
o que G. C. efectivamente disse, na parte final deste período.
(13:23)
[André Wogenscky]
On
sentait déjà que il était intéressé par l’architecture, mais, quand même, un
petit peu résistant pour se laisser entraîner dans tout le monde de
l’architecture. Et on sentait déjà que il était plus tenté de faire de la
peinture. Je me souviens de conversations avec lui, de dessins ou petites
peintures qu’il me montrait et je sentais três bien déjà, me suis dit, que il
deviendrait sûrement peintre, beaucoup plus qu’architecte.
(14:20)
Nessa
altura, quando cheguei aqui, eu representava o real, tal qual ele me parecia,
hã, na sua visão directa, na minha visão directa. Hoje, penso doutra maneira,
mas, a minha pintura dessa altura era uma pintura objectiva; era uma pintura
naturalista. E depois do naturalismo passei ao expressionismo, já aqui, e
depois ao surrealismo e depois, pouco a pouco, entrei na pintura abstracta, mas
já muito mais tarde.
(14:50)
[Iannis Xenakis] Je me souviens
que c’était un garçon assez renfermé en lui-même, mais qui était actif, je ne
sais plus en quoi, d’ailleurs; il dessinait et, plus, je sais aussi qu’il
aimait la peinture, c’était son problème à lui.
(15:16)
Quando
cheguei a Paris, já admirava, evidentemente, o próprio Vasarelly, já o
admirava; como Max Ernst, que é um grande pintor. Havia o Giorgio de Chirico, havia…,
havia tantos pintores..., claro!, Picasso, Fernand Léger, todos esses pintores, já
cá estavam, com quem depois tive alguns contactos…, mas, é claro, a minha vida
era com estes camaradas aqui do atelier. Eu tinha uma vida de arquitecto, hã?!,
que trabalhava, pois claro! Eu vivia da minha arquitectura e a minha pintura
era uma coisa extremamente pessoal. Os meus contactos foram mais, depois, com
os pintores da minha idade, mais. Com Deswane, que era um grande pintor francês,
com Pillet e outros assim. Ah, e depois,
com muitos pintores; com Mortensen… Mas todos estes pintores, digo, era, havia
uma emulação, na pintura; houve sempre emulação em Paris. Sentia-se muito essa
emulação, coisa que eu não senti em Portugal. Aqui, o pintor é maltratado!...,
porque há uma luta entre cada pintor. Pode ter amigos, hã?, mas o diálogo entre
pintores, cada um, tem um segredinho, hã?, que ele explora e não vai, de modo
nenhum, deixar os outros participar nas suas criações…, nem pode, ainda que
quisesse. Porque o indivíduo tem que trabalhar, ele próprio. Não é o facto de
andar de braço dado com o grande artista em Paris que se aprende a fazer
pintura. Eu posso ter aqui muitos amigos em Paris, e tive alguns, mas esses
amigos nunca me favoreceram em coisa nenhuma. Eles não me podem favorecer. Era
amigo do Vasarelly, era amigo do Mortensen, era amigo do Herbin…; era,
realmente. Mas, isso nunca me valeu de nada. Então, o facto de andar, de ir a
uma boîte com o Vasarelly é que me vai dar capacidade para pintar? Não! Isto é
uma ilusão.
(17:16)
[La Chansonette]
(17:35) [Georges Candilis] Nadir,
dès qu’il voyait une jolie fille… ça y est
…, il disparaissait, il commençait à planer… Ah, oui! C’était
formidable. J’aime beaucoup ça.
(17:58)
[Catherine, filha de Nadir] Ma mère était donc dans un milieu artistique,
théatrale, hã?, elle jouait au théatre avec Charls Dullin, elle était éleve de
Charles Dullin. Elle est pégidée (?), à l’époque, et je crois que c’était
quelqu’un de très romantique, de très, d’épris d’idéal, de peinture, aussi, de
théatre, enfin. Et, un jour, elle a vu dans
la rue un énorme cape, qui volait, et l’a suivi comme ça. Je crois qu’ils s’ont rencontré sur un dans
un autobus. Elle
a dit: «Mais, qui êtes-vous?» Et se sont rencontrés comme ça, oui. Elle a
tout de suite été très amoureuse de son côté idéaliste, romantique et très… très
artiste, hã?
(18:39)
Il
faudrait lui demander s’il y l’a encore le manteau de berger qui luit [?]
comme une grande cape comme ça qui l’enveloppait et ça lui donnait une allure três
spectaculaire, três poétique, três romantique.
(18:56) [La chansonnette]
(19:44) [Georges Candilis] C’était une generation, après la guerre, qui voulait
trouver leur chemin.
(19:57) [Iannis Xenakis] J’avais fait une pièce à l’époque qui a fait un grand
scandale à Donaueschingen, en Allemagne…, où on faisait…des, c’était l’endroit
où on faisait la musique d’avant-garde. Et la moitié de la sale était pour,
surtout les jeunes, pour ce que j’avais fait, et les plus vieux, qui étaient
quand même d’avant-garde, étaient contre.
(20:20)
[André Wogenscky] On sentait que Xenakis serait attiré par
la musique, comme on sentait que Nadir Afonso serait attiré par la peinture.
(20:29)
O
pintor é, por conseguinte, uma sensibilidade plástica que é trabalhando as
formas que ele evolui na percepção da obra de arte.
(20:40) [Roger Aubry,
galerista] Lui prend l’essentiel et, comme je dis, il est en
avant sur les autres. Et donc, tant pire pour lui. Il choit pour attendre
cinquante ans. Hélas!
(21:14)
[André Wogenscky] La
peinture de Nadir Afonso est une peinture à trois dimensions; il y a dans ses
peintures une profondeur, il y a des reliefs qui viennent d’en avant. C’est une
pensée spatialle et cela, finalement, c’est extrêmement proche de
l’architecture, mais, avec, bien sûr, plus de liberté, avec plus de possibilité
imaginative et, par conséquent, peut-être, aussi, avec plus de possibilité de
poésie que ne permet l’architecture.
(22:20)
[Legenda, a vermelho, sobre a imagem]
André Wogenscky, arquitecto,
foi chefe do atelier de Le Corbusier
com quem trabalhou durante 20 anos
e, mais tarde, director-geral dos
monumentos e palácios nacionais de
França.
(22:35)
[Legenda, a vermelho, sobre a imagem]
Georges Candilis, arquitecto, quis
fazer habitações «ricas» para os
pobres um pouco por todo o mundo.
O seu espólio pertence ao Centro
Pompidou de Paris.
(22:52)
[Legenda, a vermelho, sobre a imagem]
Iannis Xenakis, engenheiro, introduziu
o cálculo de probabilidades
na música e tornou-se um compositor
universal.
(23:05)
[Legenda, a vermelho, sobre a imagem]
Roger Aubry, galerista, prossegue
o seu combate solitário contra
aquilo a que chama os especuladores
do mercado da pintura.
(23:15)
[Yvaral, filho de Vasarelly. Parte do que diz é inapreensível, por sobreposição
sonora de canção, em voz feminina. O filho de Vasarelly, com Nadir a seu lado,
segura na mão direita uma tela sem moldura, com a pintura nela de uma das
cidades criadas pelo pintor português. Nadir e Yvaral estão numa cumplicidade
tal, que o jovem não consegue conter o riso, que lhe afoga as palavras.]
Le
geste c’était […] Ah, bon. C’est très con… C’est presque curieux, surréaliste,
de me […] avec vous ……..
(24:00)
[Legenda, a vermelho, sobre a imagem]
Rodado em Paris de 27 a
31 de
Março de 1993.
(24:17) Fim da 1.ª parte
(25:58) Não há dúvida nenhuma que o
círculo é uma forma duma exactidão tal que cria uma consonância no espírito e o
faz abrir um ponto central equidistante dos pontos periféricos… Esta lei
geométrica ressoa no espírito e nós temos, sentimos o círculo como exactidão… É
uma contemplação prodigiosa, o círculo, como harmonia da forma. O quadrado,
também. Quatro ângulos, quatro lados iguais; isto ressoa no espírito uma forte
emoção.
(27:04) O Kant escreve sobre as formas
geométricas e ele diz: «As formas geométricas provocam-me um grande ennui.» Um grande, um grande
aborrecimento. Kant lança esta blasfémia. E toda a gente achou muito bem; foi o
Kant que escreveu. As formas geométricas provocam-me um grande, um grande…, um
grande enfado. Aborrecem-me. Ele escreveu isto com razão. Para ele!... Não teve
sensibilidade às formas. Mas para o artista… Eu escrevi o contrário. O mais
belo espectáculo da minha vida é olhar para um círculo, para um triângulo
equilátero, para um quadrado… São os grandes…, a exactidão das formas é o grande
espectáculo da minha vida.
(28:41) A obra de arte não é um jogo de
significações de objecto. É um jogo de leis nos espaços. E podem-me perguntar,
assim: «Mas onde estão, onde estão essas leis, onde estão essas leis que o
senhor fala, essas leis dos espaços?» Estão no espírito do homem? Elas estão na
natureza.
(29:20) Não há dúvida nenhuma que a
essência da obra de arte está no círculo, está no quadrado, está no triângulo.
Unicamente, essas formas da natureza, uma vez transportadas ao quadro, sofrem uma
segunda lei, a que eu chamo lei de integração e desintegração. Essas formas
elementares da natureza são integradas, desintegradas, segundo uma lei, hã, que
o espírito apreende da natureza, igualmente. Por conseguinte, não está o
quadrado, não está o círculo, mas está uma integração ou uma desintegração
dessas leis, hã?, que se justapõem, que se interpenetram umas nas outras, e desse
conjunto é que sai a harmonia da obra de arte. Por conseguinte, a harmonia da
obra de arte é regida pelas mesmas leis da natureza, mas levadas a um extremo de
complexificidade. Não são as formas elementares da natureza, não é o triângulo,
não é?, mas, são formas complexificadas, a partir dessas leis elementares.
(31:21) [Legenda sobre o filme.]
O Sentido da Arte
(31:29) [Legenda sobre o filme.]
Nadir Afonso nasceu no interior,
em Chaves, cidade do noroeste
transmontano, em 4 de Dezembro
de
1920.
(31:44) [Legenda sobre a imagem.]
Pintou pela primeira vez
aos 4 anos.
(31:49) [Legenda sobre a imagem.]
A pintura era um círculo vermelho
na parede da sala de sua casa,
de tal modo perfeito que ninguém
se atreveu a repreendê-lo.
(32:00) O meu pai era poeta. A minha mãe
era doméstica. Foi assim um encontro, lá, bastante romântico, pelo que dizem,
não é?... O meu pai fazia umas poesias, havia uns concursos de beleza… E o meu
pai fez, dedicou-lhe alguns poemas e depois houve uma troca de…, a minha mãe era
dos arredores de Chaves, não é? Sou, por conseguinte, flaviense de gema pura,
não é?
(32:41) O meu pai nunca lavrou, mas
todos os meus antepassados lavraram as terras, não é? Mas a infância do um pai
foi realmente, foi junto da terra. Eram lavradores.
(33:04) Identifico-me com esta paisagem,
talvez até já por hereditariedade. Eu tenho impressão que há qualquer coisa que
nós retemos, hã, por atavismo dos nossos antepassados. O meu pai gostava muito,
por exemplo, do Larouco. Ele… caçava no Larouco; gostava muito destas
paisagens, (não é?). E eu sinto, quando olho para estas serranias, lembro-me
dos meus antepassados e parece que me identifico com eles…, através da mesma
visão da natureza.
(34:01) Já transmontano, talvez não.
Nesta nossa maneira de ver as relações humanas, é sempre através da natureza.
Tudo o que há entre os homens é coado através da natureza…, é sentido, através
da paisagem, não é? Que tudo isto…, que é profundamente humana… A paisagem
torna-se humana e o homem torna-se paisagem.
(34:35) Há uma comunidade. E as pessoas
pagam umas às outras pelo esforço, por esforços, por trabalho. Praticamente, o
dinheiro não existe entre as pessoas.
(35:23) Na minha infância, tentei essa…,
transmitir à tela, justamente, essa…, essa simpatia (hã?), por tudo aquilo que
nos rodeava.
(35:47) Comecei por aí. Comecei a pintar
as ruas de Chaves. Andava com o meu cavalete a pintar, junto do rio e no jardim
público…, andava.
(35:58) [Locução.] O Nadir pinta
as suas primeiras obras aos catorze anos, passa em Chaves a sua infância, a sua
juventude, tem aqui os seus amigos, faz o liceu e, depois, no final dos anos
30, vai para o Porto, para a Escola Superior de Belas Artes. E, aí, torna-se
arquitecto. Mas, arquitecto, por engano, não é?
— Sim, é verdade. Mas, foi um acidente,
nisso. É que eu fiz um requerimento às Belas Artes do Porto, como candidato a,
como, justamente, a candidatar-me para ser aluno de Pintura. E encontro um
funcionário, até logo à entrada…, eu não cheguei à secretaria. À entrada, «O
que é que o senhor deseja?»
— «Eu vinha-me inscrever, como …, no
curso de Pintura.» E ele pegou no meu requerimento e leu: «Ó homem. Então, o
senhor tem o curso dos liceus e vai para a pintura, vai cursar o curso de
pintor? Ó homem, inscreva-se na Arquitectura. Tem mais, tem mais futuro.» E foi
assim. Eu fui levado (hã?) por aquela informação (hã), por aquele medo que me
meteu aquele funcionário. E fiz o meu curso de Pintura, o meu curso de
Arquitectura contra vontade. Eu pintei sempre. Eu fui sempre pintor.
(38:24) [Locução.] O Nadir pintou
o ser quadro A Ribeira, aos dezanove
anos, e a crítica da época, de resto muito próxima dos salões oficiais, ficou
de algum modo perplexa. Um pouco mais tarde, no início da década de 40,
formou-se o grupo d’Os Independentes e desse grupo faziam parte, entre outros,
o Júlio Resende, o Fernando Lanhas, o Júlio Pomar, o Amândio Silva e o
próprio Nadir.
— Recorda-se de como é que esse grupo se
chamou, justamente, Os Independentes?
— Ora bem. Isso, não tenho muito, não sei
bem. Eu acho que nós começámos por nos intitular Os Convencidos da Morte.
Porque havia Os Vencidos da Vida…, com o Antero, com o Eça de Queirós, com o Guerra
Junqueiro, com essas figuras. Havia Os Vencidos da Vida e nós, talvez para chocar, lá está,
Os Convencidos da Morte. Era aquela necessidade, realmente, de fazer…, de irriter le bourgeois. Pois é… E,
depois, alguém se lembrou que — até talvez tenha sido um crítico!..., um grupo
de independentes, qualquer coisa —, que se lembrou de nos chamar Os Independentes,
mas esse termo, ele nunca apareceu muito, no princípio. Havia esta necessidade
de criar, havia uma necessidade de criar, mas nós não sabíamos bem o quê. E
estou convencido que muitos artistas não sabem bem o quê. Claro, em certos
artistas, havia a preocupação de saber: o que é que, o que é, mas isto é uma
pergunta: «O que é que o senhor pinta?» — Pinto para ver se compreendo a razão…
Eu pinto para ver se compreendo a razão por que pinto. — Nós andámos a procurar
a razão por que é que, por que pintávamos. Havia, realmente, inquietação em
nós, pois se não houvesse inquietação, andávamos a fazer outras coisas, não
andávamos nas Belas Artes nem andávamos a pintar pelas ruas…, mas, claro, nessa
altura, o centro da nossa interesses, das nossas atracções era a mulher. No
fundo, o que é que um homem pretende, aos dezoito anos, quando entra nas Belas
Artes…?
(40:31) [Canção, voz feminina: «Kiss me one, and kiss me twice and
kiss me once again It’s been a long, long time.]
(41:23) [Locução] Sendo, embora,
um grupo de ruptura com a tradição, havia n’Os Independentes algum sentido de
unidade estética?
— Bem… A meu ver, não. Porque eu digo
com…, francamente, eu só me comecei a aperceber de que havia qualquer coisa de
essencial na obra de arte, que se tinha de traduzir por leis, eu só me comecei
a aperceber disso muito tarde. Foi uma longa evolução, foi uma longa evolução,
de anos e anos, eu trabalhando a forma, pouco a pouco, o indivíduo vai sentindo
essas correspondências, essas, estas relações, essas estruturas, pá…, essas
formas que, justamente, que começam a ter dois significados. Elas são
evocativas, elas são originais, elas são…
…, mas começam a ser, também, harmoniosas…
(42:20) A cor na arte joga como um
factor geométrico. O que é que isto quer dizer? Neste quadro, o fundo é branco.
Aqui, a cúpula da Ópera, isto pretende representar a Ópera, é amarela. É um
amarelo-claro; este amarelo-claro não é uma cor bonita, nem este vermelho é um
vermelho bonito. O que acontece é uma coisa. É que esta cor amarela, na sua
intensidade, em relação ao branco, harmoniza-se. Pronto. O arquitecto, aqui,
funcionou. Mas, podia não ter funcionado. E, em muitos quadros meus, o
arquitecto não funciona. É que isso realmente na cidade de S. Paulo vê-se que
aqui há uma sugestão de formas arquitectónicas. Mas, isso é secundário. O tema
é secundário. Se eu fosse a carregar o amarelo; ou se eu fosse a meter, em vez
do vermelho, aqui um vermelho mais escuro, tudo isto jogava de outra forma. As
relações matemáticas que se criavam entre as formas era diferente e já não
surtia o efeito da composição. A composição desvanecia-se.
(44:46) O período egípcio? Sei lá
bem!... É um quadro meu, começa hoje e vai acabar não sei quando. Não sei
quando acaba. Acaba à hora da morte…, pela certa; mas, antes disso, eu não
pro…, eu não garanto que o meu período egípcio está entre duas faixas,
enfaixado entre duas datas, não está! É que eu, quando saí de Portugal, levei
alguns trabalhos inspirado na cidade do Porto. Era o barroco do Porto. Era a
coisa que mais me atraía. A igreja dos Grilos…, com aqueles rococós todos,
aquela coisa toda. E, depois, dali, fui extraindo certos elementos: as espirais
da igreja dos Grilos…, comecei a isolá-los…, de maneira que comecei, em dada
altura, a sentir afinidades, hã?, entre a minha pintura barroca e uma certa
composição, hã?, egípcia. O meu barroco portuense geometrizado, depois, teve
como consequência, justamente, o período egípcio.
(46:00) [Locução] É sabido que o
Nadir foi sempre um viajante infatigável.
— Lembro-me sempre do Rimbaud e
outros poetas, não é?, que privilegiavam a cidade…
[Locução] Esteve no
Brasil, onde trabalhou com o arquitecto Óscar Niemeyer nos anos 50, conheceu
pintores, como Cavalcanti e o Portinari, e, ao longo dos seus quase trinta anos
de Paris, conviveu com homens como Magnelli, Bertrand, o Dewasne e, naturalmente,
também, com o próprio Corbusier. A propósito, Nadir. Como era o Corbusier? Era
uma pessoa difícil?
— Era. Era difícil, era. Era
difícil. Tinha coisas do arco-da-velha, aquele homem. Quer dizer: como homem
era de humanidade, era simples, era homem fácil; mas, quando se lhe falava na
arte, aí, era o diabo.
— Mas o Nadir, também é um pouco
assim?
— Talvez possa…, tenha os meus
defeitos, pois tem. Pois é. Isto é como o sarampo. Pega-se. É natural, é. Eu,
também há coisas que não suporto.
(47:17) [Locução] É igualmente
sabido que é autor de uma obra teórica vasta, publicada em francês, pelo seu
editor suíço, Marcel Joray, traduzida em inglês e em alemão, mas não em
português, e que nem sempre a sua relação com os críticos tem sido a melhor.
— Pois não. Há dias…eu, há dias
um crítico, eu, quando estava a tentar, quando eu estava a ser, ia ser operado,
precisei de, precisei de arranjar pessoas que dessem sangue; doadores de
sangue. E um crítico telefonou à minha mulher e diz-me: «Eu sou doador de
sangue, eu dou sangue ao Nadir, se ele quiser, mas, eu sei que ele não se dá
muito bem com os críticos. Ele quererá sangue de crítico?»
(48:13) [Locução] E é sabido,
igualmente, de que não gosta daquilo que se passa em torno do mercado da arte.
— Deus nos livre! Deus nos livre
dele. É preciso, hã, é preciso ter muita, muito, ter muito fraco carácter, para
meter-se…; é um meio mafioso. Há coisas que são, que bradam aos céus.
Injustiças, que um tipo assiste, assim, de caras, mas com uma naturalidade, nos
outros, um tipo fica espantado. O português, o transmontano…
(49:14) [Legenda, a vermelho,
sobre fundo azul]
Nadir Afonso regressou a
Portugal no início dos anos
70.
Vive com a família em Cascais,
passando largas temporadas em
Chaves. Pinta todos os dias.
(49:14) [Locução] Mas, deixe-me
fazer-lhe uma última pergunta. Tem a certeza da sua arte?
— Absoluta. Tenho a certeza
daquilo que faço, absoluta.
(50:20) [Legenda, a vermelho,
sobre filme, os rostos dos dois filhos mais novos,] olhando a
câmara.
Artur, 10 anos e
Augusto, 3 anos, filhos
mais novos de Nadir.
*
Música (do genérico):
Iannis Xenakis
Richie Beirach
«La Chansonnette»
Patachou
«Autumn Leaves»
Ross Wassenrum
Rickie Lee Jones
Bill Evans
Claus Ogerman
The Penguin Café
*
As cidades
ou os lugares onde nunca esteve?
Os painéis da estação
do Metro — Restauradores
Obs.: Clique nas imagens, para ampliar.
*
Ao pé do mar
O QUE SENTI, AO VER AS PINTURAS REPRODUZIDAS NO TÚNEL DO ESTORIL:
A-L-E-G-R-I-A.
Alegria, que lhe deu certamente muito trabalho. Trabalho que manterá até ao fim, até poder. Nadir pinta sempre, mesmo quando a mão já não obedece e resiste ao cérebro. Corrige erros. A sua última fase é a melhor, no fim de uma evolução a caminho do quadro puro.
RECORDEI A JUSTEZA DA ESCOLHA DA MÚSICA DE SINFONIA DAS CORES, DE ARTHUR BLISS, PARA O INÍCIO DO PROGRAMA «A RONDA DA NOITE», DE 4 DE DEZEMBRO DE 2013. NOS QUADROS REPRODUZIDOS NO TÚNEL DO ESTORIL, ESTAMOS PERANTE A
S-I-N-F-O-N-I-A D-A-S C-O-R-E-S.
(Clique nas imagens, para ampliar.)
Na outra parede
REFERÊNCIAS
Fernando Guedes - Nadir Afonso, Editorial Verbo, 1968.
Antigos Estudantes Ilustres da Universidade do Porto -- Nadir Afonso / Nadir Afonso / 1910-2013 / Pintor, arquitecto, filósofo
- Texto de Luís Ramos, 11 Dez 2013: Nadir Afonso (1920-2013).
- Molduras: emissão de 13 Dez 2013.
- primeira emissão da conversa com Nadir Afonso.
- 11 Dez 2013.
- Nadir Afonso, parte 1/2. O pensamento e a obra
- Nadir Afonso, parte 2/2. Cascais e a vida do pintor