Rómulo de Carvalho
Nasceu em 24 de Novembro de 1906 e faleceu em 19 de Fevereiro de 1997, passando hoje mais um aniversário sobre a sua morte.
Ainda em Lisboa, nos anos 67 e 68, mais propriamente em 67, fui colega de um jovem que recordo como moreno, de porte atlético e sereno, bem disposto e conversador, só lembro o nome Sequeira; chamou-me a atenção para a poesia de António Gedeão e disse-me de cor, todo ou em parte o poema «Calçada de Carriche», «serviu-se dela, não deu por nada»... O José António (quase ia jurar que o nome é este), aluno de Filosofia, foi no ano seguinte para a Sorbonne e na Avenida de Roma contava coisas de lá e do Maio de 68, com um entusiasmo sadio e alegre. Disse-me que escrevia doze páginas por dia.
Em Estremoz, no Rossio do Marquês de Pombal, conversei, às vezes, de literatura com o Raul Cóias e numa delas recita-me «Lágrimas de Preta», que eu já devia conhecer. Raul Cóias, veio a confirmar estes seus interesses, actuando como divulgador e promotor cultural em Ponte de Sor, interessando-se muito e dando a conhecer, por exemplo, Garibaldino de Andrade, entretanto, também escritor da minha afeição. O Raul considerava O Homem e o Sardão o seu melhor livro.
No meu primeiro ano de Estremoz, realizou-se uma visita de estudo a Lisboa, indo no autocarro, como professores, que me lembre, eu e a professora efectiva de inglês, Nazaré Trindade. A certa altura, com Lisboa à vista, já a entrar nela, pela Avenida Gago Coutinho?, alguém lê ou declama uma coisa que caiu tão bem aos meus ouvidos!...
«Esta é a cidade e é bela...»,
de António Gedeão. Foi muito bom. Foi boníssimo.
No ano seguinte, em Coimbra, onde regressei como estudante, após a interrupção de um ano em Estremoz, o Coro Misto da Universidade de Coimbra ensaiava e actuava. Havia no Coro Misto um dizedor de versos excepcional, que vi actuar uma vez no Teatro de Gil Vicente. Pela sua vibração, alma que pôs no que dizia, gestos das mãos, o olhar largo, abrangendo a assistência e o céu, o tecto da grande sala desaparecia, fez-me compreender melhor o que tinha lido um tanto passivamente:
truca, truca, truca, truca,
sob a abóbada
romântica,
.........................................
Fixando a pedra,
mirando-a,
quanto mais o
olhar se educa,
mais se estende o
truca…truca…
que enche a nave,
transbordando-a,
……………………………….
Talvez fosse antes a «Pedra Filosofal». Fez-me ver mais que na minha leitura íntima.
Tive a sorte de visionar Rómulo de Carvalho e o seu amigo António Gedeão, por Diana Andringa, que a RTP apresentou em 1996. Emitido, hoje, pelas 21:30 no canal MEMÓRIA e com próxima emissão no próximo dia 21 Fev., às 00.06.
*
Seguem as poesias de António Gedeão referidas no texto.
Calçada de Carriche
Luísa sobe,
sobe a calçada,
sobe e não pode
que vai cansada.
Sobe, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe
sobe a calçada.
Saiu de casa
de madrugada;
regressa a casa
é já noite fechada.
Na mão grosseira,
de pele queimada,
leva a lancheira
desengonçada.
Anda, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.
Luísa é nova,
desenxovalhada,
tem perna gorda,
bem torneada.
Ferve-lhe o sangue
de afogueada;
saltam-lhe os peitos
na caminhada.
Anda, Luísa.
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.
Passam magalas,
rapaziada,
palpam-lhe as coxas
não dá por nada.
Anda, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.
Chegou a casa
não disse nada.
Pegou na filha,
deu-lhe a mamada;
bebeu a sopa
numa golada;
lavou a loiça,
varreu a escada;
deu jeito à casa
desarranjada;
coseu a roupa
já remendada;
despiu-se à pressa,
desinteressada;
caiu na cama
de uma assentada;
chegou o homem,
viu-a deitada;
serviu-se dela,
não deu por nada.
Anda, Luísa.
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.
Na manhã débil,
sem alvorada,
salta da cama,
desembestada;
puxa da filha,
dá-lhe a mamada;
veste-se à pressa,
desengonçada;
anda, ciranda,
desaustinada;
range o soalho
a cada passada,
salta para a rua,
corre açodada,
galga o passeio,
desce o passeio,
desce a calçada,
chega à oficina
à hora marcada,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga;
toca a sineta
na hora aprazada,
corre à cantina,
volta à toada,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga.
Regressa a casa
é já noite fechada.
Luísa arqueja
pela calçada.
Anda, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada,
sobe que sobe,
sobe a calçada,
sobe que sobe,
sobe a calçada.
Anda, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.
Lágrima de preta
Encontrei uma preta
que estava a chorar,
pedi-lhe uma lágrima
para a analisar.
Recolhi a lágrima
com todo o cuidado
num tubo de ensaio
bem esterilizado.
Olhei-a de um lado,
do outro e de frente:
tinha um ar de gota
muito transparente.
Mandei vir os ácidos,
as bases e os sais,
as drogas usadas
em casos que tais.
Ensaiei a frio,
experimentei ao lume,
de todas as vezes
deu-me o que é costume:
Nem sinais de negro,
nem vestígios de ódio.
Água (quase tudo)
e cloreto de sódio.
Esta é a Cidade
Esta é a Cidade, e é
bela.
Pela ocular da janela
foco o sémen da rua.
Um formigueiro se agita,
se esgueira, freme,
crepita,
ziguezagueia e flutua.
Freme como a sede bebe
numa avidez de garganta,
como um cavalo se espanta
ou como um ventre
concebe.
Treme e freme, freme e
treme,
friorento voo de
libélula
sobre o charco imundo e
estreme.
Barco de incógnito leme
cada homem, cada célula.
É como um tecido
orgânico
que não seca nem
coagula,
que a si mesmo se
estimula
e vai, num medido
pânico.
Aperfeiçoo a focagem.
Olho imagem por imagem
numa comoção crescente.
Enchem-se-me os olhos de
água.
Tanto sonho! Tanta
mágoa!
Tanta coisa! Tanta
gente!
São automóveis,
lambretas,
motos, vespas,
bicicletas,
carros, carrinhos, carretas,
e gente, sempre mais
gente,
gente, gente, gente,
gente,
num tumulto permanente
que não cansa nem
descansa,
um rio que no mar se
lança
em caudalosa corrente.
Tanto sonho! Tanta
esperança!
Tanta mágoa! Tanta
gente!
Uma circe peregrina,
pedúnculo de vorticela,
perpassa sob a janela,
incandesce-me a retina.
Anda como sobre escolhos,
irradiando fragrância.
Envolvo-a toda nos olhos;
possuo-a mesmo a distância.
A multidão chama por mim.
Chama e reclama
Que eu nela sou princípio e fim.
Lá vou, lá vou.
Galgo os lanços da escada de roldão
e fluo, coloidalmente disperso,
corpúsculo e onda, sem anverso nem reverso,
fagocitado pela multidão.
(Esta parte a cinzento foi acrescentada em 20-12-2014 e não foi dita na visita de estudo, em 1973.)
Poema de pedra lioz
Álvaro Góis,
Rui Mamede,
filhos de António
Brandão,
naturais de Catanhede,
pedreiros de profissão,
de sombrias cataduras
como bisontes lendários,
modelam ternas figuras
na lentidão dos
calcários.
Ali, no esconso recanto,
só o túmulo, e mais
nada,
suspenso no roxo pranto
de uma fresta geminada.
Mas no silêncio da nave,
como um cinzel que
batuca,
soa sempre um
truca…truca…
lento, pausado, suave,
truca, truca, truca,
truca,
sob a abóbada romântica,
como um cinzel que
batuca
numa insistência
satânica:
truca, truca, truca,
truca,
truca, truca, truca, truca.
Álvaro Gois,
Rui Mamede,
filhos de António
Brandão,
naturais de Cantanhede,
ambos vivos ali estão,
truca, truca, truca,
truca,
vestidos de surrobeco
e acocorados no chão,
truca, truca, truca,
truca.
No friso, largo de um
palmo,
que dá volta a toda a
arca,
um Cristo, de gesto
calmo,
assiste ao chegar da
barca.
Homens de vária feição,
barrigudos e contentes,
mostram, no riso dos
dentes
o gozo da salvação.
Anjinhos de longas
vestes,
e cabelo aos caracóis,
tocam pífaros celestes,
entre cometas e sóis.
Mulheres e homens, sem
paz,
esgazeados de remorsos,
desistem de fazer
esforços,
entregam-se a Satanás.
Fixando a pedra,
mirando-a,
quanto mais o olhar se
educa,
mais se estende o
truca…truca…
que enche a nave,
transbordando-a,
truca, truca, truca, truca
truca, truca, truca, truca.
No desmedido caixão,
grande senhor ali jaz.
Pupilo de Satanás?
Alma pura, de eleição?
Dom Afonso ou Dom João?
Para o caso tanto faz.
Pedra filosofal
Eles não sabem que o
sonho
é uma constante da vida
tão concreta e definida
como outra coisa
qualquer,
como esta pedra cinzenta
em que me sento e
descanso,
como este ribeiro manso
em serenos sobressaltos,
como estes pinheiros
altos
que em verde e oiro se
agitam,
como estas aves que
gritam
em bebedeiras de azul.
eles não sabem que o
sonho
é vinho, é espuma, é
fermento,
bichinho álacre e
sedento,
de focinho pontiagudo,
que fossa através de
tudo
num perpétuo movimento.
Eles não sabem que o
sonho
é tela, é cor, é pincel,
base, fuste, capitel,
arco em ogiva, vitral,
pináculo de catedral,
contraponto, sinfonia,
máscara grega, magia,
que é retorta de
alquimista,
mapa do mundo distante,
rosa-dos-ventos,
Infante,
caravela quinhentista,
que é cabo da Boa
Esperança,
ouro, canela, marfim,
florete de espadachim,
bastidor, passo de
dança,
Colombina e Arlequim,
passarola voadora,
pára-raios, locomotiva,
barco de proa festiva,
alto-forno, geradora,
cisão do átomo, radar,
ultra-som, televisão,
desembarque em foguetão
na superfície lunar.
Eles não sabem, nem
sonham,
que o sonho comanda a
vida,
que sempre que um homem
sonha
o mundo pula e avança
como bola colorida
entre as mãos de uma
criança.
ultra-som,
televisão,
desembarque em
foguetão
na superfície
lunar.
Eles não sabem,
nem sonham,
que o sonho
comanda a vida,
que sempre que um
homem sonha
o mundo pula e
avança
como bola colorida
entre as mãos de
uma criança.
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