terça-feira, 9 de fevereiro de 2016

Uma «meditação sem fronteiras», de Miguel Urbano Rodrigues

Antes dos meus afazeres para este dia, leio o que diz Miguel Urbano, em artigo que o Z. P. me fez chegar. Aprecio a sinceridade do Urbano. Aprecio a minha. A verdade existe ou depende de pré-disposição nossa, de gosto, duma mundividência inscrita em nós e que passamos a vida a esclarecer? Com a nossa verdade, em termos ideais, chegaremos no fim a um edifício em progresso de coerência e beleza. Coerência múltipla, lógica e nem tanto, não de todo explicável, mas apreendida pelo próprio. A comunicação universal e explicada é impossível. A sugestão é que não é.
A nossa verdade coexiste com outras, que se foram construindo em progresso de coerência e beleza, coerência na harmonia interna que cada um vai conseguindo ou se vai conseguindo nele. Fernando Pessoa é um génio. Há quem não goste? Há quem o aborde, a partir da sua doença. Não sei qual é e não me interessa este enfoque. Poesia doente?
Seja como for, genial. A doença não comparece, quando o leio. Nos textos em prosa, no Livro do Desassossego, que tenho, ainda, de ler por completo, parece que Fernando Pessoa está a dizer o que nós próprios pensamos ou podíamos pensar e querer dizer. Disse aquilo por mim. Milagre da leitura. Estamos a viver, a ser. Sozinhos ou com o autor e o autor connosco.
Não sei o que vou encontrar no artigo, lado a lado com estas palavras que estou a escrever, no monitor largo ligado ao computador. Uma metade para cada um, para mim e para o Miguel Urbano. A minha vivência filosófica-religiosa-política pode impedir o acesso ao génio de Pessoa, Ezra Pound, Hegel, Marx, Nietzsche, Freud, Sartre, Heidegger, Couto Viana, José Gomes Ferreira, Régio? Herberto Helder…, Saramago.
Não. Não deve. Poderia quase dizer o mesmo que diz Miguel Urbano do Livro do Desassossego, a propósito de José Saramago, de cujo Memorial do Convento, quando saiu, abandonei a leitura, findo o primeiro terço. Li, entretanto, meia dúzia de obras do autor de Ensaio sobre a cegueira, a quem reconheço o valor, e o Memorial aguarda a minha visita, com outra compreensão.
Detenho-me nesta apreciação de M. U., em que o segundo adjectivo não conta, relativamente ao primeiro, apesar do inextricável do labirinto pessoano:
Leio e releio páginas do Livro do Desassossego, fascinado mas fatigado…    …    …    …
*
Frases
«Pessoa fascina-me e cansa-me. Leio por dever.»  Prevalece a fascinação.
«[…] colossal desarrumação e desassossego do escritor».

«O génio de Pessoa desemboca numa escrita caótica e difícil de acompanhar por leitores como eu.»
Essa insistência e a importância em Pessoa do seu mundo onírico e do estado de transição entre o sonho e o despertar lançaram-me numa incómoda viagem por dentro.
O mundo onírico e o estado de transição entre o sonho e o despertar: aqui parece estar Pessoa para Miguel Urbano. O sonho e o estar acordado. Há aqui uma certa desvalorização, acantonamento e menos preço pelo íntimo. Tudo o que se pensa, diz, escreve e fala vem do íntimo. Pessoa também é vigília e mesmo acordado sonha.
Sonhando, ou no torpor que anuncia o despertar, acabo sempre em meditação caótica sobre o que fiz e não fiz na travessia desassossegada de nove décadas…    …    …    …    …
«Vieira, nos antípodas como escritor». «Antípodas» traz consigo a ideia de oposição e Fernando Pessoa admirava o Padre António Vieira, por si justamente louvado, como o Imperador da Língua Portuguesa, num texto que comove quem o ler.

Temia a morte. Ora nega, ora sugere o contrário. Mas prestes a findar a sua breve passagem pela vida (47 anos), se alguém ousasse dizer-lhe que, transcorridos poucos anos, ganharia a imortalidade como escritor e seria colocado pela crítica mundial ao lado de Camões ou acima dele, chamaria louco e irresponsável ao autor da previsão.
A insegurança seria coisa dele; seguro de si, do seu valor estava. Fala de um super-Camões e é de si que fala. É assim que o entendo.

REVIVENDO O NÃO VIVIDO Miguel Urbano entra, agora, no memorialismo, até «cretinismo parlamentar». Muito interessante. Tem toda a razão em pôr aqui estas memórias, que não o desmerecem nem ofendem ninguém, sem embargo de se poder entender o conselho dos amigos, no que respeita à referência final à companheira, mas disso é ele o melhor julgador.
*
Morte, Deus, amor, sexo, alma, destino; «intransponível o muro que me separa da ideia e vivência do amor em Pessoa». Não somos Pessoa. De qualquer modo, em mim, não há este muro intransponível. Li as cartas de Ofélia, com muito gosto. Défice de sexo? Há mais mundo para além deste défice.
«Dos sonhadores do milénio -socialistas, anarquistas, humanitários de toda a espécie-tenho a náusea física, de estomago. Querem a superfície da vida por uma fatalidade de lixo, que boia à tona de água e se julga belo, porque as conchas dispersas boiam à tona de água também».
Pessoa, cujo pensamento estava aberto a todos os azimutes, nunca se interessou pelas ideologias. O parágrafo que transcrevo expressa bem a ambiguidade do seu posicionamento perante grandes questões do seu tempo.
 Paradoxalmente, a filosofia, nomeadamente a metafisica, mereceu-lhe um interesse absorvente, identificável na sua obra.
Não quero crer na verdade da classificação de «ambiguidade» atribuída a Pessoa, «perante grandes questões do seu tempo», nem na justeza do emprego de «Paradoxalmente», na relação com o que vai dito antes.
*
Cepticismo ou realismo, mas…
O homem novo
Afinal, há raríssimas excepções. É a nossa luta e a nossa esperança. Para isso contribuirá a educação, a começar na família; continuada e mantida pelo sistema de ensino, com os seus vários intervenientes, e nas instituições religiosas e políticas. Nestas, por um jogo mais elevado, que sirva de exemplo e habitue ao respeito pelas várias opções.
*
Volto ao que estava a fazer, ao meu a fazer, ou como soe dizer-se: aos meus afazeres.

3 comentários:

  1. O texto (artigo escrito para e publicado por O Diário)de M. Urbano é mesmo o que dizes: sincero; como eu digo: de uma admirável franqueza (não o seria se esta fosse vulgar nos homens), onde assomam orgulho e vaidade (tão humanas!, crenças fortes, dúvidas.Em um comentário que enviei para O Diário, escrevi que apenas me atrevia (!) a discordar da tese (filosófica) da identidade imutável e transhistórica do homem. Tese que remonta aos gregos, adquire a forma do "pecado original" segundo Agostinho de Hipona, reaparece em Hobbes, secularizada agora, chega à pena reaccionária (no sentido do termo)de Burke, apaga-se no período do auge do Positivismo (triunfo da ideia de Progresso), regressa com renovadas forças e roupagens neste "pós-modernismo" céptico, anarco-situacionista. Isto para dizer que o pessimismo é determinado por múltiplos factores que se entrosam num quadro dialéctico: a idade pessoal, a classe social, o momento histórico, a idiossincrasia cultural do próprio. A essa tese permito-me confrontá-la com a sua antítese: o homem nasce com as duas possibilidades: para o bem e para o mal; é necessário definir o que se entende por "bem" e "mal", o que nos conduz à conclusão de que essas noções são fortemente sociais (culturais; dispomos de um cérebro idêntico ao do homo sapiens, porém os nossos sentimentos, ideias e necessidades, não são idênticas; a nossa sensibilidade e consciência face à barbárie não é a mesma do persa da Babilónia; a minha consciência não é idêntica à do senhor de escravos, à do senhor feudal, à dos patrões das agências privadas (financeiras) dos rankings actuais. Introduzi Kant e Marx...M. Urbano é marxista: a sua tese da imutabilidade do homem colide clamorosamente com o pensamento de Marx e Engels...colide, sobretudo, com a existência de homens bons ("novos" de algum modo)como o próprio Urbano e com a aspiração humana à paz e justiça.Em suma: à Esperança.

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  2. Permite-me mais alguns poucos adicionais.
    1. Comentei apenas um trecho, o que ora mais me importa:A História demonstra que o homo sapiens pouco ou nada evoluiu desde as antigas civilizações do Mediterrâneo Oriental e da Mesopotâmia. N a sua capacidade de produzir coisas maravilhosas e de semear o mal e desencadear a violência é, no fundamental, o mesmo da época do Código de Hamurabi e da Menfis faraónica.»
    o que sublinho (e discordo)é: «A história demonstra que o homem pouco ou nada evoluiu». Que ele faz maravilhas e barbaridades, claro que estou de acordo, porque isso é uma frase genérica de senso comum. A discutível e importante no ponto de vista filosófico é a primeira parte.
    2. Em que se baseia quando afirma que "a história demonstra"?Nos relatos dos historiadores e nas interpretações de alguns filósofos...Fisicamente somos ainda o mesmo (embora se tenda a sermos mais altos, mais longevos,etc.), neural e cerebralmente já o disse.As ideias, porém, não são todas o mesmo do antigamente (algumas são, outras não). Temos pulsões primitivas, constantes, mas também intenções que mudam com as sociedades ( a relação entre homens e mulheres, com as crianças e filhos,e outras relações sociais). Temos barbaridades que resultam de progressos e progressos que resultam de barbaridades, nessa dialéctica que faz a historicidade.Existem (ontem e hoje) sociedades que promovem mais violências que outras, como o demonstram a etnologia, antropologia, etc. Podemos conter, em certos casos e até certo ponto, impulsos homicidas no homem, moralizar ou desviar a agressividade natural para outras finalidades mais vantajosas ao indivíduo e a aos demais.
    3. Vivemos um momento histórico onde as barbaridades se localizam sobretudo na região do Médio Oriente (esquecemos a África), quando há décadas atrás eram no Vietnam por exemplo. Que interesses económicos e políticos estão envolvidos na Síria ou no esquecido Congo? Que papel desempenham as ideologias na história recente( Guerra Fria e suas guerras quentes; Ocidente versus Médio Oriente; racismo nazi na Alemanha do Hitler)? Porquê crenças religiosas convivem internamente com profundas contradições: o cristianismo do amor e paz com as cruzadas ou as guerras religiosas; o islamismo de paz e caridade com os fundamentalismos despóticos; o judaísmo de Abraão com os judeus ortodoxos que defendem práticas que relembram os nazis que os chacinaram?
    Isto para dizer que os interesses movimentam os indivíduos, e eles não são os mesmos para o opressor e para o oprimido, como o demonstra a história universal, mesmo quando os oprimidos sentem como seus os interesses dos opressores...
    4.Edmund Burke foi um penetrante pensador conservador: da grande Revolução Francesa apenas viu o "Terror", enquanto que o Kant, Fichte e Hegel viram algo mais: conquistas irreversíveis da espécie humana. Devemos ao cristianismo a bela noção de "humanidade"; devemos aos Iluminismo a noção secularizada. Noções impensáveis para o Neeanderthal ou para o código de Hamurabi...
    5. Quanto ao genial Pessoa da mística não me é superior comparativamente e conforme os meus interesses ao espiritualismo racional e progressista de Tolstoi.

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