Comemorando
o centenário do nascimento de Vergílio Ferreira
Só agora saem em letra de forma as palavras ditas em
30 de Janeiro de 2016 no programa da TSF, Terra-a-Terra, com um conjunto
de pessoas que conhece muito bem a vida e obra de Vergílio Ferreira. A
transcrição, para memória futura, foi um trabalho de voluntário para oferecer a
quem estiver interessado e foi acabada em Junho de 2016.
Vale bem a pena ler e ouvir... Alípio de
Melo, Catarina Santos, D.ª Augusta, Eduardo Pereira, Francisco José Viegas, Fernando
Alves, Filomena Rodrigues, Hélder Godinho, J. Costa Lopes, José Gameiro, Luís
Tadeu... Quereria dizer algo, mas refiro apenas a segunda leitura que fiz da Aparição,
com uma consciência das dificuldades que encerra e de que não me terei
apercebido quando li o romance pela primeira vez. A casa do Alto, no Alto de S.
Bento, a «montanha» de Évora…
Fala-se em Aris de Sá, suponho ser
gralha, e o mesmo se diga, quando a sobrinha de Vergílio Ferreira, Filomena
Rodrigues, verbaliza «batatas feitas», em vez de «fritas».
Ouve-se a voz de Vergílio Ferreira, em
excerto de entrevista a Eduardo Pereira, quando jovem estudante liceal.
Avançamos para mais uma edição do
Terra-a-Terra, hoje em directo de Gouveia, na biblioteca municipal num programa
integrado nas comemorações do centenário do nascimento de Vergílio Ferreira.
Equipa TSF em Gouveia, Amadeu Araújo e Joaquim Pedro e Fernando Alves, bom dia!
FA — Vou escrever, vou ler, vou pensar. Ler,
escrever, pensar. Que é que isto quer dizer? Bom dia!
Esta emissão do programa Terra-a-Terra
realizada no auditório da biblioteca municipal de Gouveia corre à sombra da
montanha e do vento e das palavras de Vergílio Ferreira. Por estes dias podemos
percorrer as ruas da cidade de Gouveia guiados pelas palavras dele, que era
daqui e aqui nasceu, faz agora cem anos. Digamos que subo a rua, a caminho da
Praça de S. Pedro, onde ontem foi recolocado o busto do escritor, e que os meus
pensamentos trabalham rapidamente uma frase de Estrela Polar e que essa frase se demora nos meus
lábios, enquanto vos chamo para este aconchego da rádio. «Vagueio, ainda, pelas
ruas, cruzo-me com o vento, que me espera às esquinas.» Anoto: desta vez não é
Penalva que me fita. É que desta janela podemos ver todos os lugares onde os
romances que os romances de Vergílio nos levaram. E assim sendo esta há-de ser,
como ele dizia, a hora majestosa. Pressentimos o sol erguendo-se por detrás da
montanha… Que é que nos diz à evocação a montanha onde ele nasceu? Se nos
perdemos nestas ruas, saberemos reencontrar-nos, como ele nos ensinou, no
silêncio das serranias. Talvez encontremos nas próximas horas um caminho de
cabras, que não apenas em curta distância, de Melo a Folgosinho, que ele venceu
a pé mais do que uma vez, soube disso ontem, mas nos ajude a perceber a
importância da montanha. Aceitemos neste início de conversa a explicação do
escritor. «A montanha é ascensão, o lugar habitado por deuses, porque ela
propicia ao homem a pergunta essencial da sua vida: há sentido na terra para a
humanidade?» Lendo os livros de Vergílio Ferreira, a montanha revela-se-nos. À
sombra da montanha vergiliana e à volta da mesa da rádio estão esta manhã Luís
Tadeu, presidente da câmara de Gouveia, os professores Hélder Godinho e Jorge
Costa Lopes, especialistas na obra de Vergílio Ferreira, o escritor Francisco
José Viegas, que veio aqui na qualidade de editor apresentar três novos e
importantes contributos para a reedição total da obra de Vergílio, Alípio de
Melo, gouveense que tanto trabalhou pelo reencontro de Vergílio Ferreira com a
sua terra, o psiquiatra José Gameiro, que foi seu aluno no liceu Camões e hoje
nos traz algumas surpresas, alguns tesouros que partilhará connosco, e Eduardo
Pereira, que conseguiu ainda muito jovem estudante da Escola Secundária Rainha
Dona Leonor em Lisboa uma improvável entrevista com Vergílio Ferreira. Antes de
iniciarmos uma viagem conversada, convido-vos a que nos detenhamos no átrio da
Câmara Municipal de Gouveia. É que todos os dias, ao entrar naquele edifício
tão cheio de história, antes de passar os claustros, presidente Luís Tadeu, o
senhor é interpelado por uma frase do Vergílio Ferreira, ali afixada, presumo,
há muitos anos. «A eternidade não se mede pela sua duração, mas pela
intensidade com que a vivemos.» Pergunto-lhe, meu amigo, se os intensos
instantes destes dias, à volta da obra do Vergílio Ferreira e da sua memória,
têm tornado também para si mais evidente este, se posso dizer assim, halo de
eternidade para que os livros de Vergílio Ferreira nos convocam.
LT — Bom dia, Fernando Alves, bom dia a
todos, bom dia aos nossos ouvintes, de facto o Fernando escolheu uma frase
muito boa para começarmos este programa. Vergílio Ferreira foi precisamente um
homem de intensidade. Ficou sempre, como o Fernando já disse, com a sua
montanha, sempre, na base da sua Melo e, portanto, a serra sempre foi para ele
o desafio, o desafio, e nós continuamos a ter a serra como nosso desafio, desafio
que este concelho se calhar ainda não soube aproveitar na sua plenitude. E
continuamos a trabalhar a serra.
FA — É hora de regressar à serra, com
Vergílio também [LT – sempre com Vergílio] porque será presumivelmente, mais do
que um roteiro, indicações preciosas para encontrar os caminhos que nos levam à
clareira do bosque [LT – Claro. Porque Vergílio…], é disso que se trata,
também, o senhor encontra ali naquele claustro todos os dias a sua clareira do
bosque, com Vergílio?
LT — Também; também, necessariamente. Mas,
Vergílio, como disse, é uma marca fundamental deste território também e que nós
temos que continuar sempre, sempre, a olhar e a trabalhar.
FA — A todos proponho que rumemos à aldeia
de Melo, nesse caso, e que nos detenhamos diante de outra casa, a casa
identificada como Vila Josephine. Há no breve jardim um limoeiro e uma
laranjeira e na parede da casa uma placa que nos interpela: «Aqui estou, na
casa grande e deserta. Para sempre.» A dona da casa é médica em Coimbra,
regressou a Gouveia para participar na celebração do centenário do nascimento
do escritor, seu tio, Filomena Rodrigues, lá em Melo chamavam-lhe Meninha.
FR — Em minha terra todas as pessoas têm
diminutivos. A minha avó morreu com noventa e dois anos, e era a Dona Zefinha.
FA — Dona Zefinha, avó de Meninha. E
Vergílio Ferreira, como é que a tratava? O seu tio, Vergílio Ferreira?
FR — Era Menita, inicialmente, quando era
mais miúda, e depois, mais crescida, quando fui para o liceu, os meus colegas
todos chamavam-me Mena e ele tratava-me também por Mena.
FA — Mena, era assim que a tratava, quando
regressava a Melo e ia à casa amarela, a casa referida em Para Sempre.
FR — É, exactamente.
FA — Passou a ser a casa dele, quando ia a
Melo.
FR — Sim. Era a casa dos pais dele e como
tal, quando ele ia a Melo, era sempre onde ficava era em casa dos meus avós.
Inicialmente, era dos meus avós, o meu pai era professor e sempre deu aulas
mais ou menos por perto, mas era onde a gente ia sempre aos fins-de-semana, era
a casa dos meus avós. Nas férias era a casa dos meus avós e depois de os meus
avós morrerem, passou a ser a casa dos meus pais, porque os meus pais ficaram
com a casa. E era onde ia o Vergílio Ferreira, exactamente, quando ele ia a
Melo, que era uma ou duas vezes por ano.
FA — Essa casa tinha nome, tinha um nome
de mulher, não é.
FR — Era a Vila Josephine. Era assim que o
meu avô chamava à minha avó. Estiveram trinta anos na América e pronto, ficou
sempre a Vila Josephine, que era o nome da minha avó, que era Josefa.
FA — Josefa. Sempre se lembra da casa
amarela ou teve outra cor?
FR — Eu creio que teve outra cor, muito lá
atrás, branca, mas eu não tenho essa ideia. Só me lembro da casa amarela, de
facto.
FA — Amarela, como no romance, como em Para Sempre. Olha para essa casa, que é sua hoje, é a
sua casa, doutra maneira? É uma casa cheia de histórias, por causa do romance
ou já era cheia de histórias, mesmo?
FA — Era uma casa cheia de histórias,
mesmo, porque aquela casa é uma casa grande. E é uma casa que neste momento, a
mim, não sei explicar. Tenho uma relação muito perturbadora com ela, porque eu
já vi aquela casa cheia de gente…, porque viviam os meus avós, vivia a minha
tia-avó, os meus pais, eu e o meu irmão, primos que andavam sempre por ali e,
portanto, era uma casa cheia de gente. E neste momento, não tem ninguém.
FA — Não vai lá, com frequência?
FR — Não…, não.
FA — Mas, agora, tem uma chave secreta e
podia abrir-nos essa casa. Sei que a abrirá e que está sentada algures num canto
da casa e ouve o seu pai falar com o Vergílio Ferreira. Eram muito amigos, não
eram?
FR — Eram. Eram muito amigos e o meu pai
era, tinha até uma parede, havia uma pancada e o Vergílio Ferreira sabia tudo
do meu tio, sabia os livros todos, sabia frases inteiras e depois como eram
mais ou menos contemporâneos, também, mesmo as personagens que o meu tio aborda
em alguns livros o meu pai conhecia, porque eram contemporâneos e, portanto,
conhecia as pessoas. E, portanto, estava muito a par e conversavam muito e, de
facto, era a pessoa, quem mais sabia do meu tio era o meu pai.
FA — Porque Vergílio Ferreira usava
personagens que iam beber a figuras vossas vizinhas, muitas vezes?
FR — Sim…, sim…, que existiam, que
existiam mesmo, não é? Às vezes, com outros nomes, muitas vezes nem com outros
nomes, era mesmo com os nomes, porque também lá em Melo é muito frequente as
pessoas terem alcunhas e as pessoas serem conhecidas pelas alcunhas e ele
utilizava e usava essas alcunhas, mesmo nos livros, e às vezes o meu pai dizia:
«Ó Vergílio, mas é chato e tal, as pessoas…»; «Oh, eles não lêem. Não faz mal.
Ninguém sabe quem é.»
FA — E a Mena, em menina, em adolescente,
já reconhecia nas personagens dos romances de Vergílio Ferreira esses vizinhos,
essas figuras da terra?
FR — Não, porque normalmente até eram
pessoas que eram mais velhas do que eu ou algumas que já nem existiam, que eu
não conheci, sequer. Não…, isso, eu não.
FA — Mas, imagino que assistiu a
formidáveis conversas entre eles.
FR — Sim, mas as pessoas às vezes têm uma
ideia que o Vergílio Ferreira…, ele em família era uma pessoa normal. Era um
tio normal; é evidente que se falava de literatura, principalmente se havia
algum livro dele que ia sair ou coisa do género, mas de resto as conversas eram
conversas comuns como qualquer pessoa a falar da vida normal, do quotidiano,
não era…, não estava sempre a falar em grandes literaturas, em grandes
filosofias; era conversas banais. E o meu tio até tinha…, as pessoas têm sempre
uma ideia dele, dele ser uma pessoa muito [FA – austera] muito austera, muito
calado. E não era. Era uma pessoa conversadora, gostava da sua piada, gostava
de beber o seu bom vinho, da sua feijoada, pronto, o meu tio, como ia uma ou duas
vezes por ano, lá em casa, os meus avós era como se fosse uma visita, não é?
Vinha o Vergílio, aquilo era…, então havia sempre, tentava-se requintar um
bocadinho mais a comida e tal e ele às vezes dizia, assim: «Mas, porque é que
vocês fazem isto? Isto como eu lá no restaurante e não sei quê… Eu gosto é da
comida normal, uma feijoada, um cozido à portuguesa, uma coisa dessas…» e
daquelas comidas antigas que lhe fazia a tia Quina ou isso, que eram as batatas
feitas, ou…, pronto, essas coisas assim. E pronto, e muitas vezes lá se fazia a
feijoada para lhe fazer a vontade e isso.
FA — Associam muito isso, a essa conversa
à volta do lume aceso, se posso dizer assim, para usar uma expressão muito
daqui que também passa nos livros dele, o acender o lume, o fazer o lume?
FR — Normalmente, ele…, houve uma altura
que vinha sempre no Natal, mas depois como estava muito frio, ele passou a vir
mais na Páscoa e na Páscoa já havia tempos bons. E do que eu me lembro, de
facto é de sairmos todos a passear, porque ele havia sempre um percurso, um
roteiro em Melo que ele fazia sempre que ia a Melo, começava numa ponta e
acabava sempre na outra. Sempre fazia o mesmo. E pronto. Íamos a conversar, não
sei agora exactamente o quê, mas conversava-se de tudo um pouco.
FA — Em Coimbra também pensa nele e nos
sítios dele, ou quando pensa nele a geografia afectiva mais vincada remete-a
para Melo, sempre?
FR — É… Quando penso nele, associo-o
sempre a Melo. A Melo ou a Lisboa; porque eu também houve uma altura que estive
com eles em Lisboa. Inda, eu estive ainda uns tempos em Lisboa, no liceu onde a
minha tia dava aulas. Mas, sim, quando penso nele, associo-o mais a Melo.
FA — Ele não gostava muito de Lisboa!?
FR — Não. Associo-o a Lisboa e a Évora.
Durante muitos anos, mesmo depois de ele já estar em Lisboa, nós, nós, miúdos,
eu e o meu irmão chamávamos-lhe o titi de Évora. Que era o tio que vinha de
Évora. Pronto. E já em Lisboa, muitos anos, era sempre o titi de Évora. «Olha,
vem aí o titi de Évora.» Pronto. E era assim.
FA — O titi de Évora.
FR — Era, o titi de Évora, exactamente.
FA — Alípio de Melo! Este homem, de quem
foi amigo, filho de Melo, hei-de querer saber se o seu nome, Alípio de Melo,
também decorre de ser filho de Melo… Este homem é dum lugar, onde todos,
aparentemente, têm alcunhas e sabemos que muitas dessas alcunhas ajudaram
também a definir personagens nos seus livros, saberia que lhe chamavam na casa
amarela «titi de Évora»?
AM — Sim... Bom-dia! Sabia que chamavam,
porque convivi quer com o Vergílio, quer com a sua esposa, a Dr.ª Regina, quer
com o pai da Dr.ª Filomena, o saudoso professor José Rodrigues.
FA — Irmão de Vergílio.
AM — Não, cunhado.
FA — Cunhado, cunhado de Vergílio.
AM — Ora, bem. Foi através do professor
Rodrigues, numa circunstância muito especial, que pessoalmente conheci Vergílio
Ferreira. Se estão recordados, as comemorações do 10 de Junho de 1977, já
diferentes das que eram habituais, o general Ramalho Eanes propôs que fosse a
Guarda, a cidade da Guarda, como centro dessas comemorações. A comissão
nacional era presidida pelo então major Vítor Alves, havia uma comissão local, de
que eu fui convidado para, para também a integrar. E assim fui eu que sugeri
que um dos oradores, oriundos do distrito, deveria ser Vergílio Ferreira. E
representando as comunidades portuguesas foi o escritor... Ós…, agora…, está-me
a falhar...
FA — Já se lembra...
AM — Já me lembro, já me lembro. Foi o …
Jorge de Sena, exactamente. Nesse ano trouxemos cá a luso-francesa Marie
Miriam, que tinha acabado de ganhar. [FA – o festival… da Eurovisão], o
festival da Eurovisão. Ora, bem. Na manhã do dia 10 de Junho, encontrei o
professor Rodrigues e… estava juntamente com o Vergílio Ferreira e
apresentou-me. E essa circunstância é que veio modificar por completo, digamos
assim, a nossa pretensão de ter uma biblioteca municipal. Porquê? Porque havia
a ideia de construir no Porto um Museu da Cultura. E onde os escritores
canalizariam os seus espólios para lá. E eu disse, que no caso, já conhecia
parte da obra do Vergílio Ferreira, no caso dele não deveria, o espólio dele
deveria vir para Gouveia, para Melo, aqui para a serra. E ele disse: «Ah, bom.
Vou ver, mas não sei bem e tal…» E eu disse: «Vou adquirir um edifício, a minha
edilidade, para ser lá posto um museu e uma sala Vergílio Ferreira e a
biblioteca. Nessa altura, adquirimos ali o solar dos condes de Vinhó e Almedina
onde [FA – onde está hoje o museu], onde está o museu [FA – Abel Manta] o Museu
Abel Manta e os primeiros livros ainda vieram durante a minha vigência
camarária.
FA — Lá para o museu?
AM — Ainda para o museu.
FA — Foi para esse edifício…[AM – para uma
sala], para o qual voltaram, estes dias, alguns, mas aí, a isso iremos mais adiante.
AM — Sim. E depois, fui trocando
correspondência com ele. Tenho um conjunto de cartas e convivi com ele, quer em
Fontanelas quer em Lisboa quer das poucas vezes que ele vinha a Melo, porque,
entretanto, a família foi falecendo, não é? Por acaso, estive lá nos funerais
dos familiares, só ficou o professor Rodrigues. De forma que foi essa feliz
coincidência de o ter encontrado [FA – num 10 de Junho], na Guarda, num 10 de
Junho, que possibilitou este conjunto de obras que estão ali, e que não sei se
haverá muito mais cidades com a nossa projecção que tenham um espólio tão
valioso.
FA — Tão importante. Já falaremos também
desse espólio. Esta é, Jorge Costa Lopes, a casa amarela de Para Sempre, esta casa que
entrevimos apenas, lá voltaremos, ainda, esta manhã, a casa vazia a que se
refere Vergílio e onde tantas vezes ele se pôs a lembrar, que era uma coisa que
ele fazia muito. «Ponho, estou aqui a lembrar.»
JCL — A entrada, precisamente, o início da Aparição é: «Sento-me nesta sala vazia e
relembro». [FA – E relembro] A casa de Para
Sempre é nitidamente aquela. Hoje,
no presente, está quase como no romance, vazia; lembro que o narrador
protagonista de Para Sempre entra, precisamente, inicia a obra, inicia
o romance a chegar à aldeia, a chegar a Melo, e confronta-se precisamente com
uma casa vazia. E todo o romance, tal como a Joyce, o Ulisses de Joyce,
passa-se num dia, todo o romance, o presente de escrita do Para Sempre, é uma tarde, uma tarde
de Verão, uma tarde quente de Verão, em que na verdade naquela casa entram,
entram, digamos, todas as vivências do narrador protagonista, todo o passado…
HG — Uma casa vazia, mas repleta de
memórias…
JCL — Exactamente, exactamente, é mesmo
isso.
FA — A memória é uma peça central [JCL – são
camadas de memória], a memória é um dos materiais com que ele mais trabalha. [JCL/JG?
– Sempre, sempre.] O tempo, a memória…
JCL — A evocação, ele dizia, é uma coisa
curiosa, portanto…, aliás, separava, tinha três conceitos, que era a
recordação, a evocação e a memória absoluta. A recordação é aquela vivência que
nós temos, banal, que recordamos; a evocação é uma memória emotiva, que
recordamos com comoção, com emoção, e uma memória absoluta é qualquer coisa de
metafísico, que não tem contorno, não é!?, portanto, no fundo, essas distinções
que ele fazia e a memória é obviamente na obra de Vergílio Ferreira, e nesse
romance, em particular o Para
Sempre, de uma importância fulcral, axial, porque está ao longo de todo o
livro, lá está, quer dizer, começamos a pensar, um romance passado numa tarde,
aparentemente, não será o romance de duzentas ou duzentas e cinquenta páginas,
em que o tempo de escrita, o tempo, o presente do romance é uma tarde em que o
narrador protagonista entra naquela casa, começa a abrir janelas, a arejar a
casa, no fundo, percorre todas aquelas divisões e cada divisão, no fundo, são
estas camadas de memória que ele vai evocando, vai recordando, os seus tempos
na aldeia, na chamada aldeia eterna, o Vergílio Ferreira, a aldeia mito,
portanto o Vergílio Ferreira inventou ali uma aldeia, não é!?, é uma coisa
curiosa…
FA — Ele o diz, expressamente, às tantas
não sabe se não foi ele que criou a aldeia...[JCL – Exactamente..., exactamente…,
ou a aldeia o criou a ele.] Ora, esta é a aldeia de Melo, pela qual Vergílio
Ferreira expressou uma afeição sem medida, como estamos a perceber…, ele o
disse deste modo: «É essa a forma profunda com que se moldou a minha
sensibilidade.» Ele liga inequivocamente o seu destino à aldeia de que falamos,
e esta casa que afinal não está tão vazia como podemos presumir, está tão cheia
da vida toda, tem tanto mundo… Esta casa, presidente Luís Tadeu, é peça central
do roteiro vergiliano, se é que ele está completamente estabelecido?
LT — É uma peça fundamental;
obrigatoriamente, o roteiro é o roteiro mesmo, como designamos, roteiro
vergiliano e portanto vai percorrer aqueles espaços na aldeia de Melo em que as
obras de Vergílio Ferreira se (a)entendem. E, portanto, o que nós queremos com
este roteiro é, ainda, dar outra dimensão à obra, agora, uma visibilidade
diferente, que permita de facto que os apaixonados ou os leitores de Vergílio
Ferreira possam vir à sua terra e ainda robustecer o seu conhecimento sobre o
homem e sobre a obra de Vergílio Ferreira. E isso é um desafio nosso para este
ano.
FA — Um grande desafio… Ora, a dois passos
da casa, na praça, cujo chão nos recorda os livros de Vergílio Ferreira, está o
chamado recanto da leitura. No mármore desse recanto, José Gameiro, foi
inscrita uma frase de Vergílio, que é todo um programa e que há-de merecer de
si, enquanto leitor e psiquiatra, se posso convocar as duas circunstâncias, uma
leitura singular. «Escrevo para tornar visível o mistério das coisas. Escrevo
para ser. Escrevo sem razão.» Caramba, isto nunca mais acaba o esquartejar
desta frase, que pede uma leitura muito fina.
JG — E ele dizer isso e ter vivido isso,
custou-lhe muitos dissabores na vida. Eu não sou crítico literário, mas leio
umas coisas e interesso-me por umas coisas e percebi como ele foi isolado, na
altura do contexto em que ele começa a escrever, ele começa a escrever das
pessoas, daquilo que as pessoas sentem. Aliás, pondo em causa que é possível
algum dia transmitir aquilo que as pessoas sentem. Eu vou ler duas linhas, eu
tenho uma colecção da Colóquio,
e ele escreveu para a Colóquio três
ou quatro vezes. A Colóquio antiga, não a Colóquio [...] Letras. E a
determinada altura, ele diz que, a propósito do sentir, e do primitivo sentir,
ele diz: Um sentir efectivo só se julgará insincero o que já não é esse sentir.
Ou seja, se ele é insincero, é-o em relação a outra sinceridade. Ele quer dizer
com isto é que não é possível nunca transmitir aquilo que vai cá dentro de uma
forma ali para o papel, de uma forma sincera [FA – absolutamente sincera]
sincera, é…, completamente… E isto não tem nada a ver com a verdade e a
mentira. Quer dizer, o que ele quer dizer com isto, lendo o artigo todo, que,
aliás, depois fala do Picasso, etc., o artigo chama-se «Da angústia, etc.»
FA — A angústia é uma palavra que poderia
ser legenda permanente.
JG — Era um homem extremamente angustiado;
depois, eu posso contar a minha vida, enquanto aluno dele, mas..., o artigo é
de 65 e chama-se «Da angústia, etc.» Este artigo na altura era quase, não digo
revolucionário, mas era contra a corrente; porque na altura falava-se daquilo
que eram as preocupações do fascismo em Portugal, do neo-realismo, das lutas
sociais, etc., etc., etc.
FA — E ele estava ocupado com essas minudências,
essas imensas minudências-
JG — Ele estava ocupado com o que estava
dentro dele e das personagens que ele criava, não é? E isto não era muito bem
visto na altura, não é? Portanto, o Vergílio Ferreira era um homem contra a
corrente, não é por acaso, penso eu, isto é uma especulação meramente minha, [FA
– que ele há-de usar esse título* nos seus diários], não sei se é verdade se
não, se calhar não é verdade, mas se não é verdade é bem achado, é contra, ele
foi um homem, depois em determinada altura as coisas mudaram, etc..., mas mesmo
depois do 25 de Abril não foi nada fácil a vida dele, não é?, em termos sempre
da relação com os...
FA — Jorge Costa Lopes este Conta-Corrente é um contra a corrente? ...
JCL — Foi, foi durante…, como disse o Dr.
[JG – Não me trate por Dr., pá…] Gameiro… Foi durante bastante tempo, sobretudo
a partir do momento em que faz a transferência do neo-realismo para o romance
existencial. Isso naquele tempo não foi bem visto, porque o romance
neo-realista, o romance de preocupações sociais, progressista, era o romance
dominante, porque no fundo era o romance que estava na oposição.
FA — O Vergílio Ferreira nunca abdica
completamente da preocupação social.
JG –……Não, não, não. [JCL – Está sempre presente.]
É um bocado encarcado…, encarcado.]
JCL — Está sempre presente, Há vários
episódios…, aliás, a Aparição...
FA — Na Aparição,
está lá, [JCL – … É um romance] aquele suicídio, aquele suicídio tem toda uma
carga, [JCL – Do Bailote, o suicídio do Bailote…]
JG — Não,
não...
JCL — Do Bailote e não só, a parte dos
ceifeiros.
JG — Não. E ele assinava manifestos. Não
sei, desculpe interrompê-lo [JCL – Sim, sim, não faz mal]. Ele assinava manifestos
da oposição, ele nunca foi um homem, mesmo no tempo do Marcelo Caetano ele não
foi da CDE, em 69, ele foi da CEUD, portanto, com Mário Soares, Salgado Zenha,
etc.
FA? — Que é uma expressão da oposição.
JG — Era uma expressão da oposição, de
rotura, na altura, com o PC, no fundo, quem mandava na CDE era o PC, apesar de
haver lá outras pessoas, mas quem mandava era o PC…, portanto, há uma rotura,
há uma rotura, quer dizer, há uma separação, não é bem uma rotura, há uma
separação, mas ele nunca foi da CDE. Ele nunca foi comunista. Ele era grande
amigo dum homem que era do PC e que na altura já era do PC e que eram digamos
os dois únicos professores do Liceu Camões que se opunham a uma certa
autoridade que eu depois falarei a seguir, que era o Mário Dionísio. Eram
grandes amigos, mas com posições políticas completamente diferentes [FA – distintas].
FA — Ele travará, aliás, polémicas
interessantes, em função dessa separação das águas, uma delas, portanto, com
Alexandre Pinheiro Torres.
JG — Exactamente.
JCL — Isso é logo, a primeira, curiosa, lá
está…, no fundo, há o Mudança,
curiosamente é o Mário Dionísio que vai reparar que aquilo já está numa
transferência do romance social para outra coisa, e posteriormente, e no Mudança, no fundo, é a fase em que o
Vergílio Ferreira praticamente não consegue publicar. Escreve para a gaveta.
Uma dificuldade enorme, nas cartas com o Luís Albuquerque, isso é notório, a
dificuldade que ele tinha nos anos 50 em publicar. O Mudança é um romance que é edição do autor.
Deixou o Promessa e fez uma opção entre o Promessa e o Mudança e portanto publicou o Mudança à sua custa, a suas expensas, não é?
FA — Ele hesita no título.
JCL — Do
Mudança… [FA – Sim.] Não, no Promessa.
Promessa. Promessa tinha o título inicial Sequência e depois [FA – exactamente] é que ficou
definitivamente Promessa.
FA — Aliás, coisa que acontece muitas
vezes. [JCL – Exacto] Acontecerá, em relação ao Escrever, por exemplo…
JCL — O Vergílio Ferreira, aliás, o título, ele dizia [FA – que era um
dilema], o título é a primeira coisa que se escreve e a última que [FA – que se
fixa] que fica em definitivo.
FA — Ora, o texto que Vergílio Ferreira
escreveu está em obras muito lidas e noutras de que nos fomos perdendo por uma
ou outra razão, algumas dessas obras mais difíceis de encontrar nas livrarias
estão agora mais ao alcance dos leitores, agora que a Quetzal resolveu reeditar
a totalidade da produção literária de Vergílio Ferreira. Foi na qualidade de
editor que Francisco José Viegas esteve esta quinta-feira neste mesmo auditório
onde fazemos a emissão do Terra-a-Terra. Ora, Francisco José Viegas: estamos
perante uma empreitada impressionante, que é também um notável gesto de
cidadania.
FJV — Eu acho que essa referência é
importante, porque como editor e como leitor obviamente que eu tenho, teria
muita pena se houvesse livros que se perdessem. Livros do Vergílio Ferreira que
se perdessem. E por isso isto é também um combate pela memória. É um combate,
não só pela memória de Vergílio Ferreira, mas também da geração de Vergílio
Ferreira, dos leitores que passaram pelo Vergílio Ferreira e, obviamente num
termo mais pessoal, também por mim próprio que fui leitor do Vergílio Ferreira.
É muito difícil para um editor lidar com estas duas dimensões: uma dimensão em
que o livro tem que se vender, nós temos que vender os livros, temos que os
colocar nas livrarias, temos que apelar para a sensibilidade dos livreiros,
para que vendam os livros do Vergílio Ferreira, mas, por outro lado, seria uma
pena, e seria uma perda haver uma obra desta dimensão, que não estava
disponível, por isso, ao longo deste ano, nós contamos disponibilizar todos os
livros da obra de Vergílio Ferreira, nas livrarias.
FA — Essa ideia de privilegiar a memória
de Vergílio Ferreira é uma ideia que vale a pena sublinhar, porque ele era um
homem que cultivava a memória, também, ele dizia que uma das doenças do nosso
tempo, talvez a mais perigosa, era a falta de memória.
FJV — Sim, ele avançou, ou seja, mesmo
antes de tempo ele soube predizer algumas coisas que tinham a ver com o
digital, com a presença do digital, a presença da dispersão, ele tinha uma
preocupação que era esta, que era: o combate contra a dispersão é também o
combate pela memória, ou seja, a dispersão dói-nos, é uma doença, não é? Ele
diz isso várias vezes e neste caso fixar a obra, uma obra tão importante, para
mim, é um triunfo. Quer dizer, é um triunfo sobre o esquecimento, e é um
triunfo sobre o esquecimento de vários autores que dos anos 60 e dos anos 70,
infelizmente hoje não estão publicados.
FA — É um triunfo que se manifesta também
pela vertente digital [FJV – Exactamente…], que ele antecipou de algum modo…
FJV — Exactamente; mas, isso permite-nos, hoje,
por exemplo, no caso da Conta-Corrente, que são nove volumes, nós não
podemos publicá-los em papel, é uma obra vastíssima, e, portanto, não teríamos
maneira de a publicar, mas felizmente esse serviço digital permite-nos fazer
isso, como, por exemplo, o Espaço
do Invisível, os cinco volumes que estarão disponíveis daqui a mês e meio,
aproximadamente, e mesmo outros livros que não têm tantos leitores, como O Humorismo de Eça de Queirós, que
vai ter, portanto, a versão digital, e mesmo este O Caminho fica Longe, que é o
primeiro livro de Vergílio Ferreira…
FA — Um livro que é resgatado a mais do
que um momento de trevas [FJV – Sim, sim…], a uma espécie de camada sucessiva
de esquecimentos.
FJV — Sim, sim, porque não só a camada que
veio logo a seguir, porque o livro foi apreendido pela censura, o livro esteve
afastado das bibliotecas durante muito tempo. Quando o livro voltou à
biblioteca, já não existia. E, portanto, não só é um combate contra o
esquecimento, como contra a inexistência, não é? Quer dizer, este…,
basicamente, esta edição de O
Caminho Fica Longe é a primeira
edição, é a primeira edição livre.
FA — Um livro que demora a nascer muito
tempo, embora fosse nascendo aqui e além, aos bocadinhos noutros.
FJV — Sim, sim, sim, porque muitos dos
temas foram multiplicados ao longo da obra, por exemplo, O Caminho Fica Longe, muitas das
coisas, muitos dos enredos amorosos, muito da reflexão do próprio Vergílio
Ferreira sobre a música, a arte, a perda, aparece noutros livros… Um dos livros
que nós publicámos agora, que é Rápida,
a Sombra, que também é de 74, só teve uma edição, entretanto, foi reeditado
agora, é de alguma maneira a raiz do Para
Sempre e daquilo que é o espaço
dos romances canónicos posteriores do Vergílio Ferreira, ou seja, Para Sempre, Na Tua Face, Até ao Fim, Cartas a Sandra, o derradeiro.
FA — É importante que o lembremos neste lugar, não apenas porque
é o lugar para que nos remete a memória que temos dele, o lugar primordial, a
sua matriz, digamos, o território onde ele terá feito chichi nas árvores, em
miúdo, mas porque ele vinha aqui também muito lembrar, vinha aqui exercer esse
doloroso, porventura, trabalho de memória, mesmo num quarto vazio, muitas
vezes.
FJV — Aquilo que nós chamamos, o que nós
chamamos, enfim, mais, de uma forma mais comum, o trabalho de ir à raiz, de
voltar à raiz; eu acho que o Vergílio Ferreira se serviu deste cenário, destes
cenários, nós agora estamos aqui, estamos a contemplar o vale, justamente como
Vergílio Ferreira faz e os seus personagens fazem nesses livros, nomeadamente
no Para Sempre, não é?
FA — Este vale, [FJV – Este vale] visto de
outro ponto...
FJV — De Melo, não é!?, não de Gouveia,
mas de Melo, daquela casa que existe lá, que tem a janela voltada sobre o vale
e onde vários personagens contemplam o mundo ou naquilo que, como Vergílio
Ferreira diz, contemplam o invisível, não é?
FA — Também o poderíamos lembrar em Évora,
cidade de que ele se lembrava muito…
FJV — Sim. Se lembrava muito e tem, aliás,
ó Fernando, tem um livro absolutamente maravilhoso, que é Carta ao Futuro, que é um livro que
não tem a ver directamente com Évora, mas cujo primeiro parágrafo é uma
homenagem inesquecível a Évora.
FA — E adoração a Évora.
FJV — «Évora é uma cidade branca como uma
ermida. Para ela convergem todos os caminhos da planície.» Obviamente, isso,
depois, Aparição… Aparição, que…É muito curioso,
porque…, eu uma vez, na companhia, aliás, do Hélder Godinho, visitámos Évora
com Vergílio Ferreira, fomos visitar todas as ruas que aparecem no livro, todas
as casas que aparecem no livro, o Alto de S. Bento, tudo isso… E esse encontro,
nós temos a noção de que em Vergílio Ferreira o romance é como que uma coisa de
quarto fechado, e não é, não é; é uma coisa de contemplação, ou seja, nós
pensamos que o romance existe, independentemente do mundo, e essa viagem para
mim foi muito importante, a Évora, esse reconhecimento, porque percebi que não
existe literatura e não existe romance do Vergílio Ferreira, sem referentes,
quer dizer, sem uma realidade cá fora.
FA — E esse mundo é para caminhar nele.
FJV — É para caminhar, para andar… Foi
muito engraçado, porque nós caminhámos durante uma tarde inteira, um final de
manhã, a tarde, uma interrupção para almoço, porque o Vergílio Ferreira era um
homem, que como tu muito bem disseste, aqui, já, era um homem que gostava de
comer. E, portanto, depois de almoço continuámos a caminhar, e isso foi muito
engraçado, porque muito da Aparição são caminhadas, são reconhecimentos, não
é?, de territórios.
FA — Outra razão para o lembrarmos aqui, e
haveria muitas mais a invocar, se fosse necessário, não era preciso legitimar a
escolha, mas outra razão seria esta proximidade da montanha, aliás, ele o
disse, a montanha marca o espírito da obra dele. [FJV – hum, hum...] Se pudéssemos
encontrar uma espécie de mãe, uma figura tutelar...
FJV — Estrela
Polar, como é evidente, Estrela Polar é uma referência permanente dessa montanha.
FA — A montanha propicia ao homem a
pergunta essencial da sua vida, que sentido há na terra para a humanidade? Ou
se há sentido na terra para a humanidade!?... É preciso subir a montanha, subir
a montanha num sentido quase literal, para fazer esta pergunta?
FJV— É preciso subir a montanha, mas uma
das coisas que me parece importante no Vergílio Ferreira, é que esse subir a
montanha não é importante porque se sobe a montanha. É importante, porque a
montanha nos oferece um lugar para contemplar. E mesmo num livro que é
totalmente diferente de todos os romances, que é o Invocação ao Meu Corpo, que é um
ensaio, o ensaio é a arte da contemplação, quer dizer, é um lugar da montanha
donde nós vemos aquilo que não entendemos, não é? Para mim, é um encontro com,
definitivo, com a obra de Vergílio Ferreira. Esse lugar…
FA — Esse lugar. Podíamos ir pontuando
numa espécie de mapa deste vasto território os lugares já referidos e eles
constituiriam um desafio permanente e incessante. Há sempre um novo ângulo de
observação, quando voltamos pela enésima vez aos lugares de Vergílio Ferreira,
Luís Tadeu?
LT — É verdade. Nós, quando vamos aos
locais, nunca vemos da mesma forma, há sempre algo de novo, e o Vergílio
Ferreira era isso mesmo que fazia; na sua terra, na sua serra, esta paisagem
fantástica que nós temos, que convido todos a visitar e, mais uma vez, aqui já
referimos, a questão do gosto dele, por comer bem, pela gastronomia beirã, e
portanto, este é outro patamar que pode e deve ser aproveitado para esta
visita, que pode e deve ser feita por todos a esta, a este território…
FA — E que tem percursos improváveis, às
tantas terá sido promovido pela ideia de comer bem que ele terá feito algumas
vezes, soubemo-lo ontem, na sua terra fria [LT – Exactamente] o caminho de
cabras de Melo a Folgosinho.
LT — Exactamente. Caminho que ainda existe
e que está a ser recuperado, enquanto percurso de caminhada; e que, hoje em
dia, certamente, se o Vergílio Ferreira aqui estivesse, seria ainda mais
assíduo de Folgosinho, precisamente por causa do restaurante do Albertino.
FA — Mas não é, não está a puxar a brasa à
sua sardinha, quando fala em Folgosinho?
LT — Não, não. Eu estou a puxar a brasa às
nossas riquezas.
FA — É natural.
LT — Mas, é natural, mas é natural. Mas o
Vergílio Ferreira gostava muito, precisamente pelo seu gosto de caminhar… e
subir a Folgosinho. Como dizia D. Sancho, para tomar um fôlegozinho.
FA — Um fôlegozinho. E os outros presentes
na mesa, que ideia têm do Vergílio, caminhante? Como é que caminharam com ele,
em que circunstâncias…
JG — Eu não caminhei com ele, não é? Eu
fui aluno dele cinco anos, do primeiro ao quinto ano do liceu, portanto, eu era
um puto, o Vergílio Ferreira, o liceu Camões tinha e tem ainda umas grandes,
tem um pátio, e depois tinha umas grandes alas que davam acesso às aulas do
primeiro andar e o pátio dava às aulas cá de baixo, do rés-do-chão. E a ideia
que eu tenho, a recordação que eu tenho, suponho que não falsa, a gente tem
muitas falsas declarações, é de ver o Vergílio Ferreira várias vezes para trás
e para a frente, nos intervalos. Quer dizer, ele não ia muito, a ideia que eu
tenho, posso estar enganado, é que ele não ia muito à sala dos professores. Ia
às vezes, mas que nos intervalos muitas vezes ele passeava com os olhos no
chão, ele não estava a olhar para ninguém, sempre com um livro debaixo do
braço... Não me lembro de ver o Vergílio Ferreira…
FA — Nessa posição que está a fazer, José
Gameiro, abraçado, abraçado ao livro?
JG — Abraçado, com um dos braços. Assim,
uma coisa, assim. Nunca o vi, não me lembro de o ver de pasta. Se calhar, na
altura em que trazia os pontos, chamados exercícios, vinha de pasta, não me
recordo, mas para trás e para a frente, caminhando, sempre, sempre,
caminhando...[dum lado] para o outro. Fora do Liceu Camões, depois, posso
contar, encontrei-o em Fontanelas, foi em casa dele, e, portanto, nunca
caminhei com ele…
FA — Nunca caminhou com ele...
JG — Eu nunca caminhei com ele, mas vi-o
caminhar no liceu Camões várias vezes.
FA — Era um bicho do mato, que caminhava?
JG — Era um bicho do mato que caminhava.
Era um bicho do mato. Eu julgo que ele, no Camões, pelo menos, tinha, dava-se
cordialmente com os colegas, mas o grande amigo dele, no Camões, era o Mário
Dionísio. Apesar, como eu já disse...
FA — Dessas divergências. O Francisco José
Viegas estava agora a falar do prazer que foi caminhar com ele e com Hélder Godinho,
em Évora… Alípio de Melo, caminhou com ele [AM – Caminhei com ele] nesta concha
matricial?
AM — Caminhei com ele em Melo, caminhei
com ele e com o professor Rodrigues, em Melo, sobretudo, às vezes, à noite, os
percursos eram ligeiros, era de casa dele até a um sítio chamado a Fonte dos
Namorados…, e nós estávamos conversando. Ele mandava-nos parar: «Olha, está a
cantar um grilo» e nós não tínhamos dado conta do grilo, hã? Depois, aqueles
cães que durante a noite ladravam, ele parava e dizia, assim: «Olha, lá ao
fundo está um cão a ladrar.» De maneira que era essa a recordação…
FA — Era a canção polifónica, Jorge Costa
Lopes [AM – Exacto, exacto. JCL – A canção da aldeia, não é], você que estudou
a música na obra de Vergílio Ferreira…
JCL — Ele dizia que na aldeia, o espaço
aldeia, a aldeia era um tímpano vivo, [AM — Exactamente] portanto, dali, escutava
[JG – Isso é uma ideia genial] e gostava imenso também de ir ao Cabo, curiosamente
[AM – Exacto], é o ponto alto da aldeia donde ele coloca a casa de Para Sempre, portanto, a casa de Para Sempre, na verdade, em termos,
os romancistas têm muito essa tendência…
FA — É o posto de vigia. [JCL –
Exactamente] Como na Aparição, a casa do Alto…
JCL — Exactamente…, exactamente, a casa do
Alto, em Évora.
JG — Ele caminhava e fumava. Ele fumava
muito…
JCL— Por isso é que o Almeida Faria acha
interessante essa imagem, a determinada altura, diz num texto, na sua evocação
do Vergílio Ferreira de Évora, que ele assemelhava-se ao Humphrey Bogart e ao
Albert Camus, que naquela altura tinha sempre [JG – Sempre com uma nuvem de
fumo na cara]. Exactamente…
FA — Eduardo Pereira, tem estado aqui
sossegado, calado, a ouvir esta conversa [EP – A ouvir, com muito gosto], a
fazer as suas anotações, você já foi jornalista há muitos anos, e poderia estar
aqui a reescrever [EP – Numa outra vida], uma peça, numa outra vida, uma peça
jornalística sobre o que estes maduros, amigos do Vergílio Ferreira estão a
contar, mas o que o traz a esta mesa é a circunstância, feliz para si, imagino,
irrepetível, de [EP – Sem dúvida], muito jovem, 16 anos, Escola Secundária
Rainha Dona Leonor, se ter metido ao caminho até à Avenida Estados Unidos da
América, onde morava o Vergílio Ferreira, para o entrevistar. Isso é uma
aventura prodigiosa…, porque nessa altura não trabalhava para o Diário de Lisboa… Como é que aconteceu?
EP — Aconteceu, com a genui[ni]dade e a
irreflexão própria dos 16 anos, ou seja, eu de facto era aluno do Rainha Dona
Leonor, estava no meu 10.º ano e formou-se ali um grupo de jovens, rapazes e
raparigas, com vontade de fazer coisas. E como sempre acontece nestas
circunstâncias, os projectos, muitos, as realizações foram poucas. De
realizações…, bom, fizemos um grupo de teatro, que foi uma experiência
interessante e pouco mais. De realizações, fizemos pouco mais. Projectos…,
tínhamos muitos. E um projecto que tivemos foi «vamos fazer um jornal de
escola» e quando alguém lança a ideia de dizer «vamos fazer um jornal da
escola»…, eu, que tinha no meu, nas aulas de Português tinha estudado, tínhamos
estudado a Aparição, que foi
para mim um abalo, aquilo abalou-me, mexeu muito comigo essa obra e depois na
sequência disso, assim, de rajada, digamos, tive a iniciativa de procurar ler
outras coisas do Vergílio Ferreira e li de rajada o Cântico Final e a Manhã
Submersa. E, portanto, com
dezasseis anos é assim que as pessoas funcionam. Se eu tinha lido três romances
do Vergílio Ferreira, eu era um especialista [FA – Três murros no estômago], eu
era um especialista em Vergílio Ferreira. [FA – Claro] Com a inconsciência dos dezasseis
anos era assim que as coisas funcionavam. [FA – Para dezasseis anos, é mesmo
especialidade] E, portanto, quando alguém diz «vamos fazer um jornal de
escola», eu lanço a ideia eu gostava de entrevistar o Vergílio Ferreira. Eu não
fazia a mínima ideia se o Vergílio Ferreira vivia em Lisboa ou não, para dizer
a verdade, eu julgo, eu estou convencido que eu nem fazia a mínima ideia se ele
era vivo ou não, mas a ideia de o entrevistar surgiu-me...
FA — A ideia de o entrevistar impunha que
ele fosse vivo…
EP — Sim…, facilitava, pelo menos… E nesta
circunstância aparece-me uma colega…, uma colega do liceu, na escola
secundária, que diz «a minha mãe conhece alguém», e enfim não sei como, por
artes mágicas aparece-me com o número do telefone do Vergílio Ferreira; eu
telefonei ao senhor, disse-lhe que era um aluno do liceu, gostava de lhe fazer
uma entrevista para ao jornal de escola e ele disponibilizou-se de imediato,
quer dizer, não pôs nenhuma condição, não fez nenhuma pergunta prévia, não quis
ir à nossa escola, não quis marcar um território, um lugar, digamos, neutro,
não. Disponibilizou-se de imediato para fazer essa entrevista [FA – em casa
dele] e recebeu-nos em casa dele.
FA — Recebeu-vos, a fumar?, para pegar
numa imagem que o José Gameiro deixou ficar aí…
EP — Não recordo que ele tenha fumado,
não. Creio que não fumou. [FA – Foi pedagógico, foi pedagógico] Recebeu-nos…,
sim, foi muito pedagógico. O que eu recordo, na forma dele…, há bocado, ali o
Zé Gameiro dizia que sim, que ele ao caminhar parecia um bicho do mato. Eu achei
piada, porque, enfim, há o lado austero, que muitas vezes se atribui ao
Vergílio Ferreira, estava presente. Quer dizer, ele, se por um lado, nos recebeu
[FA – Não reforçou a nota simpática] com a maior, com toda a disponiblidade, de
facto, não mostrou nenhuma simpatia afectada [FA – Não vos deu chá e bolinhos…].
Nem chá nem bolinhos, nem «então, qual é a disciplina que os meninos gostam
mais na escola», nada disso.
FA — Mas, foi disponível…
EP — Foi disponível, recebeu-nos e fomos,
como se diz, direito ao assunto. «Aqui estão, sejam bem-vindos, vamos aqui para
esta sala, estou ao vosso dispor para as vossas perguntas.»
FA — Essa entrevista, Eduardo Pereira, foi
publicada no jornal da escola?
EP — Não foi publicada e isso penalizou-me
durante muito tempo. Ou seja, a intenção era de facto essa, mas depois o jornal
de escola acabou por não ser feito.
FA — Essa é uma entrevista inédita, eu
estou a ver com os olhos [EP – …É uma entrevista] do Professor Jorge Costa
Lopes a brilhar, porque ele escava juntamente com outros, com o Hélder Godinho
e muitos outros, tudo o que há ainda por aflorar no grande filão vergiliano.
JCL — Mas, é uma entrevista interessante,
porque [FA – conhece a entrevista?], conheço a entrevista, porque o Eduardo
Pereira teve essa bondade de disponibilizar antecipadamente, dar-me a conhecer
[FA – É um documento, pelo menos, não é?], porque na verdade o Vergílio
Ferreira trata o jovem Eduardo Pereira como um jornalista. Daí, se calhar, não
houve bolinhos, não houve questões extra. [
] Exactamente, ele tratou-os exactamente como um jornalista, fala dos
seus temas de sempre, não tem, digamos, obviamente, ideias fora daquilo que é o
pensamento do Vergílio Ferreira, mas, digamos, responde duma forma muito
interessante…
FA — Alguém nesta mesa ouviu alguma vez
uma passagem desta entrevista?, que foi gravada, imagino, num velho aparelho de
cassetes.
EP — Num gravador de cassetes, a pilhas,
nunca… usávamos…[?].
FA — Ninguém o ouviu, tirando Jorge Costa
Lopes, porventura, é um inédito que a TSF revela em parte, agora mesmo.
VF — Sim.
Um dia um fulano sentiu que determinado partido, ao qual estava profundamente
ligado, deixou também de lhe interessar. «Diziam, mas, ah, encontrou-se razões,
por isto, por aquilo…» — Não! Essas razões só funcionaram em determinado
momento. Porque essas razões não foram descobertas depois. Há razões que não
tinham função nenhuma, num determinado momento, e que depois as mesmas razões
passaram a ter uma função. E é isto, portanto, as questões fundamentais para a vida,
decidem-se pelo que eu costumo chamar um equilíbrio interior. Há certas
questões que entram no nosso equilíbrio; há outras que não entram. É como num
quadro, numa pintura, depois, nós vemos uma determinada mancha, que é azul, ou
que é amarela e que, posta lá, joga bem e se a tirarmos já não joga bem e o
quadro fica diminuído e vice-versa. Portanto, há uma totalidade em nós que se
traduz por um certo equilíbrio, uma certa maneira de ser e em que certos
valores jogam com esse equilíbrio, com essa totalidade e outros não jogam; em
que o mesmo valor, uma vez joga e outra vez deixa de jogar. Portanto...
FA — Cá está. Vergílio Ferreira, falando
com um jovem, dezasseis anos, há muitos anos, um jovem que entretanto cresceu,
engordou, amadureceu, foi jornalista, deixou de ser, nunca publicou este documento…
Este documento, nos poucos instantes em que o ouvimos recoloca questões
centrais, a questão da interrogação permanente, entre razão e o resto.
JG — E o tempo.
FA — E o tempo. [JG – Teve razão, antes do
tempo.] O que é que…
JG — Eu ouvi-o, agora, na mesma revista Colóquio, de 65, no tal artigo que é
sobre a angústia, ele diz: «Porque há-de ser tão imperdoável ter-se razão,
antes de tempo?» [JCL – Que foi o caso dele.]
JG — Que foi o caso dele. «A razão que se
tiver agora para o futuro, só o futuro a dirá tal. Como, pois, falar dela? Sim,
mas aquela que se teve no passado para o futuro, já passado também, quando se
teve, foi também imperdoável e ninguém nos compensou. Foi razão, antes de
tempo, e só por isso criminosa. Que à justiça a cultivemos e a promovamos até
onde for possível, decerto, mas não à força, segundo o código que nos queiram
impor. Sem dúvida, é cómodo alinhar com a lei dos outros, como é incómodo estar
só.»
FA — A incomodidade. A incomodidade é
outra circunstância permanente em Vergílio Ferreira. Ele nunca está na posição
cómoda.
JG — A incomodidade concreta tem a ver com
a razão, antes de tempo.
JCL — Isso é tudo uma questão política,
aquela questão do neo-realismo.
JG — Política de...
JCL — Quando ele diz na verdade, o romance
neo-realista está morto...
JG — ... pequenos grupos de escritores, de
movimentos literários, não é?
JCL — Exactamente, porque ele, o romance
existencial, na verdade, o Vergílio Ferreira, quando inicia o seu percurso do
romance existencial, praticamente não existia, portanto, é único em Portugal. [JG
– É um precursor…] É um precursor, exactamente.
JG — Mas, ele, depois, diz também outras
coisas, se quiserem ouvir.
JCL — E daí ele ter razão antes de tempo.
Depois, outros entraram nessa coutada, digamos assim, mas a verdade é que o
Vergílio Ferreira é dos primeiros a... e depois renegou o neo-realismo, não é?,
e isso nunca lhe foi perdoado. [JG – Sim, sim] E daí, esse isolamento, que ele
teve sempre essa mágoa. E essa questão, que só muito mais tarde, ele dizia que
só quando caiu o muro de Berlim, não é?, é que as pessoas do outro lado o
começaram a ver, não é?, mas só nessa altura e sobretudo a partir do Para Sempre é que começa a haver uma certa unanimidade
em torno do Vergílio Ferreira, porque até lá era um escritor, lá está...
FA — Dividia os campos, dividia os campos.
JCL — Dividia muito, e que estava isolado [JG
– Estava sozinho], e por i…, completamente isolado.
FA — Não era uma circunstância dele, o
estar sozinho?
JG — Em termos de quê, literários ou em
termos de...
FA — A todos os níveis. Era um homem, que,
muitas vezes estava sozinho.
JG — Como eu disse, na escola, a sensação
que eu tinha é que ele estava bastante sozinho. Eu..., depois, não me dava
socialmente com ele, não é!?..., lendo a Conta...
FA — Mas, reencontrou-o, José Gameiro?
JG — Encontrei. Lendo a Conta-Corrente percebe-se que ele tem alguns amigos, ele
fala de alguns… … tem amigos…, mas
que…
FA — Muitas vezes está sozinho, até para
rearrumar…
JG — Ele
está muito em Fontanelas sozinho com a Regina, de vez em quando, recebe os
netos, a Rita e o Pedro, eu conheci muito bem os netos, porque a primeira
mulher do meu colega, filho dele, filho adoptivo dele, era minha amiga, a
Cecília Serrão, e portanto eu tive um grande contacto por essa via, conheci
muito bem a Rita e o Pedro, não sei se eles estão cá, se não, se vieram cá, se
não…, mas era um homem que cultivava a família, ele tem muitas referências aos
netos, por exemplo, sobretudo à Rita, mais à Rita que ao Pedro, talvez... No Conta-Corrente...
JCL — Sim,
sim. Aliás, eu na
exposição criei um capítulo que é o livro de Fontanelas. Pode-se fazer quase um
livro…
JG — Fontanelas era o refúgio dele. Mas,
onde ele diz também na Conta-Corrente,
muitas vezes: «Eu gosto de estar aqui, sozinho. Eu gosto de estar aqui, gosto
de estar aqui a escrever.»
FA — Podíamos fazer um livro só com
Fontanelas, Jorge Costa Lopes?
JCL — Pois, eu tentei fazer, digamos, na exposição,
criar esse, porque no fundo a Conta-Corrente tem essa característica. O Vergílio
Ferreira, tal como nos seus romances, é quase, a Conta-Corrente segue em paralelo com a ficção, quase. Como
nos seus romances, o narrador protagonista tem, digamos, uma vontade sempre
indómita de fugir para o mar.
FA — Fontanelas é a Melo do lado de Aris
de Sá…
JG — É, é claramente. É claramente a Melo fora
de Lisboa [JCL – Aliás, essa ligação ao mar…], onde ele vai nas férias, no fim-de-semana,
onde ele escreve, a Conta-Corrente,
penso que é toda, não sei se é toda, não deve ser, mas é muito escrita lá.
JCL — Ele escreveu, terminou dois ou três
romances em Fontanelas, [JG – Exactamente] mas tem essa característica, como
digo, como os seus narradores protagonistas têm a tendência [JG – Sim, sim,
sim…] de Lisboa, sobretudo o último Vergílio Ferreira, em que normalmente
passa-se em Lisboa, Lisboa e mar, têm a tendência de fugir para o mar. [JG – Exacto]
Como o Vergílio Ferreira saía sempre de Lisboa para Fontanelas.
FA — Mas ele coloca também esse dilema.
Entre mar e montanha. Ele...
JG — Mas, Fontanelas é um caso especial,
não sei se conhecem. Fontanelas, eu tive muitos anos uma casa nas Azenhas do
Mar, que é ao lado, não é?… Fontanelas...
AM — E Gouveia. Há uma freguesia chamada
Gouveia
JG — Exacto. É um microclima. É Sintra, é
um microclima, portanto, aquilo ao meio-dia, ou carrega ou alivia, como se
costuma dizer, ali. E, portanto, é um clima especial. Tem o seu quê depressivo
e ao mesmo tempo pode ter um sol bestial, não é?
FA — Estamos no nosso meio-dia da emissão,
estamos mesmo no meridiano, voltaremos depois das notícias, eis onde as
perguntas de um jovem repórter nos iam levando, agora, a todo o tempo, romance
a romance, ensaio a ensaio, Vergílio Ferreira coloca-nos problemas, justamente,
o problema da morte, que é o problema da vida, o do outro, que é indissociável
da descoberta do eu, o da transcendência e estes problemas, meus amigos, vão
continuar a ocupar-nos, enquanto permanecemos à sombra da montanha.
*
Separador
musical
—
TSF, em Viana do Castelo, 106 ponto 5; em Santarém, 107 ponto 4; em Setúbal, 89
ponto 5.
[Primeiras
notas do separador musical]
—
Vamos para a segunda parte do Terra-a-Terra, hoje, em directo de Gouveia, na
biblioteca municipal, programa integrado nas comemorações do centenário do
nascimento de Vergílio Ferreira, equipa TSF, Amadeu Araújo, Joaquim Pedro e
Fernando Alves.
FA
— Bom dia, de novo. Este lugar, donde falamos, e outros lugares deste
território são povoados de personagens na obra de Vergílio Ferreira. Alguns dos
seus mais respeitados estudiosos estão à mesa da rádio, nesta emissão do
programa Terra-a-Terra, feita em directo do auditório da biblioteca municipal
de Gouveia, com cuja directora, Catarina Santos, tenho, agora, o privilégio de
entrar na sala Vergílio Ferreira, onde se encontram os livros da biblioteca do
escritor. Podemos começar a conversa, talvez, aqui junto às estantes da
literatura francesa.
CS
— Temos aqui a literatura francesa em grande destaque, com muitas anotações,
Vergílio Ferreira foi buscar muito da sua escrita ao existencialismo francês e,
depois, a literatura portuguesa, onde muitos dos livros de Vergílio Ferreira
estão profusamente anotados, por ele.
FA
— Era uma marca distintiva do leitor que ele era.
CS
— Sim, era um leitor que gostava de deixar marca no livro que lia, gostava de
deixar a sua opinião, a sua interpretação e o seu pensamento. No fundo, quem lê
estes livros ou quem está a investigar estes livros está a ler o escritor do
ponto de vista de Vergílio Ferreira…, um bocadinho.
FA
— E isso tem sido um chamamento para os investigadores?
CS
— Penso que sim. Nós temos agora um professor, que está a fazer uma tese de
doutoramento sobre precisamente as marginálias de Vergílio Ferreira e a partir
desta semana, como vamos ter o catálogo on-line, esperamos vir a ter muitos
investigadores aqui nas nossas salas, porque são salas muito ricas para a
investigação e têm ainda muito para serem investigadas.
FA
— Imagino que o Professor Eduardo Lourenço se espantou, quando aqui entrou!?
CS
— Sim. Ele entrou nestas salas e disse, logo: — Ah, mas ele tem tantos livros!?
Muito mais do que eu!
FA
— Muito mais do que eu!
CS
— Sim. E curioso foi quando chegámos ali à Filosofia, ele virou-se para mim e
disse-me: — Sabe, estes livros, muitos, fui eu que lhos enviei de França.
FA
— Ficou com curiosidade de encontrar nesses livros alguma dedicatória, de
Eduardo Lourenço para Vergílio Ferreira, foi vasculhá-los?
CS
— Sim, aliás, tínhamo-los em exposição, nesse dia: tínhamos os livros do
Eduardo Lourenço para o Vergílio Ferreira e os de Vergílio Ferreira para o
Eduardo Lourenço.
FA
— E encontrou anotações pessoais curiosas?
CS
— Não. Era só mesmo dedicatórias. Eu acho que eles têm correspondência, mas
está na Biblioteca Nacional e que nunca será publicada.
FA
— Nem virá para aqui, porventura?
CS
— Não. E também não faz muito sentido, porque eu penso que os manuscritos e
esse espólio estarão à guarda da Biblioteca Nacional, que tem outras condições,
que nós, bibliotecas municipais naturalmente não teríamos, em termos de
conservação, e em termos, também, de uma equipa que possa estudar esses
manuscritos. Nós temos, sim, sete mil volumes aqui na nossa biblioteca e que
para um investigador já tem muito por onde investigar e muito por onde estudar.
FA
— Estamos, aqui, a conversar, em pé, perto de uma mesa onde os investigadores
se sentam ou os leitores, porque qualquer leitor pode vir aqui consultar um
livro, ou só os investigadores têm acesso a esta sala?
CS
— Estas salas são reservadas, o que quer dizer que têm que ser sempre a nossa
autorização e estará sempre cá um funcionário da biblioteca, porque este
espólio é único, é rico e nós temos de ter isso em consideração.
FA
— Mas, estamos aqui em pé e, ainda que nos desse esse atrevimento, não
poderíamos sentar-nos na poltrona de Vergílio Ferreira!?
CS
— Não. Hoje, não nos poderíamos sentar, porque a poltrona está em exposição no
Museu Municipal de Arte Moderna Abel Manta até ao dia 26 de Março.
FA
— Que mais objectos de Vergílio Ferreira se foram daqui para lá?
CS
— Foram todas as condecorações, todos os prémios literários, Vergílio Ferreira
ganhou todos os prémios literários, à excepção de um Nobel, que ele merecia, e
estão muitos livros que ele tinha aqui na nossa biblioteca, nomeadamente, os
dez livros que mais o influenciaram na infância, e outros que estão com muitas
anotações e que, quem for visitar, ficará certamente espantado.
FA
— Trouxe-me para este cantinho para eu ver que rompeu o sol entretanto ou para
me mostrar alguma coisa específica?
CS
— Não. Porque é o cantinho onde está sempre a nossa poltrona… e porque também
está ali a literatura brasileira, de alguns escritores que eu gosto e que
Vergílio Ferreira gostava, da Clarice Lispector […] Sim, sim.
FA
— Estamos a ver a máquina de escrever que ele usou?
CS
— Sim. Mas, o Vergílio Ferreira escrevia pouco na máquina de escrever. [FA – Era
mais à mão, não é?] Vergílio Ferreira não escrevia muito à máquina… E ainda
bem, porque eu também gosto muito mais de ver a escrita com a letra dos
escritores, tal como eu, também gosto mais de escrever à mão do que no
computador.
FA
— Gosta da letra dele?
CS
— Acho uma letra muito interessante. Embora seja um bocadinho difícil de
decifrar, mas sim…
FA
— Muito miudinha?
CS
— Sim, sim, sim. Acho a letra de uma pessoa muito [FA – meticulosa] meticulosa,
metódica…
FA
— Ora, a letra miudinha de Vergílio Ferreira pode ser apreciada nas estantes da
exposição que o Professor Jorge Costa Lopes organizou e que está a ser visitada
desde ontem, no Museu Municipal de Arte Moderna Abel Manta. Pode aliás ser
visitada até fins de Março, tanto como creio [JCL – vinte e seis]. Esta letra
miudinha também é uma marca distintiva do Vergílio Ferreira?
JCL
— Sim, sim, sem dúvida. Ele diz, inclusive, há um…, julgo que é o Jorge de Sena,
que a determinada altura diz que quase a carta cabia num selo, porque a letra
era tão miudinha, tão miudinha que na verdade para mim não é difícil de ler,
porque já estou devidamente, mas acredito que seja muito complicado para
algumas pessoas porque um romance como Para
Sempre, são sensivelmente vinte e tal páginas A 4, não é?, portanto o
capítulo, o capítulo ocupa uma página [FA – uma página] e depois não o escrevia
no verso, portanto, estou a falar de vinte e tal páginas, só, no rosto…
FA
— Ele escrevia era nas bordas dos livros dos outros.
JCL
— Exactamente…
FA
— Mas, quando escrevia para publicar não escrevia no verso. [JCL – Exac…, quase,
quase sempre, exacto.] A letra miudinha do Vergílio Ferreira está aí na sua
mão, Alípio de Melo?
AM
— É evidente, é uma carta de 22 de Julho de 1990, a propósito de uma apreciação
a um dos livros de Vergílio Ferreira e é muito difícil; às vezes, só com a lupa
e eu já, eu e os funcionários aqui da biblioteca andámos semanas, por causa de
uma letra duma palavra apenas, que, consoante a leitura [JG – o sentido mudava]
mudava o sentido. De maneira que esta carta, eu tenho várias, esta carta é
importante, porque ele aqui diz o seguinte: «Sem dúvida, há hoje um problema dos
idosos, — estamos a falar de 1990 — […], não, mormente nas cidades, onde a sua
presença em família costuma acentuar o espaço reduzido em habitação. Mas não
só. O velho tem uma tradicional e falsa imagem, utilizada também na publicidade
ao iogurte e pílulas de alho.»
[…]
— … essa ironia…
FA
— Miudinha, mas capaz de partir vidros. Grandes pedradas com letras pequenas,
não é?
HG
— E nesta passagem, vê-se, nesta passagem que foi lida agora, vê-se um outro
lado da escrita de Vergílio Ferreira, que nem sempre é muito valorizado, que é
o recurso a uma certa ironia…, que não é muito evidente na obra de Vergílio
Ferreira […? – Está, está…] [FA – Que foi tema de uma obra de Jorge Costa Lopes]
HG
— … mas que foi trabalhado precisamente pelo Jorge Costa Lopes.
JCL
— Esta carta é de…, é quando o Vergílio Ferreira começa a escrever o Em Nome da Terra, [AM – Exacto…], portanto,
que é um romance passado num lar da terceira idade, portanto, e o Vergílio
Ferreira, esta bomba demográfica, que nós…
JG
— Isto é antes ou depois do primeiro enfarte? [JCL – Diga, diga, desculpe…]
Isto é antes ou depois do primeiro enfarte?
JCL
— Isso é… depois. [JG – É depois do primeiro enfarte…] É depois do primeiro
enfarte, que é de 80.
JG
— A preocupação da morte dele começa muito depois do primeiro enfarte.
JCL
— Sim…, mas aqui é a questão demográfica, mesmo, ele tem um pouco simbólico, Em Nome da Terra, ele já tinha colocado
esse simbolismo no Alegria Breve,
numa aldeia que a pouco e pouco, após a festa do volfrâmio, vai-se desertificando
e vão ficando só os velhos, precisamente…, e aqui, Em Nome da Terra, volta a simbolizar o país, como um lar da
terceira idade. O país, e no fundo, a Europa, que, no fundo, é um espaço de
clausura que eu considero que está um pouco, em, digamos, em ligação com a Manhã Submersa. Portanto, a Manhã Submersa, o espaço de clausura de
jovens, [FA – sufocante] sufocante, o lar da terceira idade, o espaço de
clausura de velhos. E na verdade, o Vergílio Ferreira tem essa característica
de antever essa questão, que estamos a viver, cada vez mais; e que, normalmente
não é [JG – Que ele antecipou?] Exactamente…, que é esta bomba demográfica, não
é verdade, de não termos renovação de gerações.
JG
— A propósito da ironia, ele tinha aquilo, eu não queria estar a catalogar, aquilo
que nós chamamos, nós, psiquiatras, o humor dos depressivos. Os depressivos têm
ironia e têm uma ironia normalmente um bocadinho ácida, e muito sofisticada,
muito requintada.
JCL
— Mas, ele bebe a ironia no Eça de Queirós!... Atenção…
JG
— Exactamente!... Ele tinha o humor, tinha esse tipo de humor.
JCL
— Não é por acaso que o primeiro estudo dele ou um dos primeiros, ele fez o
primeiro, é Teria Camões Lido Platão? É
uma monografia [JG – hum… hum], mas, depois, é sobre O Humorismo de Eça de Queirós, [JG – Exactamente] e também estudou
o humorismo de Erskine Caldwel, não é?, e portanto, os primeiros trabalhos [JG
– Sim, sim, sim] é na base…
JG
— Ele, de vez em quando nas aulas, largava umas… e eu não sei se posso contar
um episódio interessante [FA – Claro que pode, José Gameiro]. Nós tínhamos como
programa oficial, penso que todos tivemos aquilo, Os Lusíadas, não é? Pronto… Os
Lusíadas eram lidos, algumas partes, no, no…, na aula! Os Lusíadas tinha o célebre episódio da ilha dos amores [? – Claro]
A ilha dos amores, na altura, para quem tinha catorze anos, era, não digo
pornografia, mas era uma coisa altamente erótica, não é? Bom… E, portanto,
sempre que ele tentava que um de nós lesse a ilha dos amores, o riso na sala…,
ele não conseguia controlar o riso. Até que ele descobriu um colega, que eu,
aliás, gostaria de voltar a encontrar aqui, que era o tipo mais sério da turma.
[FA – Mais sério…] Mais sério. O homem mais sério da turma. Que engraçado! Com
catorze anos, era o homem mais sério…, veio a ser juiz e fazer uma carreira de
juiz — eu não vou dizer o nome — e fazer uma carreira de juiz até ao Supremo.
Pronto. Penso que neste momento está retirado. E então era o único que
conseguia ler a ilha dos amores sem
se rir. E, não se rindo ele, a turma toda não se ria. [? – Não se ria…] Pronto.
E ele escolheu-o a ele, para ler a ilha dos amores.
JCL
— Mas, é curioso, há bocado falámos na questão do neo-realismo, nas questões
políticas, o humor começa precisamente na política, nas narrativas breves do
Vergílio Ferreira [JG – Hum, hum…] em que entra o humor e, depois,
posteriormente, no Estrela Polar, numa
edição que ele alterou para uma reedição, mas que, aí, evidentemente, a
política, sempre, em ligação do progresso, a verve sarcástica, sempre as
questões das ditaduras que estão sempre presentes na obra, duma forma muito
satírica, na obra do Vergílio Ferreira, que depois volta a Nítido Nulo, aí, sim, para mim eu considero que é o romance que
abre esse espaço às manifestações do cómico, sobretudo à ironia… E o humor
negro. O Vergílio Ferreira tinha muito humor negro [JG – O humor negro,
exactamente…]
AM
— Ainda dentro deste capítulo da mordacidade, ali, nalguns livros, ele tem
várias exclamações e interrogações e tem, por exemplo, comentários como este:
«Que pedante!, Que chata!, Que ideia!, Venha a polícia!, Ah, sim? Já te chegou
também a mosca?» — De maneira, ainda tem lá num livro, perante o, digamos
assim, o foguetório que o livro encerrava, ele põe esse comentário: «Que
foguetório! Parece a sala dos troféus do Benfica.»
FA
— Ah… Sempre em letra miudinha. Isso…, pegando numa expressão que é muito
beirã, também, significava que ele era nessa acutilância, nessa observação
muito fina, miudinho ou não, ou era sempre em nome de uma grandeza que ele ia a
esse detalhe…
AM
— Eu penso que era em nome também de uma grandeza. É evidente porque ele lia
muito. A maior parte dos livros estão anotados, como o Jorge, aqui, sabe bem,
que é aquele que melhor conhece aquela sala que está ali. O detalhe, está tudo
anotado ou na folha, na primeira página, chamemos-lhe assim, e mais tarde em
cada uma das citações que lhe merecem um destaque, por exemplo, estou-me a
recordar dum, alguém escreveu Fulano de tal, que era um escritor, deu a volta
ao mundo, e ele anotou: «Mas não viu nada.»
FA
— Ora, junta-se agora à conversa o Professor Hélder Godinho, bom dia! Quando
entrou na sala, estávamos presos aqui à letra miudinha de Vergílio Ferreira,
tínhamos vindo da sala Vergílio Ferreira, onde essa letra miudinha foi anotada
na conversa com a directora da biblioteca… Esta letra, Hélder Godinho, diz-nos
alguma coisa da alegada meticulosidade de Vergílio Ferreira?
HG
— Sim, diz. Eu acho que... e, aliás, alguns grafólogos com quem falei acham que
a letra do Vergílio Ferreira é rigorosamente indicativa do que ele era. De
facto, era alguém extremamente minucioso, sobretudo dum grande rigor de
pensamento e com muita imaginação, portanto, esse rigor de pensamento era
compensado com muita imaginação, que notamos também nalguns aspectos das
letras, que sobem, etc.
FA
— Que estão, aliás, aqui, amplificadas diante dos nossos olhos neste fundo de
cenário do auditório da biblioteca. É mais uma chamada importante destes dias,
Luís Tadeu, para as marcas [LT – as marcas de Vergílio Ferreira], substantivas
de Vergílio Ferreira, não é?
LT
— Exactamente. Esta biblioteca, como aqui há pouco foi dito pelo Dr. Alípio de
Melo, a ele que muito se deve e em bom momento e a altura certa… E de facto é
um espaço que nós queremos que seja o mais possível ainda usufruir não só pelo
Jorge Costa Lopes, mas por outros estudiosos que, de facto, têm muito material
para trabalhar.
FA
— Para trabalhar. Há pouco falei em clareira do bosque, a propósito de uma
outra situação, mas esta, verdadeiramente, é que é a sua clareira do bosque,
Jorge Costa Lopes!?
JCL
— Exactamente. Eu costumo dizer, nós temos aqui à vontade se calhar trabalho
para dez, vinte teses, de mestrado, doutoramento…, com certeza que há muito que
trabalhar, aqui, o Vergílio Ferreira era — há bocado começámos o programa, «Vou
escrever, vou ler, vou pensar». Faltou aí, se calhar, «Vou ouvir música», não
é?, mas na verdade… [(FA – Ou vou pintar), (LT – vou sempre acompanhado pela
música…)], pela música, exactamente, mas…, na verdade o Vergílio Ferreira
escreveu e lia muito e tem essa particularidade que era, dialogava na margem da
página, portanto [FA – com as obras que visitava], dialogava com os seus
autores, e anotou profusamente, na verdade, um conjunto de obras que por
exemplo é preciso a gente perceber muitas das vezes as várias faces, as várias
facetas da sua obra e, digamos, a evolução que teve, chamemos assim, nas
leituras que fez, não é? Portanto, é importante …….. Há bocado, falámos da
evolução ou da transferência do neo-realismo para o romance existencial… Ora,
para percebermos isso, temos aqui o Dostoievski, temos aqui o Malraux, temos
aqui o Sartre, profusamente anotados, e ajudam-nos a compreender a leitura que o
Vergílio Ferreira fez desses autores, essenciais.
FA
— Ou seja, José Gameiro, são diálogos de um homem, que, muitas vezes gostava de
estar sozinho.
JG
— Gostava, e há uma faceta dele que é pouco falada, que era, ele foi professor,
toda a vida, não, mas foi professor muitos anos, e quando se fala de Vergílio
Ferreira esquece-se muito esse aspecto. Ele aparece como escritor. E ele era um
professor heterodoxo; eu devo explicar o contexto, ele, Évora eu não conheci,
mas o Camões era na altura o liceu, um dos liceus de referência de Lisboa, com
o Pedro Nunes. Era dirigido por um homem, chamado Sérvulo Correia, que era um
homem de uma dureza extrema…, extrema…, extrema. Não havia dia nenhum que o
Sérvulo Correia não corresse algumas turmas, lendo, ele próprio, as suspensões
dos alunos, que eram diárias, pronto… Para vos dar uma ideia, a partir do
quinto ano, tínhamos que andar de fato e gravata. Isto passava-se em sessenta
e… pouco, não é? O Vergílio Ferreira era um homem que tinha uma relação com o
Sérvulo Correia cordata, mas, quando era preciso, opunha-se ao Sérvulo Correia.
E eu vou contar dois tipos de coisas que significam isso. A primeira é que ele
era um professor heterodoxo, na medida em que ele dizia: «Eu tenho que vos dar
o programa — Isto passava-se nos anos 60, não se passava agora—, eu tenho que
vos dar o programa, mas eu sobretudo quero que vocês leiam.» [Hum…] Bom. E, portanto,
ele punha-nos, às vezes, a ler excertos, nunca a obra dele, nunca a obra dele [FA
– Nunca teve essa…], nunca a obra dele, nunca, nunca. Eu depois explico como é
que a obra dele aparece na minha relação com ele. Mas, nunca a obra dele. Havia
autores clássicos, que ele dava, punha-nos a ler, reunia-nos em pequenos grupos
dentro da sala, ou seja, ele desarrumava as cadeiras…, as carteiras e punha-nos
a ler em grupo e depois discutia connosco a obra. Isto, na altura, era
completamente revolucionário.
FA
— Hélder Godinho, ele era um professor heterodoxo, porque era um heterodoxo?
HG
— Sim, mas não só, porque ele era um professor que foi marcante para mim, e
suponho que para todos os que fomos alunos dele [JG – Também foi no Camões?]. Foi
no Camões, exactamente. Porque ele não dava as aulas, by the book, segundo a boa maneira pedagógica. Mas, justamente, ele
sentia o grupo. E dialogava com o grupo de uma forma espantosa, no sentido em
que conseguia interessar os alunos pelos aspectos culturais do que estava a…
JG
— Uma disciplina que para nós era uma grande seca, desculpe interrompê-lo… Para
muitos de nós era uma grande seca, que era o Português.
HG
— No meu caso, [JG – No seu caso, talvez não…] foi o grego clássico, e ele
conseguia, além de ensinar a língua, conseguia abrir todo o ensino para a
cultura grega e, depois, para a importância que ela teve na cultura ocidental…
E, portanto, ia sempre, ao mesmo tempo que ensinava a língua de forma eficaz,
porque, entre seis, três tiveram dezanove, ao mesmo tempo que ensinava a língua
de forma eficaz, ele ensinava a cultura e obrigava-nos a pensar a cultura. [JG
– Exactamente.]
EP
— Eu, sem ter sido aluno do Vergílio Ferreira, mas sobre isto, talvez pudesse
acrescentar o seguinte, que me parece significativo. Na tal conversa, que
enquanto jovem nos meus dezasseis anos tive, na tal entrevista que fiz com
ele…, há na forma como ele fala comigo um lado pedagógico muito evidente, ou
seja, ele nunca se esquece que está a falar com um jovem de dezasseis anos,
aluno do liceu, mas ao mesmo tempo um total respeito por mim, enquanto
interlocutor daquele momento, ou seja, ele por estar a falar com um jovem de
dezasseis anos, ele não abreviou as ideias, não simplificou, nada [FA – não
facilitou], não deturpou os conceitos não facilitou coisa nenhuma. Ou seja, não
nos menorizou. Respeitou-me, enquanto jovem estudante que, não sendo aluno
dele, era um jovem estudante que estava a falar com ele, eu senti-me
respeitado, senti-me que ele estava a falar comigo, quase de igual para igual. E
isso, enfim, não tendo sido aluno dele, mas julgo que isso dirá muito dele
enquanto professor e, lamentavelmente, muitos professores não têm isso e, sobretudo
hoje, enquanto [JCL – Não é por acaso] enquanto pai de jovens alunos do ensino
secundário, noto que muitos professores não têm esse respeito pelo aluno que o
Vergílio Ferreira pareceu-me que tinha.
JCL
— Não é por acaso que o Almeida Faria, o célebre episódio, que foi aluno do
Vergílio Ferreira em Évora e quando o Vergílio Ferreira se transfere para o
liceu Camões o Álvaro Faria segue o professor [JG – o Almeida Faria], o Almeida
Faria…
FA
— Segue o professor. Ora, e pedindo-lhes continuando a conversar caminhando que
é uma coisa de que ele muito gostava e na primeira hora falámos disso, quererei
mais adiante ouvir do Professor Hélder Godinho a evocação dos muitos passeios
que terão dado, em Fontanelas, presumo, mas, é altura de regressar a Melo, por
instantes, porque ali tão perto do breve jardim já aqui invocado, o breve jardim
onde se mostram pujantes nesta altura, ainda os vi ontem, um limoeiro e uma
laranjeira, está Dona Augusta, que conhece muito bem a casa amarela.
DA
— Conheço. Vivi lá mais de vinte e tal anos.
FA
— Viveu lá mais de vinte e tal anos.
DA
— Vivi. Vivi lá. Já fui eu que tratei da irmã do Vergílio Ferreira, ela morreu
em 85 e, depois, continuei com o cunhado do Vergílio Ferreira, que era afilhado
do casamento. E vivi lá até ele morrer, que morreu em 2005.
FA
— Quer dizer que, muitas vezes, o viu chegar a esta casa, conversou com ele…
DA
— Sim, sim, muito. Era uma pessoa muito acessível. Gostava de uma boa anedota,
gostava de, coisas simples, ele era simples.
FA
— Gostava de uma boa anedota?
DA
— Gostava. Ele gostava e gostava de as contar, também, assim…
FA
— E contou-lhe muitas anedotas…
DA
— Sim. Em conjunto, quando estávamos todos, que ele não fazia questão de que eu
fosse a empregada ou não fosse. Era uma pessoa muito correcta. A gente à tarde,
depois de jantar dava um passeio até, por exemplo, lá acima ao mirante, a gente
chama o mirante. E ele, às vezes, chamava a atenção ao Sr. professor, que era o
cunhado, «Ó Zé, olhe, olhe aquela rã, lá ao fundo.»
FA—
Aquela rã?
DA
— Rã. Olhe o barulho da rã. Olhe aquele ladrar, lá ao fundo. — Quer dizer, era
assim muito… Ele gostava dos animais. E gostava muito daqui de Melo, da coisa…,
só que as pessoas, aqui, têm aquela ideia errada dele, que não falava a
ninguém, que era, assim…, ele dizia-me: «Mas, eu não falo, não falo porque não
conheço. [FA – ia lá nos pensamentos dele, não é?] Sim. E não conheço as
pessoas.» Ele, quando aqui vinha, tinha aquelas pessoas por quem perguntava.
Era o Sr. Fernandinho Churro, que a gente chamava, o Paula, que ele dizia que
tinha feito a primeira comunhão com ele, e uma senhora chamada a Dona Rosa
Fareleiro, isso era obrigatório a visita a essa senhora. [FA – Porquê?] Creio
que ajudou a criar ou coisa assim do género. Eu não entendi bem. Mas, pelo que
eu me apercebo, ajudou na criação dele. Ele, ele tinha uma certa amizade, uma amizade
mesmo grande, vinha sempre para cá e perguntava sempre por ela [FA – Rosa
Fareleiro!?] era, chamava-se Rosa Fareleiro.
FA—
Esse Fareleiro é alcunha?
DA
—Sim, sim…
FA
— Aqui usa-se muito pôr alcunhas nas pessoas?…
DA
— Ele usava muito isso nos livros. Eu não li, porque eram difíceis de ler.
Alguns, pelo menos… E digo, até mesmo a Dona Regina. Era uma pessoa…, muito,
eram pessoas acessíveis. O que é, ele era, assim…, quem o visse, dizia que ele que
era muito sisudo…, assim muito…, mas, não. Ele, em casa, era uma pessoa
acessível. Ele tinha que dar aqueles passeios que ele tinha nos próprios
livros, que… ele tinha que lá ir visitar, tinha que ir ver aqueles sítios todos
que vêm no livro, nos livros dele, ele tinha que fazer essas visitas. Eu
lembro-me dum episódio, que eu nem tinha, nem sequer sabia dessa conversa, um
dia, «Ó Zé», ele assim para o cunhado, «Ó Zé, foi aqui que a minha mãe disse, a
minha mãe desmai…, ia desmaiando, e a minha avó disse: — Já arranjaste outra
desgraça!»
FA
— A desgraça era ele!
DA
— Era ele!… Ali ao fundo, quando iam para a igreja ia a ver a tal , a casa da
tal Rosa Fareleiro…
FA
— Ele ia à missa, aqui, não?
DA
— Não. Não, não. Ele à missa, não. Não ia. Ele dizia: «A Regina, agora, nem me liga.
Agora, meteu-se nas catratólicas, pronto.» [FA – Nas quê?] Catratólicas. [FA – Catratólicas?]
É, dizia isso, mas mais de resto não, ele à missa não ia, mas também não era
pessoa que se ouvisse dizer mal, da igreja ou disto…, não. Tinha a crença dele,
pronto…, é como tudo…
FA
— Mas, aquela casa. Qual era o espaço preferido dele dentro da casa? Ele vinha
para o quintal muito ou ficava lá fechado?
DA
— Não. Ele…, também gostava de andar no quintal, mas era uma pessoa assim um
bocadinho fechada. Assim…, fechada!? Ele gostava de estar a folhear um livro ou
a ver isto. Mas não era assim pessoa para… Gostava de sair, sim. É, como tinha
aqueles sítios religiosamente coisa para ele ir visitar. Mas não era assim
pessoa para andar na rua.
FA
— E agora, a senhora passa aqui neste largo que tem no chão os nomes dos livros
dele [DA – lembro-me muito dele] e olha para aquela casa, em que é que pensa?
DA
— Olhe, penso em tudo. Em tudo o que…, coiso… Ainda tenho a chave da casa,
ainda vou ver lá se lá há água, se lá cai a chuva, porque os pássaros, com o
palhiço, dão cabo… da… da… enchem tudo de palhiço. E outras vezes é o meu filho
que vai lá tirar o palhiço ao sobrado, para ver se, mas aquilo é
constantemente. Tenho a chave de casa.
FA
— Nesse caso, posso dizer que a senhora é uma guardiã daquela casa!?
DA
— Sim. Vou tendo, eu já não posso muito. Tenho que esperar que o meu filho
venha cá, para lá ir, porque ele é que pode subir as escadarias para cima, para
o andar de cima, para coisa, pode mais do que eu, e então, para lá irmos dar
uma volta, a ver das chuvas, pelo menos.
FA
– Quando lá vai, sente a presença de Vergílio Ferreira, ainda?
DA
— Costumo, costumo, às vezes, imaginar as pessoas que me eram chegadas, não é?,
lá, sentadas no sofá, a rir e a falar e conversar e ele também presente; muitas
vezes, estava presente.
FA
— Muitas vezes estava presente… Isto nos pode levar à ausência que se faz
presença, um tema recorrente em parte da obra de Vergílio e é aqui que ela se
faz presença, agora, nesta casa amarela, e nuns tantos lugares de um roteiro
que nos desafia sempre. Podemos ir pelos livros aos lugares de Vergílio, a
Évora, com Aparição, à Guarda,
referida como Penalva em Estrela Polar,
a Coimbra, em vários livros, desde O
Caminho Fica Longe a Para Sempre,
ele disse, afinal, Jorge Costa Lopes, «todo o meu mundo vai desaguar nos meus
livros». Nem mais.
JCL
— Sem dúvida. E, sobretudo, na verdade, a aldeia eterna, ele passou dez anos
naquela aldeia, depois, saiu para precisamente o Fundão, para o seminário do
Fundão, onde passou seis anos de seminário, Fundão, que é um espaço disfórico,
as sombras estão lá, porque, claro, um espaço de clausura... Depois, esteve na
Guarda, Évora e, na verdade, depois a tal questão do mar, de que falámos, que é
importante. O Vergílio Ferreira tem uma característica, é uma situação
interessante, que diz, a determinada altura, ele diz: «Quando for para Lisboa —
isto, quando estava em Évora, não é? —, quando for para Lisboa, levo a
província comigo e instalo-me nela.» Portanto…
FA
— Ele nunca foi lisboeta, nem de empréstimo, não?
JCL
— Ele tinha um diferendo, ali, nitidamente…, com…
EP
— Toda a vida dele desagua nos livros, mas, a obra dele não é uma
autobiografia, quer dizer, é uma recriação literária do muito do que ele viveu
e isso de alguma forma se calhar um espaço de liberdade, que as pessoas nem
sempre encontram na sua vida, nos seus constrangimentos do dia-a-dia, mas ao
fazer a recriação literária dos fenómenos [JCL – Sim, sim…, isso é ficção,
exactamente…, o princípio da ficção, não é?], ele libertava-se na escrita que
fazia, não é?
FA
— Aqui vão os peripatéticos. Até onde iam dar os vossos passeios em Fontanelas,
Hélder Godinho?
HG
— Não eram muito grandes, porque o Vergílio Ferreira não gostava muito de
andar. Conversávamos, sobretudo, em casa dele, às vezes, à lareira, quando o
tempo o justificava e eram conversas extremamente interessantes, sobre o estado
da literatura portuguesa, o estado do pensamento ocidental, a crise e tudo
isso, eram sobretudo os grandes temas dele. Gostaria de acrescentar, em relação
a isso que vai tudo desaguar aos livros, que ele disse algumas vezes e escreveu
que sempre viveu pela imaginação [? – um espaço de recriação], um espaço de
recriação, sim. E toda a, ele procurava sempre pensar o que estava a acontecer,
a ele e aos outros e à literatura e ao pensamento, para encontrar um sentido.
Muitas coisas eram extremamente intrigantes, que não eram, não estava à espera,
mas, procurava sempre encontrar um sentido. E integrá-las num sentido.
FA
— Um sentido para a humanidade, ele o diz, assim. [HG – Para a humanidade,
exactamente] E também a palavra essencial. Era como se andasse com duas
candeias; [? – exacto] uma, procurando esse sentido e outra, procurando a
palavra que o pudesse dizer. Há palavras mais marcantes, na obra de Vergílio,
eu, assim de repente, diria, pensando em livros precisos, Cântico Final, por exemplo, ele usa quase página após página, a
palavra espectral. Eu creio que ela, essa é uma das palavras, que a todo o
momento iluminam a escrita dele.
JCL
— Estrela Polar, Estrela Polar. Ele vê [FA – Estelar, estelar], Em Estrela Polar, ele vê [FA – Sim] na nova
cidade uma memória espectral.
HG
— Mas, há um aspecto importante, por exemplo, em Para Sempre, que é o livro em que a personagem se casa com uma
mulher que é o mais representativo dessa presença ausente, porque fala pouco e
o silêncio é o que está do lado da presença ausente, porque as palavras não a
podem dizer nem à verdade que lhe corresponde e, curiosamente, há uma palavra
que ele liga à palavra essencial, que é quando na noite de núpcias, ele diz que
a ama e ela diz que também o ama. E, depois, vem toda uma página e meia,
falando da, portanto, dando a entender que essa é a palavra essencial que
finalmente foi dita. Portanto, por isso é que eu costumo dizer que toda a obra
do Vergílio Ferreira é uma longa história de amor, porque é a procura de uma
face, para além das faces, e de uma verdade, para além das verdades. E
justamente a palavra, há evidentemente palavras recorrentes e que são
balizadoras do universo imaginário do Vergílio Ferreira, mas, é extremamente
curioso como no Para Sempre, essa
palavra o amor, o dizer o amor acaba por ser o mais perto que os seres humanos
podem chegar da palavra essencial.
FA
— A palavra essencial.
JCL
— A própria aparição, não é?, a própria palavra aparição, o cântico à vida, não
é!?, o Vergílio Ferreira é um cântico à vida, também toda a obra, há aquela
frase da Aparição que eu considero
também essencial e com certeza também o Professor Hélder Godinho, não é?,
«justificar a vida, em face da inverosimilhança da morte». Portanto, isto está
sempre presente na obra do Vergílio Ferreira.
FA
— Vida e morte, outro e eu, há sempre esse duelo íntimo… [JCL – Exactamente]
HG
– Mas aí entramos no problema das razões, que são apenas o aspecto exterior
duma razão interior, aquele lugar profundo, onde não há explicações possíveis,
que é o mundo original, o nosso mundo original, que tem a ver com o mundo
original quase cósmico.
FA
— Ou, como ele diria, José Gameiro, o que é impossível explicar.
JG
— Eu citei, há pouco, que ele neste artigo da angústia diz exactamente isso,
não é?, que é, aquilo que aparece escrito não tem nada, não é o caso, mas tem
pouco a ver já com aquilo que é sentido. Portanto, a dificuldade de transpor
para o papel, pelo escritor, seja ele…, no caso do Vergílio Ferreira, aquilo
que verdadeiramente sente. E isto é completamente verdade.
FA
— Ora, já aqui fomos percebendo como é que cada um dos presentes conheceu
Vergílio Ferreira. Um dia, o leitor Francisco José Viegas conheceu também
Vergílio Ferreira e, para o conseguir, tratou simplesmente de lhe escrever.
FJV
— Sim, sim, sim. Basicamente, eu tinha acabado de ler Invocação ao Meu Corpo, tinha ficado estarrecido, não me conseguia
explicar o que é que eu estava a sentir, não con…, quer dizer, eu conseguia
explicar uma certa ligação intelectual, uma certa afinidade, ou melhor, uma
grande afinidade intelectual, mas havia mais qualquer coisa. E eu escrevi isso,
olhe, eu não consigo explicar isto, mas eu gostava muito de o conhecer, porque,
de todos os autores que eu posso querer conhecer, o senhor é aquele que me pode
dar mais respostas, não é? E ele respondeu-me e depois acabámos por nos
conhecer, acabámos por marcar um encontro, por nos conhecer e acabámos,
inclusivamente, por ir a Évora a reconhecer os locais de Aparição. Eu, depois, entrevistei-o, várias vezes, ao longo de,
enfim, ao longo da vida, ao longo desses anos. Isto passou-se em 80, em 81,
portanto, e eu acho que era, enfim, eu, confesso que me servi muito de Vergílio
Ferreira, justamente porque aproveitei a obra de Vergílio Ferreira, e
aproveitei aquela sen…, há uma palavra com que, eu acho que terminam muitos
livros do Vergílio Ferreira, que é plenitude. A plenitude não é uma sensação
definitiva, nem tranquila, mas, é uma sensação em que tanto o adverso, como
aquilo que nos comove, estão lado a lado e esta plenitude era aquilo que eu
bebi, digamos, que eu me servi, de Vergílio Ferreira. Os livros estão lá para
isso…, para nós nos servirmos deles.
FA
— Ah, isso servem… Francisco, isso leva-me a uma outra…, as palavras de
Vergílio Ferreira. Há palavras que ele usa, incessantemente. Lembra-se,
indepen…, espectral. Uma palavra que está em tantos, há alguns romances, o Cântico Final, por exemplo, encontrei, há
dias, estive a relê-lo e encontrei em quase página após página, a palavra
«espectral», a palavra «alarmado».
FJV
— Eu, quer dizer, para mim, as palavras…
FA
— Estelar…
FJV
— … estelar…, são, eu acho que são as palavras que derivam, aquelas que nós
fixamos, são aquelas que derivam dessa dimensão lírica que ele dava aos
romances. Quando nós, a própria designação «Estrela Polar», «Alegria Breve»,
«Cântico Final», quer dizer, «Até ao Fim», «Em Nome da Terra»», «Para Sempre»,
só isso já são…, eu acho que, embora sejam expressões, palavras compósitas [se
as juntássemos…] se juntássemos seria uma única palavra.
FA
— Ou um poema…
FJV
— Um poema, não é?, seriam sempre, têm…, exactamente um poema; essa é que é
essa…
FA
— São um registo poético, aliás, uma escrita da língua.
FJV
— Ah, sim, sim, sim, eu acho, eu, quer dizer, a marca fundamental da ficção de
Vergílio Ferreira é a poesia. A própria noção de romance do Vergílio Ferreira
não tem a ver com a noção clássica e tolstoiana de romance, que é a de contar
uma história, não é!?, a da saga. Não há uma noção de saga, de narrativa
burguesa do século XIX.
FA
— A ideia, vai à tal história do romance de ideias.
FJV
— Do romance de ideias e não só. O romance não serve para contar uma história,
mas para revelar…uma, não é? E esta noção de revelação é que é marcante no Vergílio,
por isso é que nós lemos e de facto há momentos em que nós dizemos: «Isto é um
quadro poético», não é? Essa noção de quadro poético é que a mim parece-me
definitiva na obra dele.
FA
— Estou a ver, a imaginar-vos em Évora, ambos, numa espécie de romagem, também,
de professores, em Évora.
FJV
— Sim, sim, sim. Cada um com a sua geração. Vergílio, que foi professor lá.
Muito engraçado! Há uma história, uma história muito engraçada, que se conta de
Vergílio Ferreira. Ele saía à noite, depois daquelas, da… da…, naquela altura,
a mulher de Vergílio Ferreira, a Dr.ª Regina ainda não estava em Évora, ela
depois foi para Évora como professora, também; de Desenho, e o Vergílio
Ferreira saiu à noite, não é?, e encontrou o reitor, o reitor da época, não é?,
tinha outra solenidade…., e então o reitor perguntou ao Vergílio Ferreira: «Então,
sr. dr., como é que se está a dar, cá na nossa cidade?» E o Vergílio respondeu:
«Ah, muito bem, muito obrigado.» E o reitor disse: «Não se preocupe. Os
primeiros quinze anos é que custam.» Eu acho isto duma violência, não é?
FA
— Eu diria manhosa…, aliás, esse reitor, em Aparição…,
há-de ser um o que o avisa: o melhor é ir andando.
FJV
— Aliás, foi o que ele fez. Ele, o Vergílio Ferreira dizia, disse-me, quando me
contou a história, disse, «justamente naquele dia eu comecei a pensar que tinha
que sair de Évora», não é? Isto não tinha a ver com o carácter claustrofóbico
de Évora, tinha a ver com o carácter claustrofóbico da própria vida, em geral,
porque depois, eu lembro, quando nós voltámos a Évora, quando se ia a Évora,
Vergílio Ferreira tinha na mesma esse, essa, sensa…, essa comoção que sentia
quando contemplava a cidade. Do alto de S. Bento, quando contemplava a mesma
cidade que vem nas primeiras linhas da Carta
ao Futuro, não é? : Évora é uma
cidade branca como uma ermida.
FA
— E é curioso que sendo esse um tempo de sufocação, é também um tempo, presumo,
não andará muito distante, em que ele, faz agulha no seu compromisso político,
se podemos dizer assim., mas esse romance ainda tem ali um compromisso social
ou pelo menos uma atenção muito aguda.
FJV
— Eu penso que o compromisso social está presente, não é?, quer dizer, nós não
podemos, nós não podemos ignorá-lo e está presente de várias formas, como, por
exemplo, no Para Sempre, que é um
romance que tem um nível a certa altura cómico sobre a política, tem uma, a
presença da política é cómica, muitas vezes. Mas, quer dizer, há obviamente um
compromisso social. Há na Aparição,
há nos romances anteriores, há em certos romances posteriores, há……., no Na Tua Face, no Para Sempre, também…
FA
— Nos do PREC…
FJV
— Nos do PREC, exactamente, nesses livros, não, justamente, o Nítido Nulo, o Signo Sinal, mas, sobretudo, eu acho, no Rápida, a Sombra, que é um romance que eu gosto de revisitar;
porque eu costumo dizer que no Para
Sempre, no Rápida, a Sombra,
estão presentes as linhas que se seguem, não é?, as linhas que se seguem, que é
aquela melancolia desavinda com tudo, porque é de facto uma melancolia desavinda
com tudo, não está de acordo com nada; não rima, não é? Aquela melancolia não
rima, não é?, e por outro lado a observação da cacofonia política, não é? Eu
acho que isto tem a ver também com uma outra coisa. A partir…, que é aquilo que
define a Aparição, que é o desejo de
liberdade e que marca também todos os outros livros. Quer dizer, falar destes
livros de Vergílio Ferreira, dos grandes livros de Vergílio Ferreira, é falar
do desejo de liberdade. Que acaba a marcar todos, quer dizer, a Alegria Breve, que acaba a marcar o Cântico Final, porque é o desejo da
libertação, como também o de Aparição,
como também o final, não é?, quando ele pressente que o fim está próximo…
FA
— É o desiderato, então, é aquilo que ele procura.
FJV — É a liberdade; a liberdade.
FA — Isso merece um póster. E vêm aí pósteres.
FJV
— Vêm. Tem. A Quetzal vai editar dois pósteres. Há um póster comemorativo, que será,
enfim, de massa. E depois um póster-surpresa, porque nós convidámos fotógrafos,
a escolher um livro de Vergílio Ferreira, cada livro tem uma fotografia e,
portanto, os nossos leitores serão convidados a escolher o seu póster; mas,
aquilo que eu acho importante nisto, Fernando, se me permites, só mesmo para
terminar, é isto, é que pela primeira vez desde que Vergílio Ferreira é autor,
é a primeira vez que toda a obra está disponível, mesmo em vida.
FA
— Ora, isto não é coisa pouca. O que é que Gouveia vai fazer, ao longo dos
próximos tempos, porque isto não acaba hoje à tarde ou à noite, para marcar o
centenário, presidente Luís Tadeu?
LT
— Como o Fernando diz e muito bem, nós começámos agora, dia 28, estes três dias
têm sido dias de intensa prática vergiliana, digamos assim, e como o Fernando
disse, não acaba aqui, muito pelo contrário, é um ano inteiro a falarmos do
homem e do autor Vergílio Ferreira, vamos ter um simpósio internacional muito
importante, em Maio, mas vamos ter todos os meses praticamente actividades ou
eventos relacionados com o centenário do Vergílio Ferreira, dando a conhecer
também facetas da sua vida, como, por exemplo, as suas paixões: a música, o
teatro, o cinema, a dança, enfim, são estes pormenores que ajudam também a
conhecer o homem e dessa forma facilitam também os novos leitores que todos
queremos que adiram à sua obra, mais facilmente entrem nela, porque o homem que
está lá tem que ser conhecido, também.
FA
— O homem multidisciplinar, que, como lembrou o Francisco José Viegas, ainda
agora, usava muitas vezes a palavra «plenitude» e aí há casos em que ela
termina mesmo romances de Vergílio Ferreira. Esta ideia de plenitude é também
muito marcante, Hélder Godinho!?
HG
— Sim, é muito marcante, porque essa ideia de plenitude tem a ver com o
encontro desse mundo original. E justamente é esse mundo que está para lá das
palavras, onde haveria a palavra essencial e onde a aparição dá de algum modo
acesso. Porque a aparição é um conceito extremamente interessante, que, para
além de todas as influências literárias que conduziram a isso, tem a ver com o
aparecimento de nós a nós próprios, porque nós aparecemos a nós próprios quando
entramos no mundo original de nós próprios. Esse mundo onde está a memória de
raízes e onde tudo o que é importante acontece e as razões são apenas uma
manifestação exterior desse mundo original.
EP
— Ora, não há um lado de utopia associado a essa plenitude, como, por exemplo,
no Cântico Final, ele usa um verso do
Álvaro de Campos, que se refere às coisas imp…, Nossa Senhora das Coisas
Impossíveis que procuramos em vão. Esta busca das coisas impossíveis é outra
forma de descrever essa plenitude, tem também o lado utópico…
HG
— Eu não vejo utopia nisso. Eu vejo, apenas [EP – é possível…], não vejo
utopia, porque a utopia tem outro contexto cultural. Ali, é apenas encontrar
esse mundo original que é realmente um mundo que permite justificar aquilo que
somos, aquilo que fazemos e aquilo que pensamos.
FA
— Ora, Hélder Godinho, enquanto ao longo do ano a Câmara de Gouveia tem, como
percebemos, planificado uma série de iniciativas, o grupo que o senhor
coordena, olhando com agudeza, com muita finura, o espólio vergiliano, vai
continuar a trabalhar e a surpreender-nos. É um filão, não digo inesgotável,
mas é um filão ainda consistente.
HG
— É um filão que durará muitas décadas ou séculos, consoante o número de
pessoas que estiver a trabalhar, porque não são só as anotações nos livros dos
outros, ele fazia uma leitura contínua dos seus próprios livros, dos seus
escritos e chegava a fazer várias fotocópias de um mesmo artigo e ia corrigindo
de forma diferente em cada uma delas.
FA
— Ele dizia-nos que o caminho fica sempre longe, o caminho é longo, ora, vale a
pena falar, Jorge Costa Lopes, do livro O
Caminho Fica Longe, o primeiro, de Vergílio, agora reeditado, aqui em
Gouveia, foi um livro que não escapou às malhas da Censura, não falámos disso,
isso terá feito com que ele permanecesse numa espécie de limbo, ele, este
livro, entenda-se, e que verdadeiramente tenha nascido só agora, resgatado ao
esquecimento?
JCL
— Sim, assim parece; na verdade foi um livro apreendido pela Censura e que nunca
mais foi reeditado. O Vergílio Ferreira também não tinha, ou pelo menos, a
determinada altura, na Conta-Corrente
ele fala isso, que tem a intenção de o rever, pensar numa reedição, mas depois,
entretanto, mais à frente diz, afinal, não. Pronto. E assim terá ficado, é um
livro importante, porque estão na verdade um conjunto de temáticas e de
aspectos essenciais da obra posterior do Vergílio Ferreira. É um livro um pouco
também datado, mas tem essa característica de se encontrar ali quase em pedra o
que vai ser o Vergílio Ferreira daí para a frente, inclusive, como eu costumo
dizer, é a verdade a questão de ele sair no Cartas
a Sandra, também em Coimbra, e esse também ser em Coimbra, a tal circularidade
da narrativa.
FA
— O caminho é longo e fica longe, Alípio de Melo, paremos aqui um pouco à
esquina, o senhor está à espera de Vergílio Ferreira, ele vem do largo da Praça
de S. Pedro, onde um busto foi recolocado agora. Há um momento muito
impressivo, da sua espera, do seu encontro, do seu reencontro sucessivo com Vergílio
Ferreira neste lugar que queira evocar agora, brevemente?
AM
— É evidente que sim; já frequentei mais a sala Vergílio Ferreira do que agora,
mas de qualquer maneira essa espera existe sempre e estou sempre, pois, como se
costuma dizer, ansioso pela sua vinda.
FA
— Ansioso é a palavra-chave, aqui, para passar a chave final da conversa ao
José Gameiro. Ansioso.
JG
— Eu não ia falar de ansiedade, ia falar da solidariedade que ele tinha. Muito
rapidamente: na altura, nós no quarto ou quinto ano do liceu tínhamos uma
brincadeira na sala de aula, que era, quando tínhamos ginástica, antes do
professor entrar, atirávamos as coisas de ginástica uns aos outros; sapatos,
etc., era uma brincadeira clássica. E há um colega, um colega do Vergílio
Ferreira, professor, que leva com um sapato de ginástica na cara. Bom. Nós já
tínhamos um espírito solidário grande e portanto quando ele entra na sala e
pergunta quem foi levantámo-nos cinco, cinco, de que eu era um deles. Bom… O
reitor decidiu expulsar-nos os cinco, expulsar-nos do liceu Camões. Isto
passava-se no quinto ano. O Vergílio Ferreira, juntamente com o Fernando Belo,
que na altura era padre, hoje não padre, mas na altura era, provocou um conselho
escolar. Recusou e discutiu a questão e conseguiu que nós não fôssemos expulsos
do liceu e pura e simplesmente mudássemos de turma. E portanto eu passei da
turma A para a turma B que nós chamávamos na altura, e peço desculpa aos meus
colegas de quem eu sou amigo hoje em dia, a turma dos maricas.
FA
— Foi uma consequência de firmeza nas atitudes.
JG
— Foi solidária e firme.
FA — Ora aí está uma bela maneira de evocarmos este homem, quase no fim da
emissão Terra-a-Terra de hoje. Agora, pego neste livro, Escrever, um
livro que devemos muito a Hélder Godinho. É um dos que veio comigo para Gouveia
e dele me socorro para as despedidas:
Vão sendo horas, talvez amanhã já não acordes, ou, depois de amanhã, mas
não te ponhas a perguntar porquê ou para quê.
Esta tarde, às três, neste mesmo auditório
da biblioteca municipal, há um colóquio sobre Vergílio Ferreira, e à noite, no
Teatro-Cine de Gouveia, o actor Pompeu José apresenta um monólogo EM MEMÓRIA OU A VIDA
INTEIRA DENTRO DE MIM. É uma co-produção entre o Trigo Limpo ACERT e os Gambozinos e Peobardos,
da Associação Cultural da Vela, perto da Guarda. Joaquim Pedro colheu, ontem,
no palco do teatro, uma das falas de Pompeu, o actor Pompeu José; com ela
mantemos aceso o lume, à sombra da montanha, até ao fim**.
E estava eu nisto, quando recebo um telegrama de meu pai. Aliás, não dele,
de minha mãe, mas sobre ele. «Chega no comboio das três.» Já dias antes, uma
carta. Anda muito mal— dizia. Uma tosse e o peito esquisito; fomos ao médico.
Tirou-lhe radiografias. Nessa manhã, tinha levado o Miguel à escola, como de
costume, e às três horas fui esperar o meu pai. Era um comboio comprido. Havia
muita gente. Descobri-o na última carruagem, descendo com dificuldade, depois
de já tudo ter saído. Trazia uma pequena mala e um grande envelope com as
radiografias. E a carta. Era dirigida ao Professor Mendes de Sousa. Estava
fechada. E a consulta? Às quatro. Tenho pressa de chegar e, todavia, não tenho.
E mal transpomos o portão do instituto, um corredor coalhado de gente.
Agrupavam-se, aqui e ali, sentados em bancos, e tinham todos à volta do pescoço
um colar de algodão em rama com uma nódoa sangrenta. Passado pouco tempo, o meu
pai estava no grupo com um colar de algodão em rama manchado de sangue em redor
do pescoço. Até que um dia no instituto entenderam que o deviam mandar para
casa. Ia para morrer. Tinha agora uma fita de nastro à volta do pescoço e uma
tampinha de pano a tapar-lhe o buraco. Quis acompanhá-lo à aldeia; recusou
furiosamente, como se eu estivesse a insultá-lo. Estaria? Telegrafei para o
irem esperar, esperaram-no. Telegrafaram-me pouco tempo depois para o ir
enterrar. Enterrei-o. Era inverno. Devia ser inverno, tenho frio na alma e na
memória, mas estou bem. Cansado, até às raízes de mim, mas estou bem. A vida
inteira, dentro de mim.
— Final do Terra-a-Terra de hoje, em directo de Gouveia, na biblioteca
municipal, num programa integrado nas comemorações do centenário do nascimento
de Vergílio Ferreira, equipa TSF em Gouveia, Fernando Alves, Amadeu Araújo e
Joaquim Pedro.
Nota de trabalho: as palavras referidas do artigo de Vergílio Ferreira na Colóquio,
revista de artes e letras, n.º 16, 1961, páginas 50-53, podem ler-se no
parágrafo seguinte:
Pessoa distingue em arte
um sentir «verdadeiro» de um sentir «efectivo», sendo que o «verdadeiro» é
apenas um sentir original ou talvez uma original expressão. Mas é falso que um
poeta inferior sinta sempre por um «caderno de encargos», porque não há sentir
por encargo. Quem sente efectivamente mas estreitamente o diz por um «caderno»,
não sente no «fingimento», na transposição artística, que é onde o sentir para
a arte afinal tem importância. Ele falha então onde a arte começa — e nós
sabêmo-lo. E não simplifiquemos, aliás, um problema de «sinceridade» para um
sentir efectivo, ainda que «convencional». Um sentir efectivo só se julgará
insincero, quando não é já esse sentir. Se ele é insincero, é-o em relação a outra
sinceridade, talvez mais duradoura ou mais profunda. Acaso não teve graça
uma anedota de que rimos, para logo depois a acharmos estúpida? Mentimos então
quando rimos? O actor pode ser sincero ou insincero nesse plano, nessa dimensão
— a da representação dramática — conquanto saiba que está a representar. Um
artista é sincero, se sente dentro do «fingimento», que é a dimensão da arte;
como é insincero, se não sente, se segue um «caderno de encargos» apenas por
segui-lo; não o sendo, porém, se ao encargo o reinventar, e tal encargo vier
pois dele.
*
* Não é bem assim o título do diário, como se percebe logo a seguir, nas
palavras do mesmo jornalista, que ao falar em contra a corrente pensou quase ao
mesmo tempo em Conta-Corrente.