quarta-feira, 3 de abril de 2013

Acordo Ortográfico

Deixo três depoimentos recentes, um, de V. G.M, saído hoje, no Público.


Vieira queimado
em...“esfinge”

Debate Obras do padre António Vieira
Vasco Graça Moura
O padre António Vieira nunca foi  “imperador da língua portuguesa”. Essa é apenasuma das muitas mistificações engendradas por Fernando Pessoa, que nem sequer percebeu que a língua não é um império mas sim a principal base identitária de uma comunidade humana. De resto, se fosse realmente reconhecido como “imperador” e o seu império fosse deste mundo, a sua obra não poderia deixar de ser estudada, e muito a sério, nas nossas escolas...
Vieira foi, sim, um dos maiores escritores de todos os tempos da nossa língua, num quadro barroco em que soube fazê-la extravasar dos cânones e dos códigos parenéticos, teológicos, humanitários, oratórios, retóricos, argumentativos, políticos, diplomáticos, epistolográficos, proféticos, sociais e tantos outros em que a utilizava, assim como foi um mestre na maneira e no virtuosismo com que tão destramente se servia dela (e a servia) para a interpretação literal, analógica, tropológica e anagógica da palavra divina e das suas caleidoscópicas refracções.
Nessa razão de ser da sua longa vida, soube implantar uma dimensão fundamental que podemos considerar da ordem do estético, e que é expressiva e dinâmica, capaz de conjugar razão, emoção, erudição, conhecimento e mito, aproximação do real e flagrância, suspense e teatralidade, convicção e persuasão, chegando a estádios de um vigor estilístico, de uma energia verbal e de uma beleza retórica incomparáveis. Engendrou assim uma “estética pragmática”, posta ao serviço de Deus e apostada na conversão e salvação das almas e hoje, mesmo para aqueles a quem não seja o reino de Cristo neste e deste mundo aquilo que propriamente mais interessa, a preocupação de Vieira com o homem e o seu destino e a sua orientação espiritual da vida prática dos cristãos a quem se dirigia para a dimensão da escatologia em nome da qual falava, proporcionam-nos páginas em que o verdadeiro prazer da leitura se combina com a descoberta de análises extraordinárias da natureza e do comportamento humanos.
Quando penso em Vieira, penso em Miguel Ângelo. E ocorre-me também que, um pouco à maneira do Deus bíblico, Vieira nos modela a nossa própria humanidade na argila da língua que falamos. Ele soube utilizar a palavra, enquanto massa estruturante e fluidez sonora e semântica em movimento, na genialidade de um pensamento dialéctico que é também encenação constantemente transfigurada em acção, numa distribuição de volumes, equilíbrios, pontos de fuga, tensões e resoluções, em que nos restitui também um mundo enquanto arquitectura verbal e representação metafísica.


Bastante estudado por especialistas, mas pouco lido pelo grande público e nunca editado em toda a extensão de uma obra que promete continuar a revelar inéditos e variantes numa profusão desvairada de
arquivos nacionais e estrangeiros, Vieira vê chegada a hora do projecto mais ambicioso de edição de tudo quanto escreveu e que envolve, como principais entidades responsáveis pela saída dos trinta volumes projectados, a Universidade de Lisboa, a Santa Casa da Misericórdia e o Círculo de Leitores, além de muitos outros apoios e colaborações. Os objectivos desse projecto, na sua reunião de cartas e documentos
portugueses e latinos, do sermonário, da obra italiana, da obra profética, da intervenção política e diplomática, dos dispersos, de tudo o mais que importa dar a lume e até dos apócrifos, estão bem explicitados nos textos introdutórios e oxalá possam ser levados a cabo com as metodologias e os calendários previstos. Nas páginas de apresentação
notabilíssimas que já pude ler, seja das Cartasseja da Chave dos Profetas, não só encontrei percursos fascinantes, quase “de romance”, da história das ideias, como apanhei também fi os condutores preciosos que guiam o leitor num labirinto emaranhado de conceitos teológicos e situações históricas de que hoje estamos muito distantes. A escrita dos apresentadores é rigorosa, sabedora eficaz. E consegue nunca aborrecer o leitor apesar da por vezes derrotante rarefacção da matéria. Ficamos a compreender melhor o mundo, este mundo, o de Vieira e o nosso, o que vem dele até nós, o que
passará além de nós…
Esta magna edição é de saudar entusiasticamente, mas tem um grave problema. Digo isto com a reserva de que não sou especialista, mas sim o tal leitor comum a quem a edição expressamente se dirige (p. 33) e é apenas nessa qualidade que falo. 
O grave problema está em que a edição pretende pautar-se pela norma ortográfica em vigor e afinal aplica uma norma que não está em vigor nem nunca esteve, e que é a do Acordo Ortográfico. Sabe-se bem que esta questão tem feito correr rios de tinta. Mas entidades tão científica e economicamente poderosas
como as mencionadas, tão responsáveis económica, cultural e socialmente, pela missão que desempenham, dispondo de estruturas institucionais que comportam faculdades, departamentos, conselhos científicos, sei lá que mais, não poderiam e não deveriam, antes de se lançarem a este portentoso empreendimento, pedir pareceres científicos e jurídicos abalizados na matéria?
Viverão num mundo nefelibata? Ignoram a polémica e os problemas? Não sabem que há hoje três grafias divergentes a serem aplicadas no mundo da língua portuguesa? Quem tem medo do Estado de direito? Quem tem medo da aplicação da Lei? Quem tem a desvergonha de, num caso destes, evitar fazê-lo, sem um escrúpulo, sem um prurido de consciência, sem uma forma, ao menos esboçada, de se isentar de responsabilidades pela opção tomada? Que autoridade científica, jurídica oucultural assiste aos directores da edição para falarem, a p. 33 (vol. Cartas), numa “actualização linguística no quadro das normas vigentes do português”? Ou à dr.ª Aida Lemos para aí afirmar, a p. 35, que as grafias foram “normalizadas segunda a norma em vigor”? Se o tivessem sido, nuncapoderia ser aplicado o AO porque ele não constitui norma vigente...
Vieira e a sua obra incomparável saem desfigurados dessa irresponsabilidade de lesa-cultura que mancha indelevelmente um trabalho tão digno e de tão grande envergadura e que se fi ca a dever a tantos nomes importantes, em que sobressaem os dos directores da iniciativa, professores José Eduardo Franco e Pedro Calafate. Estive na sessão de apresentação pública e de lançamento desse projecto ainda não há muitas semanas e regozijei-me ex corde com ele, como português, como escritor, como cidadão com algumas responsabilidades na cultura. Confesso que nunca me ocorreu que as coisas iam ser assim.
E também não me passou pela cabeça que alguns problemas de revisão tornariam relativamente caricata a apresentação, sendo de esperar que outros não ocorram no texto do grande jesuíta. Aponto dois, ambos do Tomo I/Volume I: a pp. 27/28 escreve-se “apesar de Teófilo Braga (...) ter despeitado a qualidade literária dos textos oratórios de Vieira (...)”. Não me parece que o verbo “despeitar” como transitivo faça grande sentido nesta acepção.
Mas há pior: diz-se, a p. 25, que “os estudantes de Coimbra,     instigados pela Inquisição, o tinham queimado em esfinge na praça de universidade, como herege e inimigo da pátria”. Em esfinge??? Ora aproveitem lá a esfinge para mudar de revisor, guilhotinar estes três volumes inimigos da pátria e tratar da edição de Vieira como ela merece ser tratada.
Escritor

Ver, aqui, José Eduardo Agualusa, em 20 de Março, p. p.

O Acordo Ortográfico e a lusofonia
Renato Epifânio
20/03/2013 - 00:00
Há algo que assaz me incomoda em toda esta querela em torno do Acordo Ortográfico (AO): um certo sentimento antilusófono que emerge em alguns dos argumentos aduzidos, como se fosse possível confundir a questão (bem vasta) da lusofonia com esta questão do AO, questão bem específica, por mais fracturante que seja. Essa confusão, deliberada nalguns casos, involuntária noutros, encontro-a, devo dizê-lo, tanto nalguns apoiantes como nalguns detractores do AO: nos primeiros, quando fazem do AO uma questão, quando não "a questão", fundamental da lusofonia, como se não fosse possível defender a lusofonia sem apoiar o AO; nos segundos, quando, a respeito do AO, falam do "lusofonês" ou da "abrasileirização" da língua portuguesa.
Gostaria, pois, de começar por desfazer essa confusão: o AO não é a questão fundamental da lusofonia e é possível defender a lusofonia sem apoiar o AO. Conheço, de resto, várias pessoas que têm essa posição, desde logo no universo do MIL: Movimento Internacional Lusófono, a que presido. Numa sondagem que realizámos junto dos nossos aderentes, verificou-se que esta era mesmo, de longe, a questão mais fracturante - muitas delas defendem, sem qualquer reserva, o reforço dos laços entre os países e regiões do espaço da lusofonia no plano cultura, social, económico e político, considerando que, para tal desiderato, o AO não é fundamental, sendo mesmo contraproducente.
Pela minha parte, defendendo em teoria os benefícios de um AO, devo reconhecer que este AO a que se chegou, após o longo e sinuoso processo negocial que escusado será aqui recordar, tem causado muitos danos à lusofonia que tanto defendo. Não vou aqui entrar na argumentação mais técnica - sendo certo que sou particularmente sensível, por formação (filosófica) à questão da filologia ("sem filologia não há filosofia"), não é menos certo que a língua portuguesa, antes deste AO, já estava, em muitos casos, longe da raiz filológica. Para mais, tenho, até por razões académicas, uma visão histórica da língua: leio frequentemente textos antigos e constato que a língua já mudou (muito) mais antes do que agora com este AO. Dito isto, não posso deixar de reconhecer que este AO tem recomendações que a mim me causam as maiores reservas.
Sem orgulho nisso, devo até confessar que, quando tenho de escrever segundo este AO uso o seguinte expediente: escrevo a primeira versão sem me preocupar com o assunto; na revisão, sempre que tenho de "corrigir" algum vocábulo, arranjo um sinónimo, nem que para isso tenha de alterar a construção frásica. É daqueles casos em que me sinto mais dividido. Racionalmente, considero que um AO seria benéfico - não apenas no interior do espaço lusófono (para o ensino da língua, desde logo), mas também para fora: na ONU, por exemplo, como noutros fóruns internacionais, os documentos para divulgar são, por regra, traduzidos para português e brasileiro, como se fossem duas línguas independentes. Seria a meu ver benéfico que isso deixasse de acontecer - mas o problema é que com este AO isso não fica devidamente resolvido, como se sabe (dada a profusão das duplas grafias).
Tudo seria mais fácil se a história fosse um jogo de computador, em que pudéssemos voltar atrás sempre que damos um passo em falso. Nesta questão, o grande passo em falso foi dado, como é sabido, por Portugal, em 1911, quando, unilateralmente, avançou para uma reforma ortográfica sem o acordo do Brasil. Já então "a língua não era só nossa, mas também nossa". De então para cá, essa fissura ortográfica foi-se alargando - a ponto de, actualmente, ser talvez impossível um AO aceitável para ambas as partes. Mas talvez fosse possível dar ainda um último passo nesse sentido: face a todas as hesitações, agora até do Brasil, deveríamos sentar-nos a uma mesa e, sem qualquer pressão mediática, repensar este AO desde a raiz. Sem recriminações nem preconceitos - a esse respeito, gostaria também de dizer que os defensores deste AO que conheço (falo apenas daqueles que conheço) são pessoas genuinamente bem-intencionadas - não os "vendidos a interesses comerciais" como, por vezes, são apresentados.
Estou, de resto, cada vez mais convencido de que, mesmo que este AO entre em vigor, mais cedo ou mais tarde ele terá de ser revisto. Talvez agora isso não seja possível, dado o impasse a que se chegou. Mas isso, fatalmente, irá acontecer. Nem que seja para, em última instância, reconhecer que nenhum AO será aceitável para ambas as partes. Não será por isso que a lusofonia morrerá. Como é cada vez mais reconhecido, o maior erro estratégico de Portugal nestas últimas décadas foi ter desprezado os laços com os restantes países e regiões do espaço lusófono - isso fragilizou-nos, em muito, no plano global e, em particular, no seio da União Europeia, onde estamos, cada vez mais, numa posição subalterna. O impasse em que agora estamos é, de resto, bem maior do que o impasse do AO. Não podemos sair do euro e, ficando no euro, pior cada vez mais estaremos. Sem ser uma panaceia, longe disso, a convergência lusófona é a via que, a médio-longo prazo, melhor garante o nosso futuro. Com ou sem AO.
Presidente do MIL - Movimento Internacional Lusófono. www.movimentolusofono.org


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