Acordo Ortográfico
Deixo três depoimentos recentes, um, de V. G.M, saído hoje, no Público.
Vieira
queimado
em...“esfinge”
Debate Obras do padre António Vieira
Vasco Graça Moura
O padre António Vieira nunca foi “imperador da língua portuguesa”.
Essa é apenasuma
das muitas mistificações engendradas
por Fernando Pessoa,
que nem sequer percebeu
que a língua não é
um império mas sim a principal
base identitária de uma
comunidade humana. De
resto, se fosse realmente reconhecido como
“imperador” e o seu império fosse deste
mundo, a sua obra não poderia deixar
de ser estudada, e muito a sério, nas nossas
escolas...
Vieira foi, sim, um dos maiores escritores de
todos os tempos da nossa língua, num quadro
barroco em que soube fazê-la extravasar
dos cânones e dos códigos parenéticos,
teológicos, humanitários, oratórios, retóricos, argumentativos, políticos,
diplomáticos, epistolográficos, proféticos,
sociais e tantos outros em que a
utilizava, assim como foi um mestre na maneira
e no virtuosismo com que tão destramente
se servia dela (e a servia) para
a interpretação literal, analógica, tropológica e anagógica da palavra divina e das
suas caleidoscópicas refracções.
Nessa razão de ser da sua longa vida,
soube implantar uma dimensão fundamental
que podemos considerar da
ordem do estético, e que é expressiva e
dinâmica, capaz de conjugar razão, emoção,
erudição, conhecimento e mito, aproximação
do real e flagrância, suspense e
teatralidade, convicção e persuasão, chegando
a estádios de um vigor estilístico, de
uma energia verbal e de uma beleza retórica
incomparáveis. Engendrou assim uma
“estética pragmática”, posta ao serviço
de Deus e apostada na conversão e
salvação das almas e hoje, mesmo para
aqueles a quem não seja o reino de
Cristo neste e deste mundo aquilo que
propriamente mais interessa, a preocupação
de Vieira com o homem e o seu
destino e a sua orientação espiritual da
vida prática dos cristãos a quem se dirigia
para a dimensão da escatologia em nome
da qual falava, proporcionam-nos páginas
em que o verdadeiro prazer da leitura
se combina com a descoberta de análises extraordinárias da natureza e do comportamento humanos.
Quando
penso em Vieira, penso em Miguel
Ângelo. E ocorre-me também que, um
pouco à maneira do Deus bíblico, Vieira nos modela a nossa própria humanidade na
argila da língua que falamos. Ele soube
utilizar a palavra, enquanto massa estruturante
e fluidez sonora e semântica em
movimento, na genialidade de um pensamento dialéctico
que é também encenação constantemente transfigurada em acção, numa distribuição de volumes, equilíbrios, pontos de fuga, tensões e resoluções, em que nos restitui também um mundo enquanto arquitectura verbal e representação metafísica.
Bastante
estudado por especialistas, mas pouco
lido pelo grande público e nunca editado
em toda a extensão de uma obra que
promete continuar a revelar inéditos e
variantes numa profusão desvairada de
arquivos
nacionais e estrangeiros, Vieira vê chegada
a hora do projecto mais ambicioso de
edição de tudo quanto escreveu e que
envolve, como principais entidades responsáveis
pela saída dos trinta volumes projectados,
a Universidade de Lisboa, a
Santa Casa da Misericórdia
e o Círculo
de Leitores, além
de muitos outros
apoios e colaborações. Os
objectivos desse
projecto, na
sua reunião de cartas
e documentos
portugueses e
latinos, do sermonário,
da obra
italiana, da obra
profética, da intervenção
política e diplomática, dos dispersos,
de tudo o
mais que importa dar
a lume e até dos apócrifos,
estão bem explicitados
nos textos
introdutórios e
oxalá possam ser levados
a cabo com as
metodologias e
os calendários previstos.
Nas páginas
de apresentação
notabilíssimas que
já pude ler, seja
das Cartas, seja
da Chave dos Profetas, não só
encontrei percursos fascinantes,
quase “de romance”, da história das
ideias, como apanhei também fi os condutores
preciosos que guiam o leitor num
labirinto emaranhado de conceitos teológicos
e situações históricas de que hoje estamos muito distantes. A escrita dos
apresentadores é rigorosa, sabedora eficaz. E consegue nunca aborrecer o leitor apesar
da por vezes derrotante rarefacção da
matéria. Ficamos a compreender melhor
o mundo, este mundo, o de Vieira e
o nosso, o que vem dele até nós, o que
passará
além de nós…
Esta
magna edição é de saudar entusiasticamente,
mas tem um grave problema. Digo isto com a reserva de que não sou
especialista, mas sim o tal leitor comum a quem a edição expressamente se dirige (p. 33) e é apenas nessa qualidade que falo.
O grave problema está em que a edição pretende pautar-se pela norma ortográfica em vigor e afinal aplica uma norma que não está em vigor nem nunca esteve, e que é a do Acordo Ortográfico. Sabe-se bem que esta questão tem feito correr rios de tinta. Mas entidades tão científica e economicamente poderosas
como as mencionadas, tão responsáveis económica, cultural e socialmente, pela missão
que desempenham, dispondo de estruturas institucionais que comportam faculdades, departamentos, conselhos científicos, sei lá que mais, não poderiam e não deveriam, antes de se lançarem a este portentoso empreendimento, pedir pareceres científicos e jurídicos abalizados na matéria?
Viverão num mundo nefelibata? Ignoram a polémica e os problemas? Não sabem que há hoje três grafias divergentes a serem aplicadas no mundo da língua portuguesa? Quem tem medo do Estado de direito? Quem tem medo da aplicação da Lei? Quem tem a desvergonha de, num caso destes, evitar fazê-lo, sem um escrúpulo, sem um prurido de consciência, sem uma forma, ao menos esboçada, de se isentar de responsabilidades pela opção tomada? Que autoridade científica, jurídica oucultural assiste aos directores da edição para falarem, a p. 33 (vol. Cartas), numa “actualização linguística no quadro das normas vigentes do português”? Ou à dr.ª Aida Lemos para aí afirmar, a p. 35, que as grafias foram “normalizadas segunda a norma em vigor”? Se o tivessem sido, nuncapoderia ser aplicado o AO porque ele não constitui norma vigente...
Vieira e a sua obra incomparável saem desfigurados dessa irresponsabilidade de lesa-cultura que mancha indelevelmente um trabalho tão digno e de tão grande envergadura e que se fi ca a dever a tantos nomes importantes, em que sobressaem os dos directores da iniciativa, professores José Eduardo Franco e Pedro Calafate. Estive na sessão de apresentação pública e de lançamento desse projecto ainda não há muitas semanas e regozijei-me ex corde com ele, como português, como escritor, como cidadão com algumas responsabilidades na cultura. Confesso que nunca me ocorreu que as coisas iam ser assim.
E também não me passou pela cabeça que alguns problemas de revisão tornariam relativamente caricata a apresentação, sendo de esperar que outros não ocorram no texto do grande jesuíta. Aponto dois, ambos do Tomo I/Volume I: a pp. 27/28 escreve-se “apesar de Teófilo Braga (...) ter despeitado a qualidade literária dos textos oratórios de Vieira (...)”. Não me parece que o verbo “despeitar” como transitivo faça grande sentido nesta acepção.
Mas há pior: diz-se, a p. 25, que “os estudantes de Coimbra, instigados pela Inquisição, o tinham queimado em esfinge na praça de universidade, como herege e inimigo da pátria”. Em esfinge??? Ora aproveitem lá a esfinge para mudar de revisor, guilhotinar estes três volumes inimigos da pátria e tratar da edição de Vieira como ela merece ser tratada.
Escritor
Escritor
O Acordo Ortográfico e a
lusofonia
Renato
Epifânio
20/03/2013 -
00:00
Há algo que
assaz me incomoda em toda esta querela em torno do Acordo Ortográfico (AO): um
certo sentimento antilusófono que emerge em alguns dos argumentos aduzidos,
como se fosse possível confundir a questão (bem vasta) da lusofonia com esta
questão do AO, questão bem específica, por mais fracturante que seja. Essa
confusão, deliberada nalguns casos, involuntária noutros, encontro-a, devo
dizê-lo, tanto nalguns apoiantes como nalguns detractores do AO: nos primeiros,
quando fazem do AO uma questão, quando não "a questão", fundamental
da lusofonia, como se não fosse possível defender a lusofonia sem apoiar o AO;
nos segundos, quando, a respeito do AO, falam do "lusofonês" ou da
"abrasileirização" da língua portuguesa.
Gostaria,
pois, de começar por desfazer essa confusão: o AO não é a questão fundamental
da lusofonia e é possível defender a lusofonia sem apoiar o AO. Conheço, de
resto, várias pessoas que têm essa posição, desde logo no universo do MIL:
Movimento Internacional Lusófono, a que presido. Numa sondagem que realizámos
junto dos nossos aderentes, verificou-se que esta era mesmo, de longe, a
questão mais fracturante - muitas delas defendem, sem qualquer reserva, o
reforço dos laços entre os países e regiões do espaço da lusofonia no plano
cultura, social, económico e político, considerando que, para tal desiderato, o
AO não é fundamental, sendo mesmo contraproducente.
Pela minha
parte, defendendo em teoria os benefícios de um AO, devo reconhecer que este AO
a que se chegou, após o longo e sinuoso processo negocial que escusado será
aqui recordar, tem causado muitos danos à lusofonia que tanto defendo. Não vou
aqui entrar na argumentação mais técnica - sendo certo que sou particularmente
sensível, por formação (filosófica) à questão da filologia ("sem filologia
não há filosofia"), não é menos certo que a língua portuguesa, antes deste
AO, já estava, em muitos casos, longe da raiz filológica. Para mais, tenho, até
por razões académicas, uma visão histórica da língua: leio frequentemente
textos antigos e constato que a língua já mudou (muito) mais antes do que agora
com este AO. Dito isto, não posso deixar de reconhecer que este AO tem
recomendações que a mim me causam as maiores reservas.
Sem orgulho
nisso, devo até confessar que, quando tenho de escrever segundo este AO uso o
seguinte expediente: escrevo a primeira versão sem me preocupar com o assunto;
na revisão, sempre que tenho de "corrigir" algum vocábulo, arranjo um
sinónimo, nem que para isso tenha de alterar a construção frásica. É daqueles
casos em que me sinto mais dividido. Racionalmente, considero que um AO seria
benéfico - não apenas no interior do espaço lusófono (para o ensino da língua,
desde logo), mas também para fora: na ONU, por exemplo, como noutros fóruns
internacionais, os documentos para divulgar são, por regra, traduzidos para
português e brasileiro, como se fossem duas línguas independentes. Seria a meu
ver benéfico que isso deixasse de acontecer - mas o problema é que com este AO
isso não fica devidamente resolvido, como se sabe (dada a profusão das duplas
grafias).
Tudo seria
mais fácil se a história fosse um jogo de computador, em que pudéssemos voltar
atrás sempre que damos um passo em falso. Nesta questão, o grande passo em
falso foi dado, como é sabido, por Portugal, em 1911, quando, unilateralmente,
avançou para uma reforma ortográfica sem o acordo do Brasil. Já então "a
língua não era só nossa, mas também nossa". De então para cá, essa fissura
ortográfica foi-se alargando - a ponto de, actualmente, ser talvez impossível
um AO aceitável para ambas as partes. Mas talvez fosse possível dar ainda um
último passo nesse sentido: face a todas as hesitações, agora até do Brasil,
deveríamos sentar-nos a uma mesa e, sem qualquer pressão mediática, repensar
este AO desde a raiz. Sem recriminações nem preconceitos - a esse respeito,
gostaria também de dizer que os defensores deste AO que conheço (falo apenas
daqueles que conheço) são pessoas genuinamente bem-intencionadas - não os
"vendidos a interesses comerciais" como, por vezes, são apresentados.
Estou, de
resto, cada vez mais convencido de que, mesmo que este AO entre em vigor, mais
cedo ou mais tarde ele terá de ser revisto. Talvez agora isso não seja
possível, dado o impasse a que se chegou. Mas isso, fatalmente, irá acontecer.
Nem que seja para, em última instância, reconhecer que nenhum AO será aceitável
para ambas as partes. Não será por isso que a lusofonia morrerá. Como é cada
vez mais reconhecido, o maior erro estratégico de Portugal nestas últimas
décadas foi ter desprezado os laços com os restantes países e regiões do espaço
lusófono - isso fragilizou-nos, em muito, no plano global e, em particular, no
seio da União Europeia, onde estamos, cada vez mais, numa posição subalterna. O
impasse em que agora estamos é, de resto, bem maior do que o impasse do AO. Não
podemos sair do euro e, ficando no euro, pior cada vez mais estaremos. Sem ser
uma panaceia, longe disso, a convergência lusófona é a via que, a médio-longo
prazo, melhor garante o nosso futuro. Com ou sem AO.
Presidente
do MIL - Movimento Internacional Lusófono. www.movimentolusofono.org
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