Vergílio Ferreira
Tive sempre grande admiração por Vergílio Ferreira e conheci-o logo, se a memória não me falha, quando no verão de 1957 assisti a provas orais dos exames de admissão ao liceu. Numa delas, a Português, Vergílio deteve-se um pouco sobre um «que». Nada de desproporcionado, mas até hoje recordo a finura breve. Vim a apanhá-lo, numa vigilância à prova escrita de Grego e em duas provas orais que tive de fazer, como aluno externo, no Liceu de Camões. No Liceu Camões. A Português foi arguente e a Latim fazia parte do júri. Tinha uma maneira directa de nos pôr à vontade. Aquele pouco tempo de vivência escolar no Camões valeu como se tivesse sido discípulo dele em dois anos inteiros. Não é a mesma coisa, mas queria que fosse. A admiração já vinha do tempo do Liceu de Évora, também ajudada pelo que ia sabendo do ambiente escolar; da figura de intelectual dele, mais pelo meu irmão, e do que a minha irmã me contava da convivência nas aulas dela e das colegas com «a Regina», que era professora de Desenho. E, aí, as miúdas chegavam a saber qualquer coisa da vida deles, como seres normais que eram, se ela vinha bem ou mal disposta, se e porque...
Falta-me ler muito dele, romance e ensaio. Eis uma boa coisa que tenho de fazer, com todo o gosto, porque a amizade à pessoa, que não me conhece -- vamos supor que está vivo --, mantém-se.
Hoje, temos continuação da apresentação do Diário Inédito.
Diário que Vergílio Ferreira
escreveu para Regina Kasprzykowski
19 de Julho de 1944
Minha Gina: vou hoje começar um diário para ti. Já mais de uma vez tentei escrever um diário, mas fatalmente, ao fim de duas ou três sessões, sentia-me fatigado. A razão vinha de eu pensar em publicá-lo o que o tornava artificial e estreito. Assim, visto que o diário é só para ti, não vou seleccionar o que hei-de dizer-te nem preocupar-me demasiado com literatices. Não quero porém que ele fique chato, vazio de interesse, tanto mais que desejo aproveitá-lo como treino para as outras empresas literárias.
Tu sabes que um diário é sempre falso. Nós somos quase sempre falsos até mesmo quando pensamos, porque o pensar é já o desnudar-se de uma pessoa perante si mesma. Vê tu, por exemplo: não nos desculpamos a nós próprios dos nossos defeitos? Sabemos bem que os defeitos existem, são bem reais, puseram a marca viva de um ferro em brasa. E no entanto procuramos intrujar-nos. Como hei-de eu ser verdadeiro, inteiramente verdadeiro no que escrevo? Em todo o caso eu vou esforçar-me por te dizer a maior parte do que sinto, visto ser impossível dizer-te tudo. E quando outra coisa não consiga, ao menos obrigo-me a reflectir sobre o que à minha roda e dentro de mim se vai passando. Será isso um meio de combater a exterioridade que é, como sabes, a marca do inútil e do Sancho Pança.
(Diário ..., os dois 1.ºs &&)
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