Alcança quem não cansa
Ex-libris de
Aquilino
Hei-de morrer com a enxada na mão
Aquilino, no fim da entrevista a
Igrejas Caeiro
Em
15 de Abril deste ano, ouvi a voz de Aquilino, em algumas citações, no
documentário exibido na RTP 2, e fiquei encantado, é o termo. Também pela
surpresa de daquele homem rijo e decidido, o homem que foi e a imagem que
formei dele, sair uma voz, talvez fina, de tenor, um pouco nervosa e com pressa,
às vezes, de galgar, querer dizer já o que ainda não acabou de pensar. Imaginem o meu
contentamento, quando num blogue vim a descobrir a existência da gravação. Foi
em A NOSSA RÁDIO, a que fui levado por pesquisa na internet.
Aqui
dou a transcrição, na íntegra.
Entretanto,
continuo a ler Aquilino. Ainda há muito caminho a percorrer.
Pode
ouvir aqui a entrevista, emitida em 16 de Julho de 1957, mas o texto em papel,
virtual ou impresso, tem o seu lugar. Se alguém quiser, pode sugerir aperfeiçoamentos
ou apontar correcções. Não me foi fácil.
***
AQUILINO RIBEIRO
No programa de rádio «O Perfil de Um Artista», de
Igrejas Caeiro, 1957.
***
A Força das Coisas
Rosa Pomar e a história e estórias da lã, Marcelo Teixeira e a nova editora
Parsifal, com muitos dos autores de Contos Capitais, e Aquilino Ribeiro,
ouvi-lo 50 anos depois.
Primeira Emissão: 25 Mai 2013
Duração: 02h01m
Classificação:
Duração: 02h01m
Classificação:
Livros, autores e editores. Uma
celebração do gosto e da escrita
Sábado às 16h00
Sábado às 16h00
***
Pode ouvir aqui a entrevista.
As palavras de Igrejas Caeiro, introdutórias ao programa do dia, só há pouco as descobri, via facebook
da Fundação Aquilino Ribeiro, que partilhou o trabalho de Jerónimo Costa, de
25/9/2013. Ver aqui.
***
……………………………………………………………………………………………
[Um pouco de música de piano…]
[Voz de leitor.]
Rubicundo,
pesadão de farto, o estômago bem lastrado com lombo de vinha-de-alhos, padre
Jesuíno saiu a espairecer para a varanda que a aragem da serra brandamente
refrescava. Manjericos e craveiros floriam dentro de velhos potes, e tão
abertos, tão medrados, que do mainel trasbordava para a casa e sobre o pátio
uma onda álacre de primavera. Tarde de infinita benignidade — era nas vésperas
de Nossa Senhora de Maio, quando ela de andor ao céu aberto avista tudo verde
em redondo — ali apetecia gozá-la com cristianíssimo ripanço ao passo moroso da
digestão. Mas não tardou que argoladas fortes soassem à porta e Jesuíno, em
tamancos, as calças presas no abdómen por um negalho, camisa de estopa deixando
espreitar pelos bofes a pelúcia de cerdo à mistura com o alcobaça vermelho,
cigarro nos beiços, toda a sua pachorra eclesiástica mais rabugenta que cão
dormido, foi ver.
Era
a Feliciana, e enfadado rosnou:
—
Diabos te carreguem… esqueces sempre a chave!
—
Tem de ir prantar os exorcismos a esta desinfeliz — proferiu a ama em voz
cantada de dó. — O Demónio, que eu arrenego na morte e na vida, fez pouco dela!
Abriu
muito os olhos o abade e só então se apercebeu duma mocinha — corpo que acaba
de espigar na adolescência — que às mãos ambas cobria o rosto e soluçava.
Ao
primeiro lance se reconhecia que estiver nas garras duma fera. Dos cabelos
louros, uma trança desfeita para as costas era como um ramo de mimosa
amarfanhado, outra, descendo-lhe pelos peitos até varrer o chão, lembrava vara
florida a que se apoiasse. E, pelos rasgões do chambre, um seio branco,
rechonchudo, com mais vergonha que se o próprio Padre Santo António lhe
publicasse os segredos, mostrava o mamilo, tão rubro, tão jucundo como o
morango primeiro que pinta no morangal.
É um excerto do livro Andam Faunos pelos Bosques[1],
livro de Aquilino Ribeiro, que o acabou de escrever em 1926, romance
atravessado pelo divino e pelo belo, pelas superstições, por uma fina ironia
tão característica de Aquilino, e também característica esta descrição de um
país rural e da natureza que o escritor tão bem faz na sua obra. Nesta 2.ª-feira,
27 de Maio, passam 50 anos da morte de Aquilino Ribeiro, escritor a quem
chamavam o Mestre, homem gentil, de vida agitada, até politicamente. Salazar
considerava-o um inimigo do regime, mas elogiava-lhe a obra. Aquilino nasceu em
Carregal de Tabosa, concelho de Sernancelhe, na Beira Alta, em 1885. Morreu em
Lisboa, em 1963, passam nesta segunda-feira 50 anos. Aquilino chegou a ser
proposto para o Nobel da Literatura. Pelo escritor que conheceu o mundo e que
os portugueses homenageiam no Panteão Nacional; há muitas razões para ler
Aquilino, muitas razões físicas, mesmo, porque a obra, uma obra vasta, está na
sua grande maioria disponível. Nos últimos anos, a Bertrand tem vindo a
reeditar muito do que foi escrito por Aquilino Ribeiro; estão disponíveis nas
livrarias títulos como Terras do Demo,
A Casa Grande de Romarigães, as Arcas Encoiradas, o Romance da Raposa, este Andam
Faunos pelos Bosques, O Malhadinhas,
Quando os Lobos Uivam, Príncipes de Portugal, O Livro de Marianinha, Aldeia: Terra, Gente e Bichos, O Servo de Deus e A Casa Roubada, As Três
Mulheres de Sansão, Geografia
Sentimental, O
Galante Século XVIII, Um Escritor Confessa-se: alguns, dos muitos mais títulos, que
estão com nova edição; tem vindo a ser feito ao longo dos últimos três, quatro
anos, a chancela da Bertrand para a obra de Aquilino Ribeiro.
N’«A Força das Coisas» de hoje recupero
a vinda de Aquilino Ribeiro à rádio, foi no ano de 1957, programa «O Perfil de
Um Artista», de Igrejas Caeiro. Para ouvir agora, Aquilino Ribeiro, por ele
próprio.
***
I. C. — O seu nome é apenas Aquilino
Ribeiro?
A. R. — Bem, eu quando andei a estudar,
tinha também mais um outro apelido, mas nós devemos simplificar a nossa vida e
simplificar tudo o que nos diz respeito, parece que a…
I. C. — Os americanos até vão mais
longe, põem só iniciais, não é?
A. R. – É isso, é. Bem, eu chamava-me
Gomes, também. Cortei o Gomes, atirei o Gomes fora.
I. C. — (riso)
A. R. — Não sei se sabe que o Gualdino,
a propósito de um, de uma pessoa conhecida, escritor, que se chamava Francisco…
I. C. — Hum, hum…
A. R. — … e passou-se a chamar Fran, só,
cortou, atirou com o (o)«cisco» fora; o outro deu o cavaco, eh?
I. C. — Costuma festejar o seu
aniversário?
A. R. — Nunca, nunca; nem quero saber
que faço anos. Em todo o caso, às vezes, em minha casa lembram-se disso e minha
mulher tem, apresenta um pudim, com grande espanto meu, pergunto-lhe porquê…
I. C. — E umas velas para assoprar ou
não?
I. C. — Não, as velas é na Alemanha.
Você sabe, eu sou casado duas vezes, a minha primeira mulher, era alemã, é que
tinha sempre o cuidado de fazer, de acender as velas para o rapaz.
I. C. — Para ver se realmente todos
tinham fôlego ainda…
A. R. — Isso é que ela não viu.
I. C. — … correspondente à sua idade.
I. C. — Importa-se dizer a data do seu
nascimento?
A. R. — Absolutamente, nenhum.
I. C. — Pode ocultar o ano…
A. R. — Não, não, não; não, não, não,
senhor, não senhor.
Eu nasci em 1885. Foi o ano, foi o ano,
em 1885, foi o ano em que se casou o Camilo, se não estou em erro.
I. C. — Aí está o Camilo, presente… Donde
é natural?
A. R. — Bem, eu nasci no, nasci perto do
Távora, no concelho de Sernancelhe, uma aldeiazita…, pacata, pobre, em que
havia um convento, noutros tempos, como em todas as aldeias, que eram… que
eram…
I. C. — … aldeias notáveis.
A. R. — Não, notáveis, não; que eram,
que eram de, o solo era, era fértil.
I. C. — Ah, sim, sabiam escolher sempre…
A. R. — E tinham…
I. C. — … os lugares.
A. R. — Sabiam escolher os lugares. E
Era uma terra de castanheiros, eu nasci no meio dos castanheiros, na zona dos
castanheiros. Sabe que o castanheiro é uma(i)árvore bonita, uma árvore da força
e da beleza.
I. C. — Frondosa.
A. R. — Mais que frondosa, (o que é…) um
castanheiro é uma cidade. Uma cidade para os pássaros. Há o peto-real[2],
há a poupa, há o melro, que fazem o ninho nos castanheiros…, e depois…
I. C. — É um pequeno mundo.
A. R. — Absolutamente. É um perfeito, um
perfeito mundo. E depois as pastoras, que vêm com os seus tamanquinhos… britar
o ouriço e com os britadores especiais, tem muita graça, e com o seu
capuchinho, a apanhar as castanhas todas as manhãs, quando vem um bafo de
vento, e quando elas começam a rir!?, a castanha é uma coisa muito bonita… … o ouriço.
I. C. — A não ser quando é a outra castanha…
A. R. — Ah!...
I. C. — … aquela castanha… que nós
dizemos simbolicamente.
A. R. — Ah…, bem…
I. C. — Não é tão bonita.
A. R. — Também jogam, também jogam. Há
uns camponeses, são levados da breca. Deixe estar que…
IO. C. — Perde-se muitas vezes em
recordações de infância?
A. R. — […] sim, sim, sim. Sim. Eu
pergunto-me se…, todos nós nos perdemos. A(h)… O homem que vive, que vive muito
dentro de si…
I. C. — Tem vida interior.
A. R. — e o homem de, o homem como eu e
tal, portanto, tem uma vida bastante, tem… a sua vida interior é uma feira. Uma
feira e uma floresta e essa floresta, as árvores nasceram, como todas as
árvores que nasceram de pequeninas…
I. C. — Mas neste caso, domina a sua
própria floresta.
A. R. — Sim , sim, sim…, sim… Por lá
andamos, por lá nos perdemos… sempre… O mais agradável é…
I. C. — Agrada-lhe a ideia de saber que
o seu nome está indissoluvelmente ligado à história da literatura portuguesa e
que a sua obra se projecta largamente, para além da sua própria vida?
A. R. — Não sei nada disso, vê?! Tudo o
que nós fazemos hoje é um mistério. Nós não sabemos o que espera, qual é o
destino dum escritor português, dum escritor… dum escritor…
I. C — … duma forma geral.
A. R. — … de hoje, porque… … eu estou convencido que nós estamos numa
viragem do mundo; as formas de arte estão-se a transformar; a literatura de
hoje não será a literatura de amanhã, com certeza. E resta saber… Nós nunca
podemos ter uma confiança, nunca podemos jogar sobre a nossa própria carta.
Será, nem…, eu creio que nem o próprio Salomão jogava sobre si próprio. [ah…,
ah… (frouxo de riso, contido, mais visível nos olhos)]
I. C. — A sua infância foi propícia à
sua tendência literária?, ou, pelo contrário, resulta duma reacção contra o
ambiente em que viveu os seus primeiros anos?
A. R. — Bem, eu fui sempre rebelde, mais
ou menos. Uma rebeldia barata, … jogador… de
I. C. — Uma rebeldia que é do coração[3]?!
A. R. — Sim, talvez. A infância, do
rapaz que viveu na aldeia e nasceu na aldeia, jogando a bofetada com os outros e a
pedrada…
I. C. — A tal castanha…
A. R. — A tal castanha. E outras… E
todas essas…
I. C. — Mas, quer dizer, tudo isso
cimentou a sua personalidade.
A. R. — Sim… Eu creio que, creio tive a
lucrar com isso, com essa liberdade, um pouco bravia, um pouco sobre, feita da…
do contacto com…
I. C. — Com a natureza…
A. R. — Com a natureza, com o homem,
mesmo até com o próprio… com a vida em todas suas formas; no tempo dos pássaros
andando, correndo, tirando os ninhos, que é uma barbaridade; depois, logo que
comecei a ter uma certa idade, à caça e a cavalo, montava a cavalo num cavalo
sem, … sem…
I. C. — Essa tendência, essa curiosidade
pelos ninhos não será já uma curiosidade pelo próprio mistério da vida?
A. R. — Talvez…, talvez, talvez. A vida
apaixonou-me sob, sob todas as formas. Sobretudo essas formas insignificantes
que não me chamavam a atenção dos outros. Essas é que me preocupavam sempre; um
formigueiro, um ninho de um passarinho pequenino que há chamado a folecha[4]
que está com uns olhinhos pequeninos a olhar para nós, quando está em cima do
ninho…
I. C. — É a primeira vez que lhe ouço[5] o
nome.
A. R. — É. A folecha é…
I. C. — Algumas das recordações de infância
vieram a servir a sua obra literária?
A. R. — Sim, eu já escrevi dois livros
sobre, sobre a, sobre a minha infância, não, mas sobre o que eu imagino ser a
infância dum rapazinho colocado lá nas minh…
I. C. — … nas mesmas condições.
A. R. — … nas mesmas condições. Com
pequenas…
I. C. — … variantes.
A. R. — Com pequenas variantes,
evidentemente…
I. C. — Parece-lhe (que) as andanças por
terras estranhas tiveram larga influência a sua obra?
A. R. — Ah, certamente.
I. C. — Andou muito por França,
A. R. — Muito.
I. C. — muito pela Alemanha.
A. R.— Sim, bastante, bastante pela
França, por França e Alemanha, isso serviu-me de aferidor do meu trabalho e do
que eu faço. Se por um lado me deu confiança para umas certas coisas, para
outro, chamou-me…
I. C. — … a uma realidade.
A. R. — … chamou-me a uma realidade e à
necessidade de me melhorar.
I. C. — Com que idade chegou a França?
A. R. — Cheguei a França com…, foi em
mil e novecentos e…, foi em 1907/1908.
I. C. — Portanto, muito novo.
A. R. — Em 1908 eu tinha vinte e… ss…,
eu nasci em 1885, portanto, são 26 anos ou 27 ou 25.
I. C. — Sim, por aí.
A. R. — Ou menos ainda.
I. C. — Sentia-se estrangeiro em Paris,
ou considerava essa cidade capital e pátria dos intelectuais de todos os
países?
A. R. — Bem, de princípio, tive de me
aclimatar; mas, depois, era a cidade ideal para tudo, para tudo… o homem que
tenha um bocado de curiosidade e de instintos…
I. C. — E continua a ser.
A. R. — E continua a ser. É a cidade em
que eu, em que eu gostaria…
I. C. — … de viver?
A. R. — Sim, mesmo de viver, digamos. De
viver, sim. Lá vive-se uma vida independente. Um homem não se perde lá como
aqui. Parece que… Todavia, Paris é um deserto para um estrangeiro, não é?
I. C. — Ah, sim.
A. R. — E, todavia, um homem anda
absolutamente à vontade, em Paris. E não há, outra coisa que eu adoro em
Paris…, é que um homem tem um ideal qualquer, tem uma necessidade. Satisfá-la
sempre. É uma cidade estupenda.
I. C. — Tem sempre um companheiro que o
compreenda?
A. R. — Não, não é um companheiro. A
gente encontra, por exemplo, tem uma necessidade qualquer, precisa de um
quadro, precisa de um objecto, precisa de uma futilidade, encontra-a sempre; ou
num armazém ou numa casa de bric-à-brac…, em suma: eu nunca fui verdadeiramente
infeliz em Paris. Eu tenho sido infeliz em muitas partes, até mesmo aqui em
Lisboa, até mesmo lá na minha aldeia. Em Paris, nunca fui infeliz. E parece-me
que, se fosse um dia infeliz, no dia seguinte era feliz.
I. C. — Encontrava logo uma compensação.
A. R. — Bem, também é a idade, é uma
questão da idade. Eram os meus vinte e cinco anos, era a minha mocidade.
I. C. — O que é que sentiu, quando pela
primeira vez o trataram de Mestre?
A. R. — Ah, não senti coisa nenhuma.
Acho que é absurdo. Acho que o Mestre, devemos reservar essa palavra para os
sapateiros. [Ri.]
I. C. — Mas não há dúvida nenhuma que
hoje se diz sempre Mestre Aquilino.
A. R. — Nááá, isso é uma homenagem que
eu não mereço, mas eu sinto-me sempre confundido com essas homenagens e não as
peço e não as solicito, não.
I C. — A sua vida material foi sempre
assegurada pela literatura ou teve outras profissões?
A. R. — Não. Nunca tive outras
profissões. Eu já fui…, por outra, estou a mentir. Eu fui funcionário já do
Estado, eu fui conservador da Biblioteca Nacional e saí, depois, saí com a
revolução de Fevereiro, aaa… mas, o meu pai sempre me deixou uns benzitos ao
luar, não muito grandes; em suma, sempre davam para a merenda dum dia ou
doutro. E trabalhei sempre bastante; sabe, eu hoje tenho uma obra bastante
vasta. É o que me vai…
I. C. — Era exactamente o que lhe queria
perguntar. Que lhe parece o facto de ser dos raros escritores em Portugal, que
pode orgulhar-se de viver, de ser escritor?
A. R. — Não percebi a… o que…
I. C. — Que lhe parece este facto de ser
dos raros escritores em Portugal…
A. R. — Bem, eu, acho que sim…, que
Portugal… isto está-se, é uma terra que tem sete milhões, em sete milhões deve
haver quatro, cinco, cinco, cinco, cinco mil leitores, não é verdade?, capaz de
nos ajudar a esgotar uma obra, não é verdade? Eu tenho, de resto, alguns
trabalhos, como a Via Sinuosa e o Romance da Raposa, que estão muito para
lá dos, para os vinte mil, para aí… e tal.
I. C. — Pois é, mas nem todos os
escritores se podem orgulhar disso.
A. R. — Bem, isto também pode ser uma
questão de sorte, uma questão de…, eu nunca fui, nunca fui um, nunca fiz assim
uma propaganda desenfreada e desonesta. Eu nunca me fiz elogios a mim próprio;
mas, sim, eu, o público não é tão, o público, como é que eu devo dizer, não é
tão ingrato como se imagina; o público, quando se tem respeito por ele e pelas
suas convicções e não se engana, [I. C. — Corresponde.] ele corresponde-nos.
I. C. — Também é dos que perfilham a
opinião de que o século XIX foi mais brilhante, do ponto de vista literário, do
que está sendo a época actual?
A. R. — Talvez. O século XIX não tinha
estas admiráveis, estas admiráveis … admiráveis meios de comunicação, como seja
o avião, como seja o automóvel [I. C. — Mas distraem muito.] rápido. Sim.
Distraem o indivíduo. O homem vivia mais sobre si, no século XIX. O século XIX
era um século de maior pacatez, de maior in…
I. C. — Interioridade.
A. R. — … de maior interioridade…, se
pode, deve ser esse o termo. De forma que todas as formas de arte e de beleza,
não é verdade?, se aprazem mais nessa, nessa atmosfera [I. C. — Nesse
ambiente.] … do que neste.
I. C. — Quando aborda temas históricos,
subordina-se à verdade dos factos ou interpreta à sua maneira os
acontecimentos, colocando-se na posição de comentador, distanciado no tempo e
no espaço?
A. R. — Bem, eu de uma maneira geral
nunca falsifico a realidade histórica. Posso dar-lhe um bocadinho de…
I. C. — … de romance?
A. R. … de água tinta, só, mas nunca
falsifico a verdade. Eu considero que é uma indignidade, mesmo eu agora escrevi
um livro sobre Camilo, foi chamado O
Romance de Camilo, nunca alterei a verdade. Pode haver um bocadinho
de… …, como lhe acabo de dizer, de
cor, de cor, apenas, mas nunca me permiti alterar um acto na sua, no seu
dimensional, digamos.
I. C. — Ou, então, põe hipóteses, quando
não tem certezas.
A. R. — Ah, sim, sim, isso sim, isso
sim; a hipótese é sempre admissível, pois evidentemente. Nós, muitas vezes,
jogamos com a conjectura.
I. C. — Claro.
A. R. — Está certo.
I. C. — Parece-lhe que os intelectuais
têm influído na espantosa evolução do mundo?
A. R. — Eu acho que são, que são os
primeiros, os intelectuais, vistos na sua generalidade…
I. C. — São a vanguarda.
A. R. — … porque o intelectual não é
apenas o homem de letras; o intelectual é o homem, o sábio, o matemático, o
médico [I. C. — Claro!], não é verdade?
I. C. — Com certeza!
A. R. — Eu acho que são, eles é que têm
feito o mundo. Mas têm feito o mundo bem, o mundo bom e o mundo mau…
I. C. — Com certeza, com algumas fases.
A. R. — Porque os sábios agora têm
feito, evidentemente, eles arrependeram-se do que fizeram, esta [I. C. — -------.]
a obra, toda esta [I. C. — desintegração atómica], tudo isto é um pouco a obra
nefasta, o lado nefasto da ciência, que há-de acabar por redundar apenas em
proveito da humanidade, porque…, ou então isto…
I. C. — … acaba.
A. R. — seria o fim do mundo, seria o dies irae.
I. C. — Mais adiante, exactamente, gostava
de falar acerca do assunto. Tenta compreender a juventude, nos seus excessos e aparentes
loucuras, ou sente-se irremediavelmente divorciado de atitudes consideradas
incompreensíveis?
A. R. — A respeito dos rapazes de hoje?
Bem, os rapazes de hoje… estão a… O mundo está em ebulição e em transformação.
A mocidade de hoje não compreende a modificação que o mundo está a sofrer,
sobretudo…
I. C. — Não se apercebe.
A. R. — … sobretudo o mundo físico; mas…,
mas a mocidade é sempre a mocidade. Tomara-a eu.
I. C. — Parece-lhe que as conquistas
materiais da humanidade encontraram paralelo no progresso moral do homem e que
os caminhos percorridos nos indicam perspectivas de um mundo melhor?
A. R. — Bem. Não! O mundo moral, a meu
ver, o progresso no mundo moral é…
I. C. — É inferior?
A. R. — Não será inferior…, mas é
infinitesimal, comparado com o outro progresso. Essa…, a marcha é quase, é
quase que, é quase… como é que eu devo dizer? ……Insaisissable.
I. C. — Não se dá por ela.
A. R. — Não se apanha…
I. C. — Não nos apercebemos.
A. R. — Não há instrumentos que sejam
capaz de medir a marcha realmente do progresso moral. Nós, se fizéssemos, se
fosse possível fazer um cotejo
I. C. — Um paralelo…
A. R. — Aaaa… ou um paralelo,
absolutamente…
I. C. — …concreto…
A. R. — … matemático e objectivo entre o
homem do tempo de Péricles e o de… e do homem de hoje, nós perguntávamos: em
que é que nos nos melhoramos. Creio que moralmente isso, o que nós chamamos
simpatia humana, bondade, doçura, afabilidade, simpatia, aaaa…, ternura…
I. C. … fraternidade, enfim.
A. R. — … tudo isso deve ter
I. C. — … Retrogradado?!
A. R. — … avançado em teoria; em teoria,
apenas, porque hoje não há igualdade das classes, nós hoje não admitimos; mas o
homem por dentro, o homem interior, o homem dentro desses quadros continua a
ser o mesmo… Hã?
I. C. — Realmente, é assim. …
… Muitos homens consideram a guerra como um mal indispensável, como mola
propulsora do progresso. Qual é a sua opinião?
A. R. — Eu acho que isso é uma
barbaridade. Acho que é um pensamento, é um pensamento absolutamente paradoxal.
Houve o Sorel que considerou a guerra como necessária, como uma fonte de
progresso… E é possível que seja uma fonte de progresso. É possível que seja um
[I. C. — Mas o preço é tão caro…] que seja um instrumento de progresso…, que
não vale a pena realmente irmos por esse lado. Por outra, porque com a febre,
os homens, de vencer o seu semelhante, têm feito descobertas absolutamente
estupendas, mas que eles fariam, talvez, levados por outros estímulos.
I. C. — Sem ser a guerra.
A. R. — Sem ser a guerra. O estímulo de:
porque é que se não há-de criar o estímulo da minha, do que eu faço em matéria
de bondade ou em matéria de beleza, ser… ser igual ou superior?
Criar a emulação nesse…
I. C. … nesse sentido.
A. R. — … nesse sector, não é?
I. C. — Parece-lhe que os fantásticos
meios de comunicação e fácil acesso às fontes de informação tornam mais ou
menos difícil a condução política dos povos?
A. R. — …
I. C. — É que hoje realmente os
estadistas não podem ocultar certas coisas dos povos. Há um fácil acesso.
Parece-lhe, portanto, que a condução política dos povos é mais difícil para os
governantes?
A. R. — Bem… Eles têm sempre, se por
acaso lhe falham uns meios, readquirem outros que os compensam realmente de determinados
prejuízos que se deram, quanto a manterem esse hermetismo, se se por acaso
dentro de fronteiras se isso vier necessário. Eu creio que nós marchamos para
um nivelamento absolutamente, absolutamente fatal. Agora, vai, vamos ter a
Europa de … os seis países, movidos por
tratados de comércio e de economia; e depois, hão-de vir, simultaneamente,
acordos de natureza [I. C. — cultural], de natureza cultural e isso há-de
invadir os outros países, porque os outros países não poderão resistir [I. C. —
Senão ficam para trás.], à parte desses outros.
I. C. — Tem retardado a publicação de
trabalhos seus, esperando a oportunidade mais conveniente?
A. R. — Bem; algumas coisitas, mas… sem,
sem ser de grande relevo. Em todo o caso, tenho algumas páginas sempre reservadas,
como toda a gente.
I. C. — Compreende ou repudia os
sacrifícios que hoje por toda a parte se exigem do indivíduo, em favor da
colectividade?
A. R. — O sacrifício do indivíduo, em
favor da colectividade, quer dizer, quer dizer o…
I. C. — O indivíduo sente-se cada vez
mais limitado nos seus direitos. A colectividade começa a sobrepor-se-lhe.
A. R. — Bem… Isso implica o quê…,
implica a existência de um indivíduo num país socialista, não? Ou num país, ou
na sociedade…
I. C. — Na sociedade contemporânea
vulgar…
A. R. — Na sociedade contemporânea de
hoje… Bem! Um indivíduo, naturalmente um indivíduo nunca cede os seus direitos
à colectividade…
I. C. — --------- de forma nenhuma
A. R. — … mas é obrigado pela própria
natureza dos factos e tem de ceder. Imagino que era essa a pergunta que… [I. C.
— Exactamente] … que pretendia.
I. C. — Queria exactamente saber se
repudiava totalmente ou se aceitava esses sacrifícios.
A. R. — B… ff… francamente… francamente…
ff…
I. C. — Aceita com relutância!...
A. R. — Não, não é aceito com
relutância. É que não vejo que, não vejo que o problema esteja posto com, como
é que eu devo dizer?! [I. C. — Com clareza…], com lógica psicológica. Quer
dizer: o indivíduo despoja-se das suas regalias, em proveito da sociedade,
porque é obrigado a despojar-se, porque o facto mesmo de ser indivíduo, de ser
ele, mantém-o na sua torre e dentro dos seus coiso, dentro do seu egoísmo. O egoísmo
move o mundo. O meu umbigo é o umbigo do universo. É… Evidentemente…, é
lamentável que assim seja, mas eu considero que o indivíduo se sobrepõe a tudo
e quando se não sobrepõe é porque o obrigam a ceder.
I. C. — Há uma força superior.
A. R. — Uma força superior, é a força,
é… evidentemente… é a força do… [I. C. — É a força natural.], é a força
centrífuga de todas as… que se exerce sobre o indivíduo e que o… [I. C. — … e
que ele não pode alhear-se.] … que não pode alhear-se.
I. C. — Quando há mais de um filho, por mais
que seja a equidade paterna, por maior que seja, intimamente, existe sempre uma
preferência. Qual é na sua vastíssima obra o seu livro preferido?
A. R. — Aaaa(i)hh! Francamente que não
sei. Olhe, eu quando faço, quando faço um, quando estou a escrever um livro,
julgo sempre que o meu livro, que o livro que escrevo que é o melhor. É… E
depois de ele feito, julgo que é sempre o pior. E a minha vontade seria, no dia
em que ele sai da tipografia, rasgá-lo. [Pequeno riso de I. C.] Rasgá-lo.
I. C. — E depois…
A. R. — Depois…
I. C. — Faz as pazes.
A. R. — Faço as pazes!? Não sei…, não
sei…, não sei. Olhe. Eu nunca mais leio os meus livros.
I. C. — Ah!
A. R. — Nunca mais leio os meus livros.
I. C.— Em todo o caso, sabe bem o que
está lá dentro!?
A. R. — Sei, sei um pouco, porque não
perdi a memória, mas… Eu faço os meus livros com todo o amor. Eu. …
I. C. — Quer dizer, o momento da criação,
é o mais importante para si.
A. R. — Sim, eu entrego-me
absolutamente. Eu não faço melhor porque não sei. Eu não faço melhor porque não
posso. Eu escrevi agora um livro, aaaa…, publiquei agora um livro chamado A Casa de Romarigães, sob forma de
romance, é a história de uma casa. Em vez de ser o indivíduo o centro dum
enredo, é [I. C. — È a casa.] é uma propriedade; é um solar. É um solar duns
fidalgos e ao mesmo tempo eu conto as vicissitudes desse fidalgo, mas eu estava
a fazer esse livro muito satisfeito, julgando que tinha feito uma bela obra; e
agora julgo que, em suma, pelo menos passa pelos mesmos avatares que passaram
os outros.
I. C. — Começa a crítica a denunciá-lo e
a dizer o contrário do que está a pensar neste momento?
A. R. — Eu…, a crítica portuguesa é
perigosa, o que não quer dizer que não haja críticos, bons críticos em
Portugal, ainda. E…
I. C. — Independentes.
A. R. — E independentes e com boa
disposição… e tal, mas sim…, uma terra como, que já tem oito milhões de
habitantes… Há o bom e o mau.
I. C. — Ah, claro! Teve dificuldade na edição
do seu primeiro livro?
A. R. — A edição do meu primeiro livro
foi feita em Paris. Foi o Carlos Malheiro Dias é que patrocinou a edição desse
primeiro livro. Ele é que foi, por assim dizer, o padrinho [I. C. — O padrinho
literário.] e escreveu [I. C. — um prefácio], e escreveu um prefácio, e escreveu
ao editor e o editor chamou-me e diz… — O senhor tem aqui, vai publicar um
livro? Dê cá o original. Quanto é que quer? — «Eu quero tanto.» — Ah, isso é
demais… e tal. Ele ali fez um pequeno [I. C. — …abatimento.] um pequeno abatimento
e pagou-me o livro relativamente bem. [I. C. — Então, não houve dificuldade.] O
que foi uma maravilha…
I. C. — Não houve dificuldade.
A. R. — E sobretudo, em Paris, não é?
I. C. — Está de acordo com a educação
que lhe deram e tentou proceder de igual maneira na educação do seu filho ou
usou de sistemas diversos, aprendendo na sua experiência da vida?
A. R. — Sim, aprendendo na minha
experiência da vida. Evidentemente que a educação que me deram não seria a
educação que eu dei aos meus filhos. É muito diferente; porque eu creio que…
[I. C. — Até porque a vida é outra.] A vida é outra. Mas até aos dezasseis,
dezassete, dezoito anos, o indivíduo não tem vontade. Nós é que temos de lhe
imprimir a nossa vontade…
I. C. — Encaminhá-lo.
A. R. — … e encaminhá-lo. Eu fui
abandonado um pouco cedo; e abandonado ao meu livre-arbítrio. E de maneira que…
I. C. — Isso talvez fosse bom.
A. R. — Não sei; por um lado, cultivou
certas faculdades de independência [I. C. — e desenvolveu-as.] e desenvolveu-as
e tal, mas… dei muito tombo. [Ri.]
I. C. — Qual é para si o significado
daquela terra de ninguém e de todo o mundo, compreendida entre A BRASILEIRA e a
BERTRAND?
A. R. — Bem…
I. C. — Acha bem que lhe chame terra de
ninguém?
A. R. — Bem, está bem, aquilo é um ponto
de passagem e tal…, é um ponto de passagem. Encontro ali alguns amigos, com
quem me é agradável conversar.
I. C. — Mas tem um certo carácter?
A. R. — Tem, tem. Realmente é um
bocadinho agradável de Portugal, hã…, e do nosso século.
I. C. — Sente-se arrependido de ter
acedido a responder a este inquérito?
A. R. — Não, de maneira alguma. Você, já
lhe disse… que você… até… que era um sedutor e que eu, portanto, eu estava, não
o queria… tinha todo o prazer em lhe ser agradável, primeiro; segundo: isto,
simultaneamente, não deixa de representar para nós, também…
I. C. — Um contacto.
A. R. — Não é um contacto, é uma
homenagem, também, o senhor naturalmente não chama toda a gente, não chama o
primeiro que encontra ali. Segundo: também é agradável entrar em comunicação
com o público e que ele saiba quem nós somos, e que ele saiba quem nós somos por
dentro.
I. C. — É isso mesmo que nós
pretendemos.
A. R. — Tanto mais que o senhor…
I. C. — É um retrato… que estamos a
fazer.
A. R. — …o senhor traz-me aqui,
sujeita-me aqui a um exame, como estão agora a fazer aos rapazinhos da
instrução primária. (Ri.)
I. C. — Mas não tem raposa, com certeza…
Passou alguma vez na vida por qualquer crise de misticismo?
A. R. — Quando era pequeno; quando era
pequeno; até aos, até aos dezanove anos, dezoito/dezanove anos. Depois…
I. C. — Libertou-se.
A. R. — … despi essa clâmide de uma
maneira definitiva.
I. C. — Fragorosa.
A. R. — Nunca mais, nunca mais, nunca
mais, louvores ao Senhor, que me tirou todas essas escamas dos olhos; e
da(i)alma. Da (i)alma e dos olhos.
I. C. — Consegue ter tempo para estar em
dia com as leituras contemporâneas e é capaz de debruçar-se sobre livros de
desconhecidos?
A. R. — Sempre. Eu tenho o meu filho que
tem uma curiosidade insaciável, este rapaz que é engenheiro. E ele é que compra
os livros novos e ele vai-mos pôr na minha mesa. E ele…
I. C. — Aguça-lhe a curiosidade.
A. R. — … ele sabe, eu creio que ainda
os lê primeiro do que eu. De maneira que eu estou ao corrente de toda, da
literatura, de toda a americana, inglesa e de toda, de tudo o que há de novo
por esse mundo.
I. C. — Gosta de sentir-se com a
multidão e confundir-se com ela?
A. R. — Sim, sim… Eu sempre fui, eu
sempre fui sociável e… homem do povo… homem de… homem de, homem para fraguar,
correntão, homem…, pau para toda a colher.
I. C. — Qual teria sido o acontecimento
do mundo que mais o tocou em toda a sua vida?... …
… E grandes coisas se têm passado…
A. R. — Hmm… …
grandes… mais…
I. C. — Guerras, paz…
A. R. — Bem…
I. C. — em ciclos constantes… … invenções…
A. R. — Tudo isso…, tudo isso.
I. C. —
… descobertas…
A. R. — Olhe, eu assisti, por assim
dizer, uma das coisas, um dos… um dos… uma das coisas que mais feriu a minha
imaginação foi o meeting de aviação,
o primeiro meeting de aviação que
houve no mundo, a que eu assisti em Paris, em que vi morrer dois ou três. A
subirem…
I. C. — …
A. R. — … em Issy-les-Molineaux. E ver
aqueles aviões…
I. C. — Na altura em que a aviação
principiava.
A. R. — … principiava. À volta de mim, havia gente a
chorar. Nunca se imaginou que fosse possível, realmente… …
I. C. — Quais são os espectáculos que
mais prendem a sua atenção?
A. R. — Espectáculos de…, de que
natureza?
I. C. — Os espectáculos da vida, os
espectáculos de arte…
A. R. — Espectáculos de arte…
I. C. — Teatro, bailado, a música, a
ópera, o circo…
A. R. — Talvez. Baa …(??) Bem. Ainda não
pensei nisso, ainda, mas é possível que seja, é possível que seja um
bailado. … … É possível que seja um bailado, sim…
I. C. — Falámos da aviação… As viagens
de avião atemorizam-no ou entusiasmam-no?
A. R. — Pelo contrário, entusiasmam-me.
Já fiz a travessia do Atlântico. E já andei, e já visitei todo, quasi todo o
Brasil, o Sul do Brasil até à fronteira da Bolívia.
I. C. — Sempre de avião?
A. R. — Sempre de avião.
I. C. — É muito cómodo. E aviões, até,
do exército brasileiro…
I. C. — Não são tão cómodos!?
A. R. — De dois motores e perigosos [I.
C. — Não são do exército.]
I. C. — Mas sente-se mais a aviação?
A. R. — Ah, sente, pois sente.
I. C. — Qual é para si o significado da
vida humana?
A. R. — Ah, bem, isso é um mistério. É
um grande mistério. A vida humana é um mistério. O que cá andamos nós a fazer?
Donde é que viemos? Para onde vamos? Para onde vamos…
I. C. — Para onde vamos?
A. R. — Para onde vamos!?... Para onde
vamos, evidentemente, nós vamos para o, isto é uma série ininterrupta de
fenómenos. O homem é um colóide e está em perpétua evolução. Mas como é que
este, como é que se formou este colóide? Como é que este colóide reage? Bem,
toda a fenomenologia desse facto é a vida. É a vida (I. C: — …com os seus
mistérios.). Se nós pudéssemos controlar todas essas transformações, a forma como
se organizou, … esse colóide, torno eu a
repetir, nós teríamos descoberto os segredos da vida. …pfff…pff..
Eu estou convencido que a vida é um
pouco como o relógio nas mãos dum preto que nunca viu o que eram relógios. Ele
ouve bater o relógio e sente-o, mas é absolutamente…, não tem (I. C. — …uma noção), não tem o
sentido de civilização que nós temos para percebermos que o relógio que é uma,
que interiormente que há umas molas, que há uns rodízios, que há uns volantes
(I. C. — mecanismos, enfim.) que fazem girar aquilo. E é, nós perante a vida
estamos num…, precisamente na mesma…
I. C. — Eu vi não sei onde esta opinião:
a força impulsionadora do progresso é uma força destrutiva. A vida, sob todas
as formas e aspectos, é uma doença do nosso planeta. E como todo o micróbio que
se preza, tem a tendência de destruir-se, destruindo o meio em que se
desenvolve. O homem acabará por destruir-se, destruindo a terra. Parece-lhe que
as experiências nucleares são já etapas finais, dando razão a esta terrível
profecia?
A. R. — Não, eu acho que pelo contrário,
acho que é um ponto de partida para realmente para a penetração dos grandes
segredos cósmicos. E creio que a vida que se vai melhorar consideravelmente,
depois dessas descobertas, e que daqui a cinquenta(i)anos, daqui a cem anos,
viver será agradável e que o homem — nós não sabemos, não podemos dizer qual é
o destino da humanidade, qual é o destino do homem e se nós somos realmente, se
a vida é, apenas, representa apenas um parasitarismo dentro do planeta. E se a
forma mais perfeita da, mais perfeita, digamos, da organização, da organização
astral ou telúrica, se será precisamente a nudez absoluta, o vácuo absoluto, a
matéria de que são constituídos esses astros, absolutamente inerme, e se isto
não representa, realmente, este parasitarismo, se não representa já uma
deformação. Podia-se encarar assim, mas perante uma ideia então muito mais
alta, muito mais elevada, que nós não podemos alcançar. Nós somos uma partícula
volante, no mundo… no mundo que está em contínuo movimento, não é verdade?
I. C. — Em todo o caso, não lhe parece que
estamos próximos de ver com acuidade a história do aprendiz de feiticeiro?
A. R. — Ahahh…, eu creio que não, eu
creio que não, creio que não. O homem [I. C. — …é capaz de dominar…], realmente
há forças destrutivas dentro do homem, essas forças destrutivas são provenientes
precisamente dessa coisa em que nós há um bocado falámos: o egoísmo. Eu estou
convencido que o homem há-de superar todas essas forças [I. C. — E canalizá-las
para o bem.] demoníacas, demoníacas dentro dele e há-de acabar por dominá-las e
transformá-las em serviço de si próprio e do restante…, e dos seus
semelhantes…, dos outros.
I. C. — Atemoriza-o a ideia da morte?
A. R. — Não é agradável morrer, mas, em
suma… É fatal. Havemos de morrer, porque não?... E tal...
I. C. — Festejámos o nascimento de uma
obra sua, hoje, exactamente.
A. R. — É verdade.
I. C. — Tem alguma obra em preparação? …
Visto que não pára…
A. R. — Bem…Vai sair. Tenho o Camilo a
sair. E tenho uma outra a completar; uma que há-de sair agora daqui a dois
meses, também. Eu sou como os sapateiros. Tiro uns sapatos e meto outros.
I. C. — Entram outros na forma[6].
A. R. — Entram outros…
I. C — Já alguma vez tentou saber se o
público dos seus leitores é mais numeroso entre os homens ou entre as mulheres?
A. R. — Bem, eu nunca averiguei, eu
nunca tentei fazer, realmente, um…
I. C. — … um inquérito deste género…
A. R. — Sim…, uma estatística dessa
natureza. Mas, alguém, recordo-me que alguém me disse que eu que era cruel com
as mulheres. Eu não sou cruel com as mulheres. Eu, a mulher é um bicho
complexo, precisamente porque é mais fraco do que nós e que esteve numa
sujeição maior do que nós, relativamente ao homem. A mulher era considerada
como escrava até ainda não há muitos séculos, não é verdade!?, era uma escrava
do homem, mas a minha crueldade era apenas o amor que eu lhes tinha, não é……
I. C. — É uma grande razão de
existência, afinal.
A. R. — É verdade.
I. C. — Qual foi a razão que o levou a
escrever O Romance de Camilo, essa
obra monumental, que tem provocado tanta discussão?
A. R. — Bem. A obra, o Camilo é uma
figura deformada; ele próprio se deformou. O Camilo recorda-me um pouco o gato,
o gato velho que para enganar os ratos se enfarinhava. Ele, o Camilo começou por
se enfarinhar, deformar a sua natureza toda. O Camilo foi um homem infeliz,
realmente, em toda a linha.
Mas a grande, a grande infelicidade do
Camilo, a grande desgraça de Camilo foi as mulheres não gostarem dele. As
mulheres não gostavam de Camilo.
I. C. — Deu o que hoje chamamos um
complexo!?
A. R. — Deu um complexo. Deu um complexo
tremendo e toda a obra dele… Agora, dir-me-á: «Mas as figuras dele estão todas
certas.» — Estão todas certas. É, realmente, ele, ele tinha um sentido de
compreensão, que de uma ou duas, três mulheres que amou, ele tirou todas as
outras. E estão todas certas, mas… mas…as
mulheres não gostaram de Camilo. Toda
a sua tragédia, a primeira, além da tragédia…, não falando na tragédia
económica, que para ele foi secundária já…
I. C. — E talvez até útil, para fazer
uma obra vasta…
A. R. — Ah, sim, ele se tivesse, se
fosse, quando ele, quando o filho dele, Nuno, casou com uma herdeira rica, por
malas-artes do próprio Camilo, que a foi… ajudou a raptar… O Camilo nesses anos
não produziu coisa nenhuma, porque ajudou a comer a fortuna do filho.
I. C. — Portanto, estava satisfeito
economicamente e não trabalhava.
A. R. — Exacto; é verdade.
I. C. — Mas, em todo o caso, ainda não
me disse a razão por que se meteu a escrever O Romance de Camilo…
A. R. — Bem, precisamente por isso,
porque é uma figura, é uma figura…
I. C. — Que era preciso esclarecer.
A. R. — É uma figura apaixonante…
I. C. — Que era preciso esclarecer.
A. R. — … que eu tinha ideias
particulares sobre ele. Ele, realmente, quando as ideias estão dentro de nós
como uma fonte, é preciso dar-lhe vazão, não é? Este…, eu tinha ideias
especiais sobre o Camilo…, maneiras de ver que nem o Alberto Pimentel, nem
António Cabral, nem Dias da Costa, nem esses outros críticos, esses biógrafos que
se ocuparam dele, como de nenhum escritor português, pareceu-me que nenhum
deles o compreendeu. Eh…, não quer dizer que eu tenha acertado. Imagino que
acertei, porque se não, realmente, não me teria abalançado [I. C. — com
certeza!] a uma obra destas, mas, seja como for, foi realmente essa necessidade
de dizer: Não! Tudo isto está, está errado. O edifício está…
I. C. — … mal construído.
A. R. — …está mal construído. Nós temos…
e comecei pelo princípio. Eis a razão por que eu me realmente…
I. C. — Eu próprio beneficiei…,
A. R. — Ahaahh…
I. C. — porque troquei muitas impressões
com o Mestre Aquilino, quando tive de realizar a minha interpretação do papel
de Camilo.
A. R. — E muito bem…, e muito bem...
I. C. — Como escritor, quer aproveitar
este momento para dirigir uma curta mensagem a quantos escutam?
A. R. — Eu acho que…, uma mensagem aos
nossos camaradas portugueses… É dizer que, evidentemente, nós temos, temos de
amar a verdade e batermo-nos pela verdade e pelo progresso, pelo que está… A… a
humanidade é uma, é como uma prova de, como uma gravura, não é verdade?, que
está numa máquina. É preciso uma série de provas. Nós estamos a melhorar a
nossa…
I. C. — Nós somos as provas, ainda não
somos o exemplar definitivo.
A. R. — Mas estou convencido, creio que
a nossa obrigação, a obrigação de todos os escritores é, realmente,
interessarem-se pelos grandes problemas do mundo e da melhoria do homem e da….
E de todos os homens em geral.
I. C. — Com certeza!
A. R. — Pobres e ricos [I. C. — Com
certeza!]. Não, realmente, não criando a…
I. C. — Sem distinções…
A. R. — … não criando a miséria dos
ricos para fazer os pobres, os pobres ricos, mas elevando os pobres, de maneira
a que eles, a que a condição de viver não seja para eles um [I. C. — Um
sacrifício.] um castigo.
I. C. — Se fosse locutor deste programa,
havia ainda alguma pergunta que gostasse de fazer ao Aquilino Ribeiro?
A. R. — Ah, não, não! O senhor já me fez
perguntas (e) eu já terei sido indiscreto e ao mesmo tempo inconveniente e até
absurdo… e até absurdo.
I. C. — Não é possível ser absurdo.
A. R. — Vê, nós estávamos aqui a
conversar, por assim dizer…
I. C. — Como amigos, se me permite essa
honra.
A. R. — … e esquecendo que está aqui den…
dentro de nós… [I. C. — … um microfone…] a mais indiscreta testemunha das
nossas conversas…
I. C. — (Breve riso.)
A. R. — (Quase ri.) Mas não, senhor, o
senhor, fez as suas perguntas muito bem, e com muita consciência e concisão e…
I. C. — As perguntas, afinal, não têm
interesse; o que tem interesse são as respostas.
A. R. — Ai tem, tem. Não. O senhor
também formulava as suas perguntas…, isto, hoje, não é nenhuma verdade[7]!...
I. C. — E não faz ideia como lhe
agradeço, em nome de todos os que nos escutaram, o favor de ter vindo até aqui,
roubando um bocadinho ao seu trabalho, porque sei que é um trabalhador das
letras, realmente, como se pode dizer.
A. R. — Trabalho, trabalho… Tem que ser…
Eu… Hei-de morrer com a enxada na mão.
I. C. — Pois desejo-lhe as maiores
felicidades!...
A. R. — Muito obrigado.
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Locutor:
— Aquilino Ribeiro, na rádio, no
programa «O Perfil de Um Artista», de Igrejas Caeiro, corria o ano de 1957. Seis
anos depois, morreu Aquilino. Nesta segunda-feira, 27 de Maio, passam cinquenta
anos sobre a morte do escritor.
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Música — voz feminina canta. [7 min. e 12
seg.]
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Locutor:
— Morte de Isolda. Tristão e Isolda, de Richard Wagner, com Jessie Norman e a
Orquestra Filarmónica de Viena, direcção de Herbert von Karajan. Outra data
assinalada, de forma sublinhada nos últimos dias; os duzentos anos do
nascimento de Richard Wagner. Já a seguir, Lilliput.
É o pequeno grande mundo… … …
… … …
… …
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