Na pequena viagem de regresso a casa, antes do
almoço, ouço Vinícius de Morais a dizer uma sua poesia, no programa «A vida breve», de Luís Caetano. A poesia fala por si, na pronúncia do seu criador.
Vinícius é muito agradável. Hoje, dá-nos uma receita de mulher, certamente
imperfeita — a receita. Termina bem.
Gostei de ficar a conhecer a palavra «semovente».
Tem a língua portuguesa o equivalente, mas esta, aqui, está belíssima e nada
híbrida, cem por cento latina.
Receita de mulher
As muito feias que me perdoem Mas beleza é fundamental. É preciso Que haja qualquer coisa de flor em tudo isso Qualquer coisa de dança, qualquer coisa de haute couture Em tudo isso (ou então Que a mulher se socialize elegantemente em azul, como na República Popular Chinesa). Não há meio-termo possível. É preciso Que tudo isso seja belo. É preciso que súbito tenha-se a impressão de ver uma garça apenas pousada e que um rosto Adquira de vez em quando essa cor só encontrável no terceiro minuto da aurora. É preciso que tudo isso seja sem ser, mas que se reflita e desabroche No olhar dos homens. É preciso, é absolutamente preciso Que isso tudo seja belo e inesperado. É preciso que umas pálpebras cerradas Lembrem um verso de Éluard e que se acaricie nuns braços Alguma coisa além da carne: que se os toque Como ao âmbar de uma tarde. Ah, deixai-me dizer-vos Que é preciso que a mulher que está ali como a corola ante o pássaro Seja bela ou tenha pelo menos um rosto que lembre um templo e Que seja leve como um resto de nuvem: mas que seja uma nuvem Com olhos e nádegas. Nádegas é importantíssimo. Olhos então Nem se fala, que olhem com uma certa maldade inocente. Uma boca Fresca (nunca úmida!) móvel acordada é também de extrema pertinência. É preciso que as extremidades sejam magras; que uns ossos Despontem, sobretudo a rótula no cruzar das pernas, e as pontas pélvicas No enlaçar de uma cintura semovente. Gravíssimo porém é o problema das saboneteiras: uma mulher sem saboneteiras É como um rio sem pontes. Indispensável Que haja uma hipótese de barriguinha, e em seguida A mulher se alteie em cálice, e que seus seios Sejam uma expressão greco-romana, mais que gótica ou barroca E possam iluminar o escuro com uma capacidade mínima de cinco velas. Sobremodo pertinente é estarem a caveira e a coluna vertebral Levemente à mostra; e que exista um grande latifúndio dorsal! Os membros que se terminem como hastes, mas bem haja um certo volume de coxas E que elas sejam lisas, lisas como a pétala e cobertas de suavíssima penugem No entanto, sensível à carícia em sentido contrário. É aconselhável na axila uma doce relva com aroma próprio Apenas sensível (um mínimo de produtos farmacêuticos!). Preferíveis sem dúvida os pescoços longos De forma que a cabeça dê por vezes a impressão De nada ter a ver com o corpo, e a mulher não lembre Flores sem mistério. Pés e mãos devem conter elementos góticos Discretos. A pele deve ser fresca nas mãos, nos braços, no dorso, e na face Mas que as concavidades e reentrâncias tenham uma temperatura nunca inferior A 37 graus centígrados, podendo eventualmente provocar queimaduras Do primeiro grau. Os olhos, que sejam de preferência grandes E de rotação pelo menos tão lenta quanto a da Terra; e Que se coloquem sempre para lá de um invisível muro de paixão Que é preciso ultrapassar. Que a mulher seja em princípio alta Ou, caso baixa, que tenha a altitude mental dos altos píncaros. Ah, que a mulher dê sempre a impressão de que se se fechar os olhos Quando se os abrir ela não mais estará presente Com seu sorriso e suas tramas. Que ela surja, não venha; parta, não vá E que possua uma certa capacidade de emudecer subitamente e nos fazer beber O fel da dúvida. Oh, sobretudo Que ela não perca nunca, não importe que mundo Não importe que circunstâncias, a sua infinita volubilidade De pássaro; e que acariciada no fundo de si mesma Transforme-se em fera sem perder sua graça de ave; e que exale sempre O impossível perfume; e destile sempre O embriagante mel; e cante sempre o inaudível canto De sua combustão; e não deixe de ser nunca a eterna dançarina Do efêmero; e em sua incalculável imperfeição Constitua a coisa mais bela e mais perfeita de toda a criação inumerável.
(Por Vinícius de Morais)
***
Pode aceder, aqui, ao programa A vida breve. E
aceder a um vídeo e a outro, para ouvir a mesma poesia.
O programa A vida breve -- poesia por quem a escreve, dura uns sete
minutos; a dicção pelo poeta, cerca de cinco minutos e meio. Emendei o texto,
recolhido da internet, pelo que o autor efectivamente declama.
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terça-feira, 12 de novembro de 2013
RECEITA DE MULHER, por Vinícius de Morais
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