(Emitido pela primeira vez no programa O LUGAR DA HISTÓRIA, RTP 2000.)
(Gravado na RTP 2 – 15 de Abril de 2013.)
O artista faz rodar um leme como num
navio, mas trata-se de uma prensa, tira e vê, vemos um pouco por trás dele, em
primeiro plano a mãe e às espaldas dela sobre o seu ombro direito, vestido de
negro, Aquilino, homem, mas muito mais pequeno, como filho que nasceu dela.
Gravata preta, camisa branca, mãos e rosto brancos. Imagem ampliada. Mais
negro: o cabelo de Aquilino, as sobrancelhas e a sombra das órbitas, o bigode.
Um traço branco em semicírculo esboçado diz que está no seu peito uma corrente;
entre os dedos indicador e médio (segura pelos dedos polegar — que não vemos —
e indicador encostada sobre o médio) vemos a sua insígnia, lançando por cima da
mão nalgumas manchas brancas o desenho de uma pena. Representa a sua ferramenta
de trabalho, a pena em todo o sentido que tem em português: trabalho, fadiga,
luta e fé, fé no esforço. Sabe que acabará por vencer. Pena também leve,
descobridora, nunca leviana; deixe-se voar, está segura de si como se vê no
olhar sereno, quase sorriso, uma ironia que nos interpela. O fato parece de
académico, de estudante, seminarista ou colegial, universitário.
Há um manancial de fotografias, excertos de filmes, desenhos, que acompanham o documentário e só aqui e ali são referidos, para dar uma ideia da sua dinâmica.
*
[Ouve-se, deve ser José Rodrigues.]
— O. K.
… … … Parece que está bom, parece que está
bom. … … Ah, está bom,
está bom. … … Ficou bem, ficou.
… … Vê-se a […] dela, ficou bonito.
Ficou bem… Pronto.
[José Rodrigues/Escultor.] A litografia foi a forma que dez artistas digamos
desta casa escolheram para homenagear este grande homem. São dez retratos de um
grande homem, de um homem da prosa. Espero que este exemplo provoque outras
formas de homenagem, outras formas de projectar este homem no nosso país, no
mundo.
[Árvore. No seu tronco, misturando-se na sua aparência a
figura de Aquilino, de chapéu, uma mancha, feita dos mesmos traços da árvore,
quase indiscernível dela. Sobre a imagem:
AQUILINO
RIBEIRO
(1885 – 1963)]
[Música.] [Em desenho a figura de Aquilino Ribeiro e sobre
ela a legenda:
Voz de
Aquilino Ribeiro
Cortesia RDP
São seis desenhos.]
É..., evidentemente, temos de amar a
verdade, batermo-nos pela verdade e pelo progresso pelo que está…, a humanidade
é uma, é como uma prova, como uma gravura, não é verdade?, que está numa
máquina; é preciso uma série de provas, nós estamos a melhorar, creio que a
nossa obrigação, a obrigação de todos os escritores é realmente interessarem-se
nos grandes problemas do mundo e da melhoria do homem e de todos os homens em
geral[1].
1.ª Parte
O homem
político,
democrata e amante
da liberdade.
[Música.] [Filme com imagens de Lisboa: Terreiro do Paço,
… … … …, Passeio
Público.]
Sobre o filme:
Lisboa, princípios do século XX.
A monarquia está em crise e a geração
saída do ultimato acredita no assalto
revolucionário dos republicanos
ao poder.
O descontentamento social é grande
e a ideia amadurece sobretudo em
tertúlias de jovens intelectuais,
jornalistas e activistas do sindicalismo
operário.
[Fernando Rosas.] É neste caldo de cultura, que mete jovens
estudantes, jovens intelectuais, jornalistas, activistas do sindicalismo
operário, é neste caldo de cultura onde se entremeiam a tertúlia do café, os
círculos culturais, os círculos políticos, os círculos do activismo sindical, e
que a Carbonária, os grupos anarquistas, o radicalismo republicano, através da
Maçonaria… Há aqui uma ligação, pouco visível mas real entre o mundo
carbonário, o mundo anarquista, o mundo maçónico, que também tem divisões
claras, mas também anda ali paredes meias com o bombismo dito anarquista ou
carbonário. É deste meio, é neste meio onde vemos surgir o Aquilino Ribeiro, um
homem muito ligado à Carbonária, ao anarquismo, às duas coisas provavelmente ou
seja a uma visão radical, mais radical que o republicanismo pequeno-burguês que
está no terreno a dirigir de alguma maneira o Partido Republicano[2].
[O MUNDO
Portugal governado por assassinos
Noite sanguinolenta de ante-hontem… A
situação política… Fala-se na suspensão de garanti
Crime
sobre crime ….Os mortos e os feridos … Mais violências … Correrias
tiros
e numerosas prisões
Posta urgente]
[Fotografia: homens fardados, com civis
entre eles, formando todos uma massa compacta.]
[DIÁRIO DE NOTÍCIAS
… … os acontecimentos académicos]
[AO PAIZ
Dos
estudantes revolucionarios
DE COIMBRA
Jornal?]
[Voz de locutor. O locutor nunca se vê.] 1907 é um ano de grande turbulência na
vida política e social portuguesa. Estamos em plena ditadura de João Franco,
que, com o apoio de D. Carlos, encerra o parlamento, apesar do protesto cada
vez mais veemente das oposições. O escândalo com os adiantamentos à Casa Real
alimenta as polémicas nos jornais e os comícios republicanos que zurzem sem
piedade nas velhas e anquilosadas instituições. Os estudantes estão do lado dos
contestatários e promovem em Coimbra uma enorme e bem sucedida greve académica.
Entretanto, o jovem Aquilino, imbuído do espírito dos grupos libertários,
guarda em sua casa, na Rua do Carrião, material para fabrico de bombas e num
domingo de manhã o desastre acontece. Gonçalves Lopes e Belmonte de Lemos
estavam a manipular os explosivos, quando a certa altura se deu uma terrível
explosão que vitimou os dois. Aquilino não foi atingido porque como conta o
próprio se encontrava às espaldas, a ver por cima dos ombros deles como faziam.
Aquilino escapa da morte, mas não da prisão, sendo imediatamente encarcerado na
esquadra do Caminho Novo. Aí, ocupa-se sobretudo a planear a sua fuga, que
consegue na noite de 12 de Janeiro, depois de forçar habilmente a fechadura da
cela e tirando proveito de um conhecimento profundo dos hábitos dos
carcereiros. Menos de um mês depois, a um de Fevereiro, o rei D. Carlos e o
príncipe herdeiro são assassinados no Terreiro do Paço. O nome de Aquilino
Ribeiro será associado ao atentado, embora disso nunca se conseguisse uma prova
efectiva.
[Baptista Bastos.] E eu pessoalmente estou convencido, com
todo o risco que uma afirmação desta natureza envolve, estou convencido que o
Aquilino era — e não sou só eu que pensa isto — que o Aquilino era a terceira
carabina do Terreiro do Paço. Era o Buíça, o Costa e o Aquilino, quer dizer…,
ele é muito omisso no livro de memórias e… e naturalmente não tem nada que
dizer essas coisas, mas eu penso que o Aquilino, com muita frequência, com
muita frequência, pegou na arma quando a palavra estava destituída do seu valor
interventivo.
[Locutor.] Aquilino Ribeiro entra na clandestinidade
e durante meses, embora disfarçado, consegue alguma liberdade de movimentos;
mas, em Maio desse mesmo ano, 1908, toma no Entroncamento o Sud Express, com
destino a Paris, para o seu primeiro exílio na cidade das luzes.
[Aquilino Ribeiro Machado/Filho de Aquilino Ribeiro.] Para Paris, ele foi com um passaporte
maçónico, que é este documento, que lhe permitiu inscrever-se no Grande Oriente
de França, como aqui está, na loja L’Action, de Paris.
A data de chegada é de 1 de Junho de 1908
e a documentação apresentada para o identificar era o diploma do Grande Oriente
Lusitano, que está aqui dito pelo consulado de Paris.
[Locutor, com texto de Aquilino Ribeiro.] Paris que eu encontrei não era o Paris que
tinha na imaginação; sobretudo não era o Paris que me pintavam. Achei-me
burlado; romancistas, poetas e historiadores não passavam de uma bela
filarmónica de trampolineiros além de que a cidade, em si, casario, monumentos,
arruados, não correspondia em nada às imagens que traçara. Tão-pouco me
introduziu na atmosfera social a decantada frágua dos grandes ideais por que eu
àquela altura dava o cavaquinho. Tudo era regrado, comum, conservadorão[3].
[Locutor.] A frustração do primeiro contacto com a
capital francesa é rapidamente ultrapassada. Com um notável poder de
ambientação, Aquilino Ribeiro rende-se aos encantos parisienses e consegue
inclusive rentabilizar os seus conhecimentos.
[Jorge Reis.] O Aquilino não… teve um comportamento dum
observador de Paris, não mergulhou no Paris digamos queirosiano, ele não andou
nessas festas, isso não era para ele. O Aquilino trabalhou, trabalhou,
trabalhou. Ele já trazia de Portugal o esboço dum, do seu primeiro texto, que é
«As Feiras» ou coisa assim, que ele publicava na Ilustração Portuguesa, lá, ele
mandou esse artigo e depois começou a mandar para A Beira, de Viseu, e para A Capital, de Lisboa, uma
colaboração assídua, semanal, e era com esse dinheiro, o dinheiro que ele
ganharia, que ele ganhou com isso, que ele sobreviveu. E sobreviveu rodeado de
amigos, um grupo de pintores portugueses, o Manuel Jardim, o escultor, o Anjos
Teixeira, tudo isso… e sobretudo o Leal da Câmara. Ele aprendeu em Paris, ele
aproveitou, sugou Paris; aproveitou, alimentou-se de Paris. Não andou aí na…
em… na vida… não fez uma vida de estudante, não fez uma vida de exilado rico,
nada disso, ele vivia do seu trabalho, da sua escrita e … e dos estudos.
Voz de
Aquilino Ribeiro
Cortesia RDP
Eu nunca fui verdadeiramente infeliz em
Paris. Eu tenho sido infeliz em muitas partes, até mesmo aqui em Lisboa, até
mesmo lá na minha aldeia, em Paris, nunca fui infeliz. Se fosse um dia infeliz,
no dia seguinte era feliz. Um homem não se perde lá como aqui. Parece que…
Todavia, Paris é um deserto para um estrangeiro, não é? E, todavia, um homem
anda absolutamente à vontade em Paris. E não há, outra coisa que eu adoro em
Paris…, é que um homem tem um ideal qualquer, tem uma necessidade, satisfá-la
sempre[4].
[Locutor.] Mas nem tudo são rosas parisienses para
Aquilino Ribeiro. Mesmo a mil quilómetros de distância do seu país natal,
carrega o anátema de um passado revolucionário, o que desperta o interesse e a
vigilância por parte das autoridades francesas.
[Mário Soares.] Eu estive a estudar o século XX, desde
essa, o princípio do século XX, partes da Monarquia no século XX e depois o
princípio da República. E é muito curioso, porque eu encontrei nos arquivos de
França, quer no arquivo do Quai d’Orsay, quer no arquivo, que é o Ministério
dos Estrangeiros francês, quer no arquivo do Quai des Orfèvres, que é o arquivo
da polícia francesa, as notas que lá havia sobre o Aquilino Ribeiro e dos
polícias que o seguiam e tal, e diziam que ele tinha contactos com os
anarquistas daquela época em França e que era um indivíduo considerado
perigoso, onde ele se reunia, o que é que fazia e como é que…
[Locutor.] Em 1910 dá-se a implantação da República
em Portugal. Aquilino pode assim limpar o cadastro e regressar. No entanto,
apenas aproveita para uma breve visita no final desse mesmo ano. Volta a Paris
e obtém a equiparação dos seus diplomas secundários, o que lhe permite
inscrever-se na Sorbonne e contactar durante três anos com grandes mestres da
filosofia e da sociologia, com Georges Dumas, Durckheim, Lalande, Léon
Brunschvicg, Lévy-Bruhl e outros.
Ao mesmo tempo, mantém a colaboração
regular com os jornais portugueses, mostrando-se como um correspondente que
conhece profundamente a vida política, cultural e social francesa.
Em 1912, muda-se por uns meses para a
Alemanha, instalando-se em Berlim e Parchim[5], a terra daquela que seria
a sua primeira mulher. Naturalmente, ganha admiração por esse país sumptuoso,
próspero, temido e civilizador. Mais tarde, muitos confundirão esses
sentimentos e acusam-no de simpatias germanófilas, no sentido pejorativo do
termo. E, no entanto, Aquilino nunca deixou de se revelar sobretudo como um
humanista e um acérrimo adversário da violência e da guerra.
[Locutor. Texto de Aquilino.]
A Alemanha que procede de Versalhes é dos
tais vencidos a que deixaram os olhos para poder chorar. Retalharam-na,
empobreceram-na, humilharam-na, quando a boa política seria apenas arrancar-lhe
unhas e dentes, que tão assanhadamente arranharam e morderam, para que cedo, um
meio século, não ousasse recomeçar[6].
[Locutor.] O que é certo é que a primeira Grande
Guerra obriga Aquilino a um regresso a Portugal, mesmo antes de concluir a
licenciatura. Apesar disso, ensina no Liceu Camões, e em 1919 é convidado por
Raul Proença para trabalhar na Biblioteca Nacional, onde convive com escritores
de nomeada e onde germinará o grupo da Seara
Nova. Para além de Aquilino e de Proença, integram esta revista de
intervenção alguns dos melhores espíritos republicanos do tempo, como Jaime
Cortesão, Câmara Reis, Raul Brandão, Augusto Casimiro, Faria de Vasconcelos,
Azeredo Perdigão e outros. Entretanto, a instabilidade política da primeira
República continuava, com o descontentamento popular a crescer à medida que os
governos e as intentonas se sucediam a um ritmo de descontrolo. E acontece
assim naturalmente o 28 de Maio de 1926, que consegue um consenso quase
contranatura, da esquerda à direita, contra António Maria da Silva. Logo após o
golpe, no entanto, há muitos que pressentem o caminho da tentação totalitária.
[Fernando Rosas.] No fundo, a reorganização tardia do bloco
social do 5 de Outubro, a esquerda republicana com os movimentos organizados do
operariado, este sector, este sector desde muito cedo compreende que aquilo,
que aquela ditadura vai querer destruir uma certa ideia de República, radical
ou com preocupações sociais, por que eles se batiam nos anos vinte. E com o
afastamento do Cabeçadas e as primeiras depurações começa a conspirar. Ora,
muito naturalmente, como homem, como republicano libertário, de simpatias
anarquistas, que é o Aquilino Ribeiro, ele vai estar presente nesta
conspiração, vai estar presente e vai participar como combatente, naquilo que
foi a mais importante revolta contra a ditadura, apesar de ter sido, não
rigorosamente a primeira, foi a segunda, há um pequeno levantamento em Chaves,
logo em 1926, mas a primeira grande revolta contra a ditadura e aquela que
realmente a ameaçou é a revolta de 3 de Fevereiro no Porto e 7 de Fevereiro em
Lisboa. Há uma dilação no tempo e o Aquilino Ribeiro vai combater com os
revolucionários que vêm para a rua combater no 7 de Fevereiro em Lisboa; ele
faz parte dos combatentes que ocupam o sector dos ministérios no Terreiro do
Paço, a zona oeste dos ministérios, ocupam os ministérios e o arsenal de
marinha, essa parte da revolta nunca se consegue unir com a outra, chefiada
pelo Agatão Lança, que anda pelos lados do Rato e da Rua da Escola Politécnica,
fica aí, é aí cercada, é aí bombardeada, bate-se durante dois dias, até ao dia
8, 9 de Fevereiro e o Aquilino Ribeiro é ferido, é ferido por um estilhaço de
granada e vai ter que abandonar os, enfim, a zona que ocupa nas instalações dos
ministérios, ferido, ferido na testa e… e… e… carregado pelo meu avô materno,
Filipe Mendes, que era um, também, era um dos dirigentes civis dessa revolta
militar.
[Locutor.] Aquilino foge para a Beira Alta e dali
toma os caminhos de um segundo exílio parisiense, que dura um ano. É entretanto
demitido do seu lugar na Biblioteca Nacional e no final de 1927 regressa
clandestino a Portugal, acolhendo-se nas Beiras, mas Aquilino é um homem de
acção, por isso em 1928, vemo-lo implicado no frustrado movimento do Regimento
do Pinhel, que se opunha ao governo. É preso no Fontelo, mas volta a revelar um
especial jeito para se evadir. Na noite de 15 de Agosto, de festa da Senhora da
Lapa, Aquilino Ribeiro e António Gomes Mota serram as grades da cela
disfarçando o barulho no som de uma grafonola a tocar. É a oportunidade
esperada. Um salto pelo alçapão do subterrâneo, a correria até ao muro da
estação, a busca das livres serranias. Pela terceira vez, Aquilino ruma a
Paris, mais tarde o sul de França, Baiona, Vigo. Em 1932, reentra
semiclandestinamente no nosso país e instala-se em Abravezes no distrito de
Viseu, antes de se mudar para Lisboa. Entretanto, na Europa começa a emergir o
fenómeno nazi que um Aquilino sempre atento à política internacional considera
como uma consequência inevitável da falta de senso que presidiu às decisões do
Tratado de Versalhes, aquele com que foi assinalado o final da primeira Grande
Guerra.
[Locutor. Texto de Aquilino Ribeiro.]
Em Versalhes não se pretendeu estabelecer
a verdadeira concórdia entre as nações, mas sim dar satisfação aos ódios
triunfantes. É explicável; mas deixassem, ao menos, criar ossatura à nascente
democracia alemã, chorona e paz de alma. Ao contrário, a mísera veio disforme à
luz e morreu de consumpção chupada pelos vampiros francês e britânico com seus
acólitos. Hitler desabrochou do nateiro de miséria, de opressão, de vexame, de
rancor reprimido como flor onde menos se espera, miraculosamente, por conjura
do vento, húmus e sol. Aí têm Átila II. Por agora está a forjar o gládio;
quando o tiver forjado, brandi-lo-á com fúria sobre a Europa espavorida e nada
saberá resistir-lhe. É fatal[7].
[Locutor.] Hitler estendera as garras nazis, com a
complacência ou mesmo cumplicidade de uma Europa que sacode responsabilidades,
enganando-se a ela própria. Em Portugal, o regime olha até com simpatia para o
exemplo autocrático que chega de Berlim. Assim se vão apertando as malhas da
unicidade e das proibições, com falsos argumentos de interesses nacionais
transformados em dogmas que não se discutem.
[Salazar discursa.]
Não discutimos Deus e a virtude. Não
discutimos a pátria e a sua história. Não discutimos a autoridade e o seu prestígio.
Não discutimos a família e a sua moral. Não discutimos a glória do trabalho e o
seu dever. Assim se assentaram[8]… …
[Locutor.] Felizmente para muitos, a polícia não
consegue controlar a mente e o pensamento. Aquilino mantém-se fiel aos seus princípios
e aos seus ideais e quando chamado a pronunciar-se, manifesta-se
inequivocamente a favor da mudança; mas, para além das posições públicas, os
intelectuais da oposição nunca deixam de se reunir em tertúlias de discussão
livre, para gáudio dos participantes e arrepio dos inefáveis agentes da PIDE. E
um dos locais certamente mais vigiados era o Chiado, na Baixa lisboeta.
[João Abel Manta/Arquitecto.] Eles reuniam-se…, eu tenho impressão que
era fundamentalmente ali na Brasileira, Bertrand… quer dizer… Era o Chiado, não
é? Era um sítio, quer dizer, não é o Chiado de hoje. Era um sítio parrana, não
é?!, quer dizer, a gente descia o Chiado, encontrava praticamente toda a gente,
não é?
Juntavam-se ali todos e, então, o meu pai
descia da Brasileira, o Aquilino, a meias tantas, não ia muito à Brasileira, o
meu pai descia da Brasileira, descia, enfim, talvez o Lopes Graça ou qualquer
coisa, encontravam-se ali à porta da Bertrand, estavam ali coisa, e depois
desciam mais uns metros e naquela loja das floristas, não é!?, que era a loja
de entrada, então, ia tudo em grupo, em magote, subia para o consultório do
Professor Pulido Valente, que era, enfim, a figura, uma figura, digamos,
extremamente respeitada, e era uma figura assim magra, essa coisa toda. Tinha
muita piada, eu assistia várias vezes a isso, a essa descida entre a Bertrand e
o consultório do Pulido, juntava-se aquele magote todo e subia tudo lá para
cima. Então, as conversas, discutia-se tudo, pá, desde o Beethoven e a Missa Solene, pá, até ao
Proust, quer dizer, o Professor Pulido obrigou o meu pai, já uma pessoa idosa,
a ler o Proust todo, hã? Está a perceber? Você já pensou o que é um homem de
sessenta anos ser obrigado a ler o Proust!? O gajo exigia que os amigos lessem
o Proust. Ele tinha uma grande admiração pelo Proust e, enfim, essa coisa toda;
e o meu pai devorava aquilo, quer dizer, ele era uma espécie dum Mestre...
Discutia-se muito, quer dizer, era uma tertúlia…, com certeza que se discutia
política, com certeza que se desancava o Estado Novo, não é?, porque ali não
havia pides, não é?, e… e discutia-se tudo.
[Locutor.] Mas, se a mente e a palavra, esta em
ambientes íntimos, são difíceis de controlar, o mesmo já não se passa com a
escrita. Salazar, embora admirando o estilo literário de Aquilino, não lhe
perdoa a integridade. E a hipótese de vingança parece surgir em Março de 1959,
quando o Ministério Público entende que a publicação do livro Quando os Lobos Uivam ofende, primeiro, a magistratura,
depois, a PIDE, a seguir, o Presidente do Conselho e, por fim, o bom nome de
Portugal, pondo em causa a segurança do Estado, crimes que o podem condenar a
oito anos de cadeia.
[Mário Soares.] Ele é um grande escritor. Esse livro, a
meu ver, é um dos livros menos expressivo, talvez dos menos expressivos da obra
dele, e não há nenhuma razão para ele poder ser jugado ou condenado, não tem
nada, mas é má-vontade, realmente, só a má-vontade do regímen contra ele, que
ele sempre foi da oposição, é que fez com que isso acontecesse. Isso deu-lhe,
aliás, um prestígio enorme nas fileiras da oposição e pode dizer-se que daí até
à sua morte o Aquilino é considerado como a grande referência dos democratas
portugueses e da gente da oposição, de todos os partidos, porque, há uma
brincadeira que ele faz, de natureza linguística, acerca da palavra «plenário»,
que começa assim, não me lembro como é, mas diz: a língua tem as suas
leprosarias. Veja-se esta palavra «ple-ple-plenário», que é…, e depois começa a
brincar, o que é que se pode considerar o plenário, para chuchar naturalmente
com o tribunal plenário.
[Imagem — a
acusação]
A C U S A Ç Ã O
Acuso, em querela provisória o arguido
AQUILINO GOMES RIBEIRO, mais conhecido por Aquilino Ribeiro, casado, de 73 anos
de idade, escritor, filho de Joaquim Francisco Ribeiro e de Mariana do Rosário
Gomes, natural do Carregal, concelho de Sernancelhe, comarca de Moimenta da
Beira, e residente em Lisboa, à Rua António Ferreira, n.º 7-1.º direito; pois
os autos apresentam indícios probatórios suficientes de que:
1.º
Pouco tempo depois da última eleição para
a Presidência da República (fls. 16 a 19) e quando ainda se sentia o efeito da
agitação provocada pela mesma, publicou o arguido o livro que escreveu
intitulado «Quando os lobos uivam», a seu pedido rapidamente editado pela
Livraria Bertrand de Lisboa, composto e impresso na Imprensa Portugal-Brasil,
da Venda Nova-Amadora, desta comarca, numa edição normal de 8900 exemplares,
300 da de luxo e 25 da de luxo do autor.
2.º
De acôrdo com o arguido, a edição foi
distribuida por muitas entidades e pontos de venda (onde são normalmente
entregues todas as edições da Bertrand) do continente, ilhas adjacentes,
ultramar e estrangeiro (fls. 93 a 116), com tanta rapidez que posto à venda em
31 de Dezembro de 1958 já só existiam no armazem da livraria editora, em 24 de
Março do ano seguinte (fls. 26), 74 exemplares da edição de luxo e 32 da
normal, apesar de normalmente as edições dos
[Locutor.] O processo é de facto ridículo, tanto do
ponto de vista técnico-jurídico como moral. A defesa de Aquilino assume o
ataque. Realça o perfil democrata do acusado e questiona a legalidade do
próprio regime; e as reuniões preparatórias dessa estratégia, em casa de Manuel
Mendes, chegam a ser divertidas.
[Alfredo Caldeira/Filho de Heliodoro Caldeira/Advogado de Aquilino.] Eram de facto reuniões de grande empenho colectivo e ao mesmo tempo de grande alegria, enfim, com todos os perigos que rodeavam a situação, mas de alguma maldade, vão buscar algumas das maiores figuras da literatura portuguesa para provar
[Alfredo Caldeira/Filho de Heliodoro Caldeira/Advogado de Aquilino.] Eram de facto reuniões de grande empenho colectivo e ao mesmo tempo de grande alegria, enfim, com todos os perigos que rodeavam a situação, mas de alguma maldade, vão buscar algumas das maiores figuras da literatura portuguesa para provar
[Imagem, como capa de livro:
QUANDO OS LOBOS
JULGAM
A JUSTIÇA UIVA
TEXTO INTEGRAL
DA ACUSAÇÃO E DEFESA NO PROCESSO DE
AQUILINO
RIBEIRO
…
Nova imagem:
A JUSTIÇA UIVA
São
folheadas várias páginas do processo... Só para exemplo, mostremos o que se lê
na primeira delas.
ou injustiça.
ra, é, assim, Pulido Valente.
Por isso, na própria Assembleia Naci
«instituições vigentes», vozes se leva
r, para significar quanto havia sido,
afinal estup
de outros categorizados
professores.
xemplo, a
intervenção do]
que sempre se disse e que nunca ninguém
foi perseguido por isso, nem no tempo da Inquisição; ele tem, aliás, uma frase, grosso modo é esta: eu sou como aqueles velhos
carvalhos que quando tentam dar-lhe uma machadada a machada salta nas mãos de
quem o tenta.
[Duas páginas de carta com abaixo-assinado ao Ministro da
Presidência. Sobre elas, como legenda, em letras negras de tipo grande:
Excelentíssimo Senhor Ministro da
Presidência
«Os escritores e jornalistas portugueses
abaixo
assinados, perante a instauração de um
processo a Aquilino Ribeiro, …»]
[Locutor.] E as machadas, não uma mas centenas, saltam
sob a forma de vozes, de textos, de protestos.
[Imagem, onde se pode ler os nomes de:
João
de
Barros
João da Silva
Natália Correia
Antonio
Sergio
Mario Areias
Mario Monteiro Pereira
Ferreira de
Castro
Sebastião Ribeiro José
Ferreira Peortas Lobo
Alexandre
O’Neill
Hernani
Cidade
Mário Cesariny Vasconcelos
Armindo
Rodrigues
Cristiano
Lima
José de Bragança
Antonio José
Fernandes Raul de
Oliveira
César de Frias
Augusto Abelaira
Assis
Esperança
Alberto Candeias
Luis
Penedo
Rafael Marçal
Mario Henrique Leiria]
A indignação só
se compara à incredulidade e a reacção é imediata.
[Imagem de página de texto de Aquilino, muito emendado, palavras riscadas.]
[Imagem de página de texto de Aquilino, muito emendado, palavras riscadas.]
E como a
cultura não tem fronteiras, o assunto chega rapidamente a outros lugares.
[Imagem
DOCUMENTOS
PORTUGAL
L’écrivain
Aquilino Ribeiro
poursuivit pour atteinte au prestige
du pays
Lisbonne, 16
novembre (A. F. P.). —
M. Aquilino Ribeiro, l’un des plus célè-
bres écrivains portugais contemporains,
a été inculpé samedi par le tribunal]
(Jorge Reis.) Um dia na rádio, catrapuz, pá, no telex,
telegrama da France Press para Lisboa. Diz que o Salazar move um processo ao
Aquilino Ribeiro, por isto, por Quando
os Lobos Uivam, por causa do romance… Quando
os Lobos Uivam; eu fiquei aterrado, pá, … então, mas… como é que um
safardana qualquer, um safado, se permite fazer um processo a um escritor, ao
maior escritor português, pá? Agarrei no telefone e, felizmente, pá, porque
tinha relações, e era meu amigo… e telefonei ao Mauriac, que eu por sorte
estava em Paris e disse…, prémio Nobel, não é?, eu disse… bem… Mestre!, etc. …
Passa-se isto, assim, assim, em Portugal, pá… «O quê? e tal…», ele… Não
conhecia bem o Aquilino, não conhecia, mas era escritor e que um escritor, que
o pensamento fosse perseguido, para ele… E diz-me: — Olhe, ó Reis, passe cá,
quando sair da rádio, passe cá por minha casa. — Não ficava longe, a rua é na
Avenida Théophile Gautier e ele escreveu um protesto, e disse: Mande para o Monde, mande para a revista Europa[9] e vá ver estas pessoas todas. E eu,
acompanhado pelo Professor Barradas de Carvalho, andei de porta em porta, mais
ou menos, a colher assinaturas, desde o Aragon, desde … bem, essa gente toda,
pá. O Supervielle, toda a gente, … a Elsa Triolet, toda a gente assinou o
protesto… que eu mandei para Portugal, para o Carlos de Oliveira, que entregou
isso ao Aquilino e ao advogado, ao Heliodoro Caldeira. É claro, quando aparece
essa coisa, isto tem uma retumbância enorme, foi publicado no Monde, aqui na imprensa e
aqueles labregos de Lisboa, não é?, … aqueles tipos devem… …
ficaram aterrados. Imagine! O Salazar queria dar uma nota…, tinha dado
entrevistas a uma tal Cristina Garnier e queria passar por um homem civilizado
e sai um borra-botas a insultar a literatura portuguesa, na pessoa do Aquilino
Ribeiro.
[Mário Soares.] É possível que o Salazar se tenha
apercebido que isso jogava contra ele próprio. E, aliás, isso teve uma tal
repercussão nos meios intelectuais europeus e houve tantas petições que foram
organizadas pela oposição, a dizer: está aqui um homem, que é uma pessoa já de
idade, com um prestígio destes, um grande escritor, com dezenas de livros
publicados e tal e mesmo assim não tem respeito e, por causa de um livro que
vagamente diz umas coisas, ele é processado e julgado, vai ser preso se calhar,
enfim, isso deve ter pesado porque os agentes que o Salazar tinha no
estrangeiro, devem-lhe ter dito que a coisa se estava a voltar completamente
contra eles, sobretudo sendo ele como ele era um candidato sério, que chegou a
ser, ao prémio Nobel.
[Locutor.] A candidatura de Aquilino ao prémio Nobel,
encabeçada por Francisco Vieira de Almeida e subscrita por centenas de
escritores e artistas portugueses, poderia ser o epílogo para a obra daquele
que é considerado o maior escritor português do século XX, mas, mais importante
e menos discutível do que a vasta produção literária, é a forma como viveu a
sua própria vida, pautada pela autenticidade, pela coerência e pela defesa
intransigente de princípios e de valores, como a liberdade, a solidariedade e a
amizade. Mesmo que esta revestisse, por vezes, a forma de um beirão de rija e
por vezes difícil têmpera.
[Baptista Bastos.] Um dia o tenente-coronel Ribeiro da
Fonseca, que tinha sido marido da Maria Lamas, escreveu uns artigos no Diário de Lisboa contra o tabagismo, e eles eram muito
amigos, porque eram companheiros da mesma, da mesma ala, da liberdade. Eram
homens antifascistas, eram homens, enfim, dessa gente. E o Aquilino decidiu
meter-se com o tenente-coronel Ribeiro da Fonseca, mas em brincadeira e num
artigo lá do Século disse exactamente o contrário daquilo
que o Ribeiro da Fonseca estava…, tinha dito. — Ah! O tabaco faz muito bem, o
tabaco é muito bom — dizia ele. — Inspira, não sei quê… e tal… — Bom.
Passaram-se uns dias e uma certa tarde, estava o Aquilino Ribeiro à porta da
Bertrand, e entra o tenente-coronel Ribeiro da Fonseca e o Aquilino estende-lhe
a mão: — Boa tarde, ó Fonxeca, ’tás bom? — disse ele. E o outro a … dizer: —
Não aperto a mão a galegos. — E o Aquilino, estava com a mão no ar, bumba!,
deu-lhe imediatamente uma estalada e envolveram-se os dois à…, ali numa cena
absolutamente patética e grotesca, porque eram dois velhos, dois homens
antigos, ali dois amigos. Foi o Armindo Rodrigues quem interveio e os afastou e
que depois perguntou: então, ó Mestre Aquilino, então o senhor, você, com esta
idade, meter-se dentro…, depois, ele: então o que é que voxê queria que eu
fijesse? Estava com a mão no ar, onde é que eu havia de pô-la?
Quer dizer, era isto que o Aquilino no
fundo era e que ressuma dos seus nos livros dele. O Aquilino é o Malhadinhas,
por extensão. O Aquilino é também o S. Banaboião, o Aquilino é também «O burro
e o seu burriqueiro», que é um dos textos mais espantosos da literatura
portuguesa, dum livro dele que é o último e que é póstumo, que é A Casa do Escorpião. Quer
dizer, o Aquilino é isso, é esse Portugal que ele amava — e que ele interpelava
— porque o Aquilino interpelou permanentemente Portugal, pôs-nos cá em cima,
para, porque amava Portugal, ele não entendia, não entendia por que é que este
país, com esta gente, com este povo, não entendia por que é que esta gente e
este povo, tinham sido e continuam a ser, tão mal governados. Era essa a grande
questão que o Aquilino nos punha.
[Rosto de Aquilino, de quadro a óleo, contemplando, olhando
sem nos fitar, da última estação da vida, um olhar profundamente sério,
triste, com intensidade e inteligência idênticas às que vimos na
fotografia dele com a mãe, no início deste documentário. Outros desenhos.]
[No ecrã, sobre duas fotografias-desenho:]
Voz de Aquilino/Cortesia RDP
A vida apaixonou-me sob, sob todas
as formas, sobretudo essas formas insignificantes que não me chamavam a atenção
dos outros. Eu nasci no meio dos castanheiros, na zona dos castanheiros. Sabe
que o castanheiro é uma (i) árvore bonita, uma árvore da força e da beleza…; um
castanheiro é uma cidade, uma cidade para os pássaros, há o peto-real, há a
poupa, há o melro, que fazem o ninho nas, que fazem o ninho nos castanheiros,
um perfeito mundo… E, depois, as pastoras que vêm, com os seus tamanquinhos…
britar o ouriço… e com uns britadores especiais, tem muita graça, e com o seu
capuchinho, a apanhar as castanhas, todas as manhãs, quando vem um bafo de
vento, e quando elas começam a rir… — a castanha é uma coisa muito bonita.
[No ecrã, em letras brancas sobre fundo negro:]
2.ª Parte
Letras que
dão voz ao povo.
O amor pela
terra, pelas
suas gentes,
pela vida.
[No ecrã:]
Quem conta um
Conto
Acrescenta um
Ponto
[Letras pretas escritas à mão em quatro tiras de pano
branco, aplicadas em superfície castanha. Sobre um palco. No ecrã, legenda:]
«Mestre Grilo
cantava
E a Giganta dormia»
Aquilino Ribeiro
[A formiga.] — Ah, sua calaceira, cante, cante. Cante
connosco a chamar o Sol. Que não se demore muito de trás os montes e nos traga
alegria e claridade.
[A figura do meio.] — Estou mesmo para isso! Ai, sabe que
mais, outro ofício e deixe dormir quem tem sonooo...
[A formiga.] — Outro ofício?... Essa não é má! Saiba,
sua estúpida. Eu nasci para cantar. Tenho-o como um dever. Quando não cantar,
reze-me pela(i)alma.
[A de vestido azul e colete amarelo.] — E chocando as asas tornou à cantiguinha.
[Formiguinha.] — Sol ri-co, ri-co, rico, rico, rico…
E, em coro, sapos, ralos, rãs, cigarras,
respondiam pela várzea fora:
[Locutor.] Disse uma vez Óscar Lopes que quem
escreveu como Aquilino acerca das crianças, acerca dos bichos, acerca das
camadas sociais na mó de baixo, acerca do amor e das coisas terrenas,
acreditava com certeza em algo muito importante. Pelo seu lado, o próprio
escritor gostava de afirmar que o melhor da sua obra estava na literatura
infantil.
[Imagem do teatrinho, agora com menos o da
guitarra e mais duas figuras masculinas. Vão representando ao mesmo tempo que o
locutor fala.]
— … dou sempre o meu melhor…
[Mariana, neta de Aquilino Ribeiro.] — Sim, já que tudo nos livros para crianças…
foram feitos também para pessoas muito próximas e isso, quer dizer, foram
feitas para os dois filhos, para o meu tio Aníbal, que era o filho mais velho
do meu avô, para o meu pai e… para mim; por isso, foram feitos, também, a
pensar em pessoas queridas…, para ele. E era fácil, também, que se calhar a
sensibilidade se notasse mais, aí. Mas penso que não, que nos outros livros
também se nota, quer dizer, o amor que ele tinha pela natureza, pela terra,
pelos homens que vivem da terra e na terra, acho que se nota. E pelas ideias,
quer dizer, também…, eu sempre ouvi a minha avó falar do meu avô… com uma
grande ternura, penso…, quer dizer, penso, não, tenho a certeza, que o meu pai
também tem uma grande admiração por ele e… e… sente muito a falta dele, ainda
hoje. E isso, de facto, só é possível quando as pessoas são pessoas com uma
grande sensibilidade. Independentemente das outras histórias que também se
contam de que ele era um homem duro, forte, não no sentido de mau, mas de
forte, quer dizer, teimoso, que levava as coisas dê… e provavelmente não seria
uma pessoa de fácil trato. Mas, pronto, penso que tinha o outro lado e se
calhar é nos livros que a gente o apanha melhor, ou as pessoas que não o
conheceram bem, que apanham bem esse lado.
[Locutor.] Para além da sensibilidade, um outro
aspecto que é unanimemente reconhecido em Aquilino Ribeiro é a sua enorme
capacidade de trabalho. E o primeiro reflexo dessa capacidade é naturalmente o
número de livros publicados, quase setenta, o que perfaz a extraordinária média
de mais de um livro por ano de vida literária. Os editores chegavam mesmo a
esperar pela novidade aquiliniana na chamada rentrée de Outono, hábito enraizado na
regularidade da resposta do escritor. E para este, a produção fluía com a
naturalidade do próprio respirar.
[Aquilino Ribeiro Machado.] Ele fazia as coisas, com relativo, com
relativo à-vontade, na construção e na estruturação dos enredos e dos quadros
que ele, uma vez falava comigo na estação do caminho-de-ferro da Cruz Quebrada,
onde tínhamos ido tomar o comboio para Lisboa; dizia — Então, esta história… —
E eu: mas como é que se constrói a história?
— Ah, isso para mim não tem dificuldade.
Olha! Fazia este quadro, primeiro. Depois, fazia aquele, depois, fazia
aqueloutro…
E, depois, com esta composição estava
desenvolvido o livro. Ele, ali em cinco minutos tinha feita, tinha feito o
guião duma novela, do princípio ao fim.
[Locutor.] [Pequeno filme: dois homens ainda novos (um deles, Henrique
Almeida) percorrem uma rua; casa e janelas; rua da cidade e casas
tradicionais.]
E assim se vão sucedendo as obras de
ficção, os romances, as crónicas, o teatro, o articulismo, o ensaio, obras que
ao longo de várias etapas remetem para uma grande diversidade de lugares, num
itinerário que hoje pode ser perfeitamente identificado sob o ponto de vista geográfico.
Já no que toca aos hábitos e à comunicação, naturalmente, mudaram muito desde
então.
[Henrique Almeida/Centro de Estudos Aquilino Ribeiro. Na
rua da cidade.] Dizia Aquilino que os veros aldeãos da Beira se reconheciam no
breve farricoco que ele tinha criado ficcionalmente nas suas obras. Significa
isto que no caso dos da actualidade, nós vamos à Beira e reconhecemos, de
facto, certas personalidades que projectamos na ficção. Portanto, há um
paralelo entre as personagens da ficção e as personagens do real. De alguma
forma até, estão vivos e transmitem esse relato ainda oral. Em todo o caso,
houve grandes transmutações. E hoje em dia é muito mais fácil identificar esses
lugares, seguindo como que um percurso aquiliniano, o itinerário aquiliniano,
por conseguinte, que reconstitui com fidelidade os lugares ainda hoje
reconhecíveis como tal, num ou noutro caso, às vezes, desconfigurados já um
pouco, mas quanto à linguagem que as pessoas hoje em dia usam, já não é a mesma
que nós encontramos nas obras de Aquilino. Porquê? Por vários factores, desde
logo pelo factor da televisão, que, manifestamente, altera mentalidades, altera
o linguajar e por conseguinte dá algum distanciamento entre os, a actual
população aldeã e aquela que Aquilino retrata nas suas obras.
[Homem a gadanhar hastes de milharal, já sem maçarocas?;
mais trabalhos do campo.]
[Locutor.] A forma como Aquilino trata e ficciona as
personagens e os ambientes onde se movem, o estilo que imprime nos seus livros
é precisamente um dos aspectos mais polémicos da sua obra.
[Locutor diz texto de Aquilino.] Certos críticos acusam-me de renovar o
vocabulário, à custa da fala do povo. Em muito pequena percentagem, e todavia
nunca inventando. Por via de regra, detesto o neologismo. Só por necessidade.
A verdadeira língua viva foi o povo que a
fez. Uma cidade com as suas fábricas, os seus museus, os seus palácios, o seu
roteiro complicado, tudo isso não é nada como obra humana comparado ao trabalho
da língua[11].
[Locutor.] O estilo aquiliniano é indubitavelmente marcado
pela ruralidade e insere-se numa tradição de respeito pela língua, de
desvanecimento pela língua, de pesquisa da própria língua. A exemplo de outros
como o Padre António Vieira, Frei Luís de Sousa ou Camilo Castelo Branco; mas,
sendo um autor predominantemente português, não deixa simultaneamente de nos
legar uma marca de universalidade, fruto de uma vida cosmopolita e do
conhecimento profundo da literatura estrangeira, nomeadamente, a francesa.
[Jorge Reis.] O Aquilino formou-se aqui em Paris. E não
só se formou, acabou de formar-se como homem, mas formou-se como escritor; a
língua, isto é a minha tese, é o que me parece, pá, a língua aquiliniana,
aquela impenetrável língua, aquela que obriga a um dicionário, os escritores,
foi aqui aprendida em Paris, não porque houvesse portugueses, … foi pela,
digamos, pela língua francesa, e ele compreendeu o que é a língua francesa e
compreendeu que a língua francesa é uma língua feita de um somatório de patois, que o Flaubert não
escreve como o Zola, que o Maupassant não escreve como o Balzac, etc. E todos
eles são franceses. Ele percebeu, como um grande escritor pode, percebe, ele
percebeu que a língua, que as palavras são como bichos, como ele dizia, pá, que
a língua é o capital mais precioso dum homem, pá; é um meio de comunicação e é
um meio de criar outra vida.
*
Começam a aparecer páginas de jornais, a capa do Jardim das Tormentas, imagens
de Paris, foto de Aquilino, nos seus quarenta anos, em plena força. O locutor
vai falando.
[Primeira
página de
a vanguarda
Lisboa,
quarta-feira. 22 de Fevereiro de 1917
ABUSO DO
PODER
Um dictador de operetta | Revista do dia |
Questões filológicas | Illusões da pobreza… de matéria e espirito
República
Ano XXXV (II
Série), N.º 3484, 4.ª-feira, 6 Fevereiro 1946
«O escritor e
os seus fantasmas»
por Aquilino
Ribeiro
[Na primeira página, a 3
colunas:]
O romance naturalmente esposará a causa do
povo, se assim se pode chamar o ocupar-se com as misérias e virtudes, os sonhos
e as realidades, os anseios e as cruezas do magma humano no que oferece de mais
rico e profundável. O homem, este animal que está ao alto da escala biológica
na majestade e na relice, é no polipeiro que se encontra mais estreme e
pitoresco. O melhor dador ……………………………………..
O SÉCULO
n.º 16718, 1.ª
página, artigo de Aquilino
«A democracia
francesa»]
*
[Locutor.] O conhecimento ímpar da língua vai
permitir a Aquilino, não só uma vastíssima produção literária, mas também uma
significativa actividade jornalística, actividade que lhe permite, aliás, os
primeiros contactos com o grande público, ainda no dealbar do século. A
colaboração regular que manterá com a imprensa permite-lhe, como ele próprio
dizia, fazer o punho para a escrita ficcional. Também segundo Aquilino,
[Capa da 1.ª edição de Jardim das Tormentas.]
o livro de estreia foi o Jardim das Tormentas, cujo
original foi entregue durante o primeiro exílio parisiense ao velho Aillaud,
seu editor e amigo. Seguem-se-lhe dezenas de outras obras, denotando todas um
amor profundo à terra e às raízes. Aliás, muito
[Foto de Aquilino nos seus quarenta anos, em plena força.]
mais tarde, Aquilino Ribeiro virá por
razões idênticas a entusiasmar-se com uma propriedade do concelho de Paredes de
Coura, que lhe virá igualmente a servir de cenário para um dos seus romances
mais conhecidos.
[Imagem da casa de Romarigães.]
[Aquilino Ribeiro Machado.] O meu pai era um homem filho da terra, não
é?, e estava ligado profundamente à terra; a terra, para ele, representava de
facto a vein, a veiculação efectiva e sentimental a qualquer coisa que não era
apenas a propriedade: era o valor simbólico que estava ínsito na sua posse. Era
a sua juventude, era a sua cultura, recebida nos tempos em que se formou, duma
forma bastante oral, porque era pela oralidade que se transmitia a memória dos
povos da província aos mais novos… O meu pai estava ligado a essa
ancestralidade. E como tal, quando na repartição dos bens que resultaram da
herança do meu avô e foi dado aos herdeiros optar por este ou por aquele bem,
ele optou por Romarigães, porque Romarigães era a terra; era uma grande terra.
Eu recordo-me de ele ter telefonado: «Ficámos com uma terra muito grande; vamos
lá a ver o que é que isto dá!...» — Imagino, notei no tom de voz, já eu andava
no Técnico, que ele estava sentimentalmente satisfeito, porque aquilo
representava, uma vez mais, firmar bem os pés na terra, firmar os pés na terra,
donde lhe vinha a energia, como aquele herói mítico que recebia a força da
terra e para ser morto pelo Hércules teve de ser levantado no ar; pois o meu
pai também recebia muito da inspiração do contacto com a natureza, do contacto
com a natureza, do contacto, ali estava a terra, em Romarigães, e estava
sobretudo uma igreja muito bonita, que, ao lado duma casa em ruínas lhe regalou
o olho.
[Locutor.] Ao longo de quase oitenta anos, Aquilino
Ribeiro regalará os olhos e alertará as emoções para múltiplos aspectos da vida
que o rodeia. Desde o simples chilrear dos pássaros, ao mais complicado
acontecimento político ou social, o que curiosamente faz com que a sua
literatura tenha uma forte carga sensorial.
[Mário Cláudio/Escritor.] Sendo o Aquilino Ribeiro um racionalista,
por formação, por opção mental, e tendo uma prática de racionalidade, por
exemplo, na construção da sua obra e na construção dos seus romances, é um
homem que procede na base de um espírito muito geométrico, muito, muito
rigorista, ele é também um extravasador de emoções, uma figura que vive muito à
base dos cinco sentidos, um sensual, de certa maneira, um autor da visualidade,
da tactilidade, os elementos gustativos, por exemplo, e os elementos olfactivos
são importantíssimos da sua obra e isso cria uma tensão, do meu ponto de vista,
muito provocatória, que é a tensão que existe sempre entre uma regra imposta
com esse carácter de austeridade, quase clássico ou classicizante, conviver com
algo que é altamente explosivo, como é a emotividade humana.
[Imagens de filme: caçador, espingarda, cão, tiros;
fotografia para a posteridade de quatro caçadores, sentados num declive, um
deles ao meio, chapéu, casaco branco e gravata preta, parece Aquilino[12].]
[Vilaça Pinto.] Palavras dum abade: «Ocupemo-nos da santa
trincadeira, que o meu estômago está a gritar contra a cabeça que o governa[13]!» Aquilino Ribeiro. Isto
é uma forma, realmente, de ele dizer, que cria água na boca; quem olha para a
comida e quem gosta de comer, sobretudo estes pitéus do Alto Minho. [Imagens de
filme, árvores, rio, tudo verde, a superfície e o fundo; trutas.] Ele perde-se
no amor pelas trutas. As trutas, para ele, são assim, são assim como que algo
de extraordinário que passa pelo rio e que muitas vezes, iluminadas pelo sol,
fazem das trutas uma coisa maravilhosa, prateada, que depois, sobretudo, como
ele diz, em escabeche, a fugir para o vinagre, são umas delícias. Dizia ele em
determinada altura que o ceote na tasca do Chacim era uma coisa fabulosa. O
ceote de lampreia. Juntavam-se lá os padres e os abades a beberem bom vinho,
que na altura era apelidado do melhor vinho verde que era o vinho dos Arcos,
dizia ele: a maravilha das maravilhas, naquele ceote de lampreia. Ora, isto
define que realmente em volta da mesa se juntava grandes apreciadores e grandes
amantes da comida. O amante da comida é o amante da natureza e o amante da
humanidade.
[Aquilino, já idoso, e duas senhoras, uma delas a mulher;
mais fotografias, ambiente campestre.]
[Locutor.] Aqui estão meia dúzia de tópicos por que
me guiei, amor, sempre mais amor ao próximo do que ódio, respeito pelo real até
à obsessão, originalidade, quer dizer, eu só, contra ventos e marés, na
opulência e na pobreza, e sobretudo no desassombro de ser o que sou e persisto
ser[14].
[Baptista Bastos.] Um dia, estou ali à porta da Bertrand, com ele, da livraria
Bertrand, o café Chiado era em frente, ele esperava pelos amigos que bebiam café,
atravessava a rua que ia à Bertrand, que era a sua editora, e depois ficava ali
um bocadinho à porta… E eu, ia para ao pé dele, enfim, porque, porque também
gostava de ser conhecido, não é? E as pessoas respon…, cumprimentavam-no, com
grande respeito, com grande efusão, com grande cordialidade. E, então, um dia,
ah!..., começavam a aparecer as primeiras, tímidas minissaias. E o Aquilino
estava com o chapéu, com o beiço caído, começou ali a olhar e um dia passa uma
rapariga, mostrando ligeiramente a perna um bocadinho acima do joelho e vejo o
Aquilino, discretamente, porque ele era muito conhecido, não podia estar a
olhar para as miúdas, assim…, e já era um homem de uma certa idade, a deitar
assim o olho…, e eu disse, assim: — Ó Mestre Aquilino, que rica miúda, hã? — E
ele volta-se e… …
— Ó Baptista Bastos, pelo amor de Deus,
voxê não apoquente os últimos dias do velho prosador.
Quer dizer: e todas estas coisas davam de
facto a dimensão sibarita, a dimensão, o gosto de viver, o prazer das mulheres,
o prazer dos amigos, o prazer, enfim, da vida.
[Locutor.] Aquilino Ribeiro nasceu a 13 de Setembro
de 1885 em Carregal de Tabosa, concelho de Sernancelhe. A infância e a
adolescência passada nas serranias marcá-lo-ão para toda a vida. «Nasce-se com
o berço às costas como uma geba e a Beira Alta não tem símile no mundo.» Filho
de um pároco, Joaquim Francisco Ribeiro, e de Mariana do Rosário Gomes,
Aquilino muda-se em 1895 para a Soutosa, na Nave, Moimenta da Beira. A este
pátio acolhedor, aconchegado e aberto, volta sempre em momentos de aflição ou
de simples vontade de recolhimento.
[Maria Josefa de Campos/Viúva do filho mais velho.] O refúgio dele! Ele, quando se escondia,
era para aqui que se vinha esconder. Quando tinha de se, ele veio de, ele veio
em 1927, ele veio para aqui, veio para aqui, primeiro, e depois foi para e foi
para Paris. Era o refúgio dele. … Ele gostava de estar aqui.
Ele andava com… ia à caça com um homem que já morreu, é o Zé caç…, é caçador, é
o Zé sapateiro, que morreu… Ele trabalhava os campos quando era preciso, ele
construiu aquela casa ali assim com a ideia, talvez, de ser a casa do rendeiro,
a segunda, aquela que está ali, e tinha um, tinha mais uma casi…, uma coisa
para os porcos, tinha várias coisas aqui para a agricultura, mas é que ele não
trabalhava na agricultura, evidentemente. …
… Ele escrevia.
[Locutor.] A escrita naturalmente tem uma base
educacional. Aquilino Ribeiro faz o exame de instrução primária no Colégio da
Senhora da Lapa, um colégio jesuíta na cernelha da serra, onde miradoiros
brancos, aos quatro pontos do horizonte, guiam os peregrinos para o santuário.
Em 1900, vai para Lamego, para o Colégio Roseira, onde aprende a ser gente, a
ser livre e a amar a liberdade. Esse espírito, aliado a um carácter determinado,
levá-lo-ão, dois anos mais tarde, a negar definitivamente a vontade de sua mãe
para que fosse padre e a abalar para Lisboa.
Paris: é também uma cidade com especial
significado para Aquilino Ribeiro. Para além de lhe servir de exílio por três
vezes, é aqui que em 1910 conhece a sua primeira mulher, Greta Tiedemann, sua
colega na Sorbonne, a quem, doce e propícia sombra do seu trabalho, dedica o
primeiro livro. Mas Paris é também uma escola de vida e de cultura.
[Jorge Reis.] O Aquilino penetrou na vida francesa, não
sei como, pá!, porque ele não falava de si e eu não estava também, agora, a ser
indiscreto ou assim ò coisa…; mas, penetrou, mal chegou, penetrou na vida
francesa e chupou esta coisa toda, pá!, assimilou tudo. É extraordinário, pá!
Como…, ia a exposições; sabe quem eram os pintores favoritos, preferidos do
Aquilino, quando ninguém os conhecia em Portugal? Eram os fauve; ele ia sempre…, os fauve
para ele, os Matisse, os Derain, essa gente toda é que eram os grandes, pá!
Quando ninguém em Portugal os conhecia, a não ser numa…, num pequeno meio
restrito de pintores, talvez chegasse lá uns ecos. E… música. A senhora, a
primeira esposa, a senhora alemã, tocava piano. Eles tinham, quando casaram
alugaram um piano e o Aquilino deliciava-se com as sonatas do Beethoven; o
Aquilino ia aos concertos à Sala Gaveau, porque era próprio. Eu falo isto,
porque eu tive, eu… o mesmo itinerário, sem saber, sem estar a copiar, eu fiz o
mesmo itinerário que ele, com a diferença de cinquenta anos de idade (pá), mas
íamos à Sala Gaveau aos concertos, aos concertos, à orquestra Colonne, ele fala
nisso nos seus escritos. Mas não fazia, como eu disse, não fazia alarde. Tudo
aquilo era tão natural para ele, tudo aquilo era França (pá).
[Locutor.] A cultura e o amor unem inexoravelmente
Aquilino a Paris. Aqui, foi pai do seu primeiro filho, Aníbal, em 1914, e aqui
voltará a apaixonar-se nos finais dos anos 20, já depois de ter enviuvado.
[Jerónima Dantas Machado.] Uma tarde, bateram à porta, por sinal que
estavam lá as visitas, que eram as senhoras dos emigrados que iam lá para casa,
iam para lá passar a tarde e entre elas a mulher do Chagas e outras senhoras…,
e bateram à porta…, era o Aquilino. Por acaso, o meu pai não estava, tinha
saído dar a sua voltinha, que ele gostava muito de passear, o meu pai. E tive
que telefonar para a casa de um amigo onde ele me tinha dito que ia e dizer-lhe
que estavam lá aqueles senhores, sobretudo o Aquilino. Ele veio e assim está
como eu conheci o Aquilino [breve riso] e como depois nos casámos em Maio.
[Locutor.] Jerónima Dantas Machado, filha do
presidente exilado Bernardino Machado, acompanhará Aquilino Ribeiro por toda a
vida; como mulher, mãe, companheira e, sempre que necessário, dedicada
ajudante.
[Manuel Machado Sá Marques/Sobrinho de Aquilino Ribeiro.] Quem dactilografava tudo, também, ao
Aquilino, era, era a minha tia Gigi, era a secretária do… … e
aqui neste prédio havia uma menina, pequenina, uma jovenzinha, que também
frequentava, porque eles eram muito amigos de crianças, como aliás pode ver. E
a criança estava aqui assim, assistia, portanto, enfim, ao trabalho do escritor
e da minha tia Gigi e um dia perguntaram à jovem: não sei quê do escritor… E
ela riu-se: Oh, oh, oh! Ele não escreve nada; quem escreve é a senhora D.ª
Gigi, ele só anda de um lado para o outro e di… e fala alto. [Ri.]
[Locutor.] Aquilino Ribeiro é um homem que não busca
reconhecimento nem notoriedade. O dia-a-dia é feito essencialmente de trabalho,
de muito trabalho, que o fazia levantar bem cedo na madrugada e passar horas e
horas sentado na banca, a escrever. Apesar de tudo, em 1952, arranja uns meses
para se deslocar ao Brasil, onde receberá as mais altas homenagens de colegas
de profissão e homens públicos brasileiros e onde é condecorado com a comenda
do Cruzeiro de Sul. Em 1956, é o primeiro presidente da recém-formada Sociedade
Portuguesa de Escritores. Uma vida preenchida e coerente, onde cultivou a
inquietação e onde ainda lhe sobrou «tempo para ver como correm as nuvens»[15], para se dedicar à
família e aos amigos; para fazer valer princípios e valores bem entranhados num
espírito beirão de honra, do antes quebrar do que torcer, mas onde há sempre
lugar para a compreensão e para o diálogo.
[Aquilino Ribeiro Machado.] Era um homem bastante afectuoso, que
deixava vir os sentimentos à tona com muita facilidade, quer para um tratamento
ternurento para com os filhos, quer para os increpar com alguma violência,
nunca batendo, mas com alguma violência, porque ele era de feitio um pouco
colérico, um feitio colérico de homem que extravasava sempre as suas emoções.
Não tinha contenção; de quando em quando ficava furioso, atirava com tudo o que
tinha à mão, mas, aquela tempestade vencida, caía em si e imediatamente ia ter
com as pessoas e pedia-lhes desculpa ou fazia qualquer coisa que significasse o
mesmo. Nunca me lembro de o meu pai guardar rancor por ninguém. Era uma coisa
espantosa. Andou aí em guerras literárias com gente que ou não o compreendia ou
que para se afirmar o contrariava e da qual ele podia guardar razões de queixa;
passados anos, chegavam-se mansinhos ao pé dele, mais ou menos escondidos atrás
das costas de alguém e iam cumprimentá-lo e ele: ó fulano, está tudo
esquecido!...
[Música. Esta música continua até ao fim
do genérico e o seu termo coincide com esse fim.]
Lê-se no ecrã:
«Que o escritor
realize o mundo de
beleza que traz
em si, é já alguma coisa.
Quanto ao mais,
que seja o que lhe
apetecer, desde
que não arme em fariseu,
e não esteja
nunca contra os simples,
de braço dado
com os trafulhas,
nem contra os
fracos de braço dado
com os
poderosos[16].»
*
Agradecimentos
Maria Ricardo
Cruz
Luís Henrique
Pereira
Centro Estudos
Aquilino Ribeiro
Cooperativa
Árvore
Grupo de Teatro
Filandorra
Fundação
Aquilino Ribeiro
Imagem
Manuel Liberato
Rui César
Manuel Salselas
Arquivo RTP
Assistente de
imagem
Acácio Pereira
Montagem e
pós-produção
Fernando Pinho
Pós-produção
áudio
Luís Rangel
Sonoplastia
José Gabriel
Técnica de
investigação e pesquisa
Teresa Catanho
Produção
Maria da Costa
Lima
Reportagem e
realização
João Pacheco de
Miranda
© RTP-2000
_________________________________________________________________________
A música do genérico: um amigo a quem recorri, ciente da sua vincada
memória das composições musicais, logo identificou a obra e o andamento:
Concerto para piano, N.º 3, 3.º andamento, Rondó Allegro, de Beethoven.
Agradeço ao JT.
__________________________________________________________________________
[1] Da entrevista a Igrejas Caeiro,
na rádio, 1957, programa O Perfil de um
artista, parte final.
[2] As páginas de jornais,
fotografias, um excerto de filme reconstituindo a explosão na Rua do Carrião,
outro, com imagens da família real, o regicídio: gravuras e fotografias da
época, os corpos no Arsenal— vão ilustrando a fala do locutor. Em AO PAIZ, não
é possível saber se se trata de jornal ou de proclamação avulsa.
[3] Texto não localizado.
[4] Da entrevista a Igrejas Caeiro.
[5] O locutor diz Pátio ou Patium,
em vez de Parchin; «a terra daquela que seria a sua primeira mulher» não é
Parchin, mas Meclemburgo. N’A Alemanha
Ensanguentada, lê-se Parchim (edição nas Obras Completas de Aquilino Ribeiro, acabada de imprimir em 1975).
Lê-se em Aquilino Ribeiro (1885 – 1963), Catálogo
da exposição comemorativa do primeiro centenário do nascimento, Lisboa, 1985,
Biblioteca Nacional (ed.), CRONOLOGIA, p. 18:
1912 —
Reside uns meses na Alemanha, em Berlim e em Parchin, terra de Moltk.
[6] É a Guerra, p. 13, dedicatória ao Dr. António Gomes Mota, datada da
Cruz Quebrada, Maio de 1934. Lisboa, Bertrand, 1.ª edição.
[7] É a Guerra, p. 14-15.
[8] Discurso em Braga, no 10.º
aniversário do 28 de Maio (1936).
[9] É Europe.
[10] O texto de Mestre Grilo cantava e a Giganta dormia, como vem na 2.ª edição, em
separado, deste conto (1976), reza assim:
[…] Ah! Sua calaceira, cante,
cante connosco a chamar o Sol que se não demore muito por detrás dos montes e
nos traga alegria e claridade.
— Estou mesmo para isso! Olhe,
sabe que mais, outro ofício e deixe dormir quem tem sono.
— Outro ofício!... Essa não é má!
Saiba, sua estúpida, que eu nasci para cantar. Tenho-o como um dever. Quando
não cantar, rezem-me por alma.
E chocando as asas tornou à
cantiguinha:
—Sol rico! Rico, rico! Rico…
E, em coro, sapos, ralos, rãs,
cigarras, respondiam pela várzea fora:
—Sol,
sol, sol! Sol… […] […] Sou um grilo […]
[11] Estas palavras encontram-se em Aquilino Ribeiro, n.º 1 da colecção A
Obra e o Homem, Org. Manuel Mendes, Lisboa, Arcádia, 1960, integrando o
belíssimo «Solilóquio autobiográfico literário», páginas 55-87.
[12] E é. A foto vem, no livro
referido na nota anterior, entre as páginas 70 e 73, na página 72 (não
numerada), com a legenda: Caçada nas dunas de Pedrógão.
[13] Aquilino Ribeiro, Andam Faunos pelos Bosques, Lisboa,
Bertrand, edição comemorativa do centenário do nascimento de Aquilino Ribeiro,
p. 58.
[14] Texto não localizado.
[15] Não identificado o lugar de
origem destas palavras. Na secção EFEMÉRIDES, do livro organizado por Manuel
Mendes (ver nota 11), lê-se para o ano de
1960: A pedido de uma centena de signatários, entre eles os primeiros nomes da literatura portuguesa contemporânea, alguns artistas e homens públicos, é proposta a sua candidatura ao Prémio Nobel de Literatura, pelo Professor Catedrático da Faculdade de Letras de Lisboa, Dr. Francisco Vieira de Almeida.
1960: A pedido de uma centena de signatários, entre eles os primeiros nomes da literatura portuguesa contemporânea, alguns artistas e homens públicos, é proposta a sua candidatura ao Prémio Nobel de Literatura, pelo Professor Catedrático da Faculdade de Letras de Lisboa, Dr. Francisco Vieira de Almeida.
E para concluir, diz-nos:
«Trabalhou-se e sobrou ainda muito tempo para ver como correm as nuvens.»
[16] Ver na obra organizada por Manuel
Mendes, a página 65 do «Solilóquio autobiográfico literário», já referido na
nota 11. O texto termina a primeira parte — Identificação —, das cinco de que
se compõe. Esta «Identificação» integra um belíssimo texto sobre a língua
portuguesa (págs. 61 a 65), incluindo no último parágrafo as palavras com que
termina este documentário. Este escrito de Aquilino Ribeiro merece ser mais
divulgado.
Muito bom, este teu trabalho. Não tive tempo de ler tudo mas vou fazê-lo mais tarde.
ResponderEliminarAbraço