domingo, 17 de novembro de 2013

Aquilino Ribeiro

 (Emitido pela primeira vez no programa O LUGAR DA HISTÓRIA, RTP 2000.)

(Gravado na RTP 2 – 15 de Abril de 2013.)

O artista faz rodar um leme como num navio, mas trata-se de uma prensa, tira e vê, vemos um pouco por trás dele, em primeiro plano a mãe e às espaldas dela sobre o seu ombro direito, vestido de negro, Aquilino, homem, mas muito mais pequeno, como filho que nasceu dela. Gravata preta, camisa branca, mãos e rosto brancos. Imagem ampliada. Mais negro: o cabelo de Aquilino, as sobrancelhas e a sombra das órbitas, o bigode. Um traço branco em semicírculo esboçado diz que está no seu peito uma corrente; entre os dedos indicador e médio (segura pelos dedos polegar — que não vemos — e indicador encostada sobre o médio) vemos a sua insígnia, lançando por cima da mão nalgumas manchas brancas o desenho de uma pena. Representa a sua ferramenta de trabalho, a pena em todo o sentido que tem em português: trabalho, fadiga, luta e fé, fé no esforço. Sabe que acabará por vencer. Pena também leve, descobridora, nunca leviana; deixe-se voar, está segura de si como se vê no olhar sereno, quase sorriso, uma ironia que nos interpela. O fato parece de académico, de estudante, seminarista ou colegial, universitário.

Há um manancial de fotografias, excertos de filmes,  desenhos, que acompanham o documentário e só aqui e ali são referidos, para dar uma ideia da sua dinâmica.

 *
[Ouve-se, deve ser José Rodrigues.]
— O. K.     …    …    … Parece que está bom, parece que está bom.    …    …    Ah, está bom, está bom.    …    … Ficou bem, ficou.    …    …    Vê-se a […] dela,  ficou bonito. Ficou bem… Pronto.
[José Rodrigues/Escultor.]  A litografia foi a forma que dez artistas digamos desta casa escolheram para homenagear este grande homem. São dez retratos de um grande homem, de um homem da prosa. Espero que este exemplo provoque outras formas de homenagem, outras formas de projectar este homem no nosso país, no mundo.
[Árvore. No seu tronco, misturando-se na sua aparência a figura de Aquilino, de chapéu, uma mancha, feita dos mesmos traços da árvore, quase indiscernível dela. Sobre a imagem:              
AQUILINO RIBEIRO
(1885 – 1963)]
[Música.] [Em desenho a figura de Aquilino Ribeiro e sobre ela a legenda:
Voz de Aquilino Ribeiro
Cortesia RDP
São seis desenhos.]
É..., evidentemente, temos de amar a verdade, batermo-nos pela verdade e pelo progresso pelo que está…, a humanidade é uma, é como uma prova, como uma gravura, não é verdade?, que está numa máquina; é preciso uma série de provas, nós estamos a melhorar, creio que a nossa obrigação, a obrigação de todos os escritores é realmente interessarem-se nos grandes problemas do mundo e da melhoria do homem e de todos os homens em geral[1].

1.ª Parte
O homem político,
     democrata e amante
            da liberdade.
[Música.] [Filme com imagens de Lisboa: Terreiro do Paço, …    …    …    …, Passeio Público.]
Sobre o filme:
Lisboa, princípios do século XX.
A monarquia está em crise e a geração
saída do ultimato acredita no assalto
revolucionário dos republicanos
ao poder.
O descontentamento social é grande
e a ideia amadurece sobretudo em
tertúlias de jovens intelectuais,
jornalistas e activistas do sindicalismo
operário.
[Fernando Rosas.] É neste caldo de cultura, que mete jovens estudantes, jovens intelectuais, jornalistas, activistas do sindicalismo operário, é neste caldo de cultura onde se entremeiam a tertúlia do café, os círculos culturais, os círculos políticos, os círculos do activismo sindical, e que a Carbonária, os grupos anarquistas, o radicalismo republicano, através da Maçonaria… Há aqui uma ligação, pouco visível mas real entre o mundo carbonário, o mundo anarquista, o mundo maçónico, que também tem divisões claras, mas também anda ali paredes meias com o bombismo dito anarquista ou carbonário. É deste meio, é neste meio onde vemos surgir o Aquilino Ribeiro, um homem muito ligado à Carbonária, ao anarquismo, às duas coisas provavelmente ou seja a uma visão radical, mais radical que o republicanismo pequeno-burguês que está no terreno a dirigir de alguma maneira o Partido Republicano[2].

[O MUNDO
Portugal governado por assassinos
Noite sanguinolenta de ante-hontem… A situação política… Fala-se na suspensão de garanti
                 Crime sobre crime ….Os mortos e os feridos … Mais violências … Correrias
                                                        tiros e numerosas prisões
Posta urgente]

[Fotografia: homens fardados, com civis entre eles, formando todos uma massa compacta.]

[DIÁRIO DE NOTÍCIAS
        … …  os acontecimentos académicos]

         [AO PAIZ
Dos estudantes revolucionarios
                  DE COIMBRA
Jornal?]

[Voz de locutor. O locutor nunca se vê.] 1907 é um ano de grande turbulência na vida política e social portuguesa. Estamos em plena ditadura de João Franco, que, com o apoio de D. Carlos, encerra o parlamento, apesar do protesto cada vez mais veemente das oposições. O escândalo com os adiantamentos à Casa Real alimenta as polémicas nos jornais e os comícios republicanos que zurzem sem piedade nas velhas e anquilosadas instituições. Os estudantes estão do lado dos contestatários e promovem em Coimbra uma enorme e bem sucedida greve académica. Entretanto, o jovem Aquilino, imbuído do espírito dos grupos libertários, guarda em sua casa, na Rua do Carrião, material para fabrico de bombas e num domingo de manhã o desastre acontece. Gonçalves Lopes e Belmonte de Lemos estavam a manipular os explosivos, quando a certa altura se deu uma terrível explosão que vitimou os dois. Aquilino não foi atingido porque como conta o próprio se encontrava às espaldas, a ver por cima dos ombros deles como faziam. Aquilino escapa da morte, mas não da prisão, sendo imediatamente encarcerado na esquadra do Caminho Novo. Aí, ocupa-se sobretudo a planear a sua fuga, que consegue na noite de 12 de Janeiro, depois de forçar habilmente a fechadura da cela e tirando proveito de um conhecimento profundo dos hábitos dos carcereiros. Menos de um mês depois, a um de Fevereiro, o rei D. Carlos e o príncipe herdeiro são assassinados no Terreiro do Paço. O nome de Aquilino Ribeiro será associado ao atentado, embora disso nunca se conseguisse uma prova efectiva.
[Baptista Bastos.] E eu pessoalmente estou convencido, com todo o risco que uma afirmação desta natureza envolve, estou convencido que o Aquilino era — e não sou só eu que pensa isto — que o Aquilino era a terceira carabina do Terreiro do Paço. Era o Buíça, o Costa e o Aquilino, quer dizer…, ele é muito omisso no livro de memórias e… e naturalmente não tem nada que dizer essas coisas, mas eu penso que o Aquilino, com muita frequência, com muita frequência, pegou na arma quando a palavra estava destituída do seu valor interventivo.
[Locutor.] Aquilino Ribeiro entra na clandestinidade e durante meses, embora disfarçado, consegue alguma liberdade de movimentos; mas, em Maio desse mesmo ano, 1908, toma no Entroncamento o Sud Express, com destino a Paris, para o seu primeiro exílio na cidade das luzes.
[Aquilino Ribeiro Machado/Filho de Aquilino Ribeiro.] Para Paris, ele foi com um passaporte maçónico, que é este documento, que lhe permitiu inscrever-se no Grande Oriente de França, como aqui está, na loja L’Action, de Paris.
A data de chegada é de 1 de Junho de 1908 e a documentação apresentada para o identificar era o diploma do Grande Oriente Lusitano, que está aqui dito pelo consulado de Paris.
[Locutor, com texto de Aquilino Ribeiro.] Paris que eu encontrei não era o Paris que tinha na imaginação; sobretudo não era o Paris que me pintavam. Achei-me burlado; romancistas, poetas e historiadores não passavam de uma bela filarmónica de trampolineiros além de que a cidade, em si, casario, monumentos, arruados, não correspondia em nada às imagens que traçara. Tão-pouco me introduziu na atmosfera social a decantada frágua dos grandes ideais por que eu àquela altura dava o cavaquinho. Tudo era regrado, comum, conservadorão[3].
[Locutor.] A frustração do primeiro contacto com a capital francesa é rapidamente ultrapassada. Com um notável poder de ambientação, Aquilino Ribeiro rende-se aos encantos parisienses e consegue inclusive rentabilizar os seus conhecimentos.
[Jorge Reis.] O Aquilino não… teve um comportamento dum observador de Paris, não mergulhou no Paris digamos queirosiano, ele não andou nessas festas, isso não era para ele. O Aquilino trabalhou, trabalhou, trabalhou. Ele já trazia de Portugal o esboço dum, do seu primeiro texto, que é «As Feiras» ou coisa assim, que ele publicava na Ilustração Portuguesa, lá, ele mandou esse artigo e depois começou a mandar para A Beira, de Viseu, e para A Capital, de Lisboa, uma colaboração assídua, semanal, e era com esse dinheiro, o dinheiro que ele ganharia, que ele ganhou com isso, que ele sobreviveu. E sobreviveu rodeado de amigos, um grupo de pintores portugueses, o Manuel Jardim, o escultor, o Anjos Teixeira, tudo isso… e sobretudo o Leal da Câmara. Ele aprendeu em Paris, ele aproveitou, sugou Paris; aproveitou, alimentou-se de Paris. Não andou aí na… em… na vida… não fez uma vida de estudante, não fez uma vida de exilado rico, nada disso, ele vivia do seu trabalho, da sua escrita e … e dos estudos.
Voz de Aquilino Ribeiro
Cortesia RDP
Eu nunca fui verdadeiramente infeliz em Paris. Eu tenho sido infeliz em muitas partes, até mesmo aqui em Lisboa, até mesmo lá na minha aldeia, em Paris, nunca fui infeliz. Se fosse um dia infeliz, no dia seguinte era feliz. Um homem não se perde lá como aqui. Parece que… Todavia, Paris é um deserto para um estrangeiro, não é? E, todavia, um homem anda absolutamente à vontade em Paris. E não há, outra coisa que eu adoro em Paris…, é que um homem tem um ideal qualquer, tem uma necessidade, satisfá-la sempre[4].
[Locutor.] Mas nem tudo são rosas parisienses para Aquilino Ribeiro. Mesmo a mil quilómetros de distância do seu país natal, carrega o anátema de um passado revolucionário, o que desperta o interesse e a vigilância por parte das autoridades francesas.
[Mário Soares.] Eu estive a estudar o século XX, desde essa, o princípio do século XX, partes da Monarquia no século XX e depois o princípio da República. E é muito curioso, porque eu encontrei nos arquivos de França, quer no arquivo do Quai d’Orsay, quer no arquivo, que é o Ministério dos Estrangeiros francês, quer no arquivo do Quai des Orfèvres, que é o arquivo da polícia francesa, as notas que lá havia sobre o Aquilino Ribeiro e dos polícias que o seguiam e tal, e diziam que ele tinha contactos com os anarquistas daquela época em França e que era um indivíduo considerado perigoso, onde ele se reunia, o que é que fazia e como é que…
[Locutor.] Em 1910 dá-se a implantação da República em Portugal. Aquilino pode assim limpar o cadastro e regressar. No entanto, apenas aproveita para uma breve visita no final desse mesmo ano. Volta a Paris e obtém a equiparação dos seus diplomas secundários, o que lhe permite inscrever-se na Sorbonne e contactar durante três anos com grandes mestres da filosofia e da sociologia, com Georges Dumas, Durckheim, Lalande, Léon Brunschvicg, Lévy-Bruhl e outros.
Ao mesmo tempo, mantém a colaboração regular com os jornais portugueses, mostrando-se como um correspondente que conhece profundamente a vida política, cultural e social francesa.
Em 1912, muda-se por uns meses para a Alemanha, instalando-se em Berlim e Parchim[5], a terra daquela que seria a sua primeira mulher. Naturalmente, ganha admiração por esse país sumptuoso, próspero, temido e civilizador. Mais tarde, muitos confundirão esses sentimentos e acusam-no de simpatias germanófilas, no sentido pejorativo do termo. E, no entanto, Aquilino nunca deixou de se revelar sobretudo como um humanista e um acérrimo adversário da violência e da guerra.
[Locutor. Texto de Aquilino.]
A Alemanha que procede de Versalhes é dos tais vencidos a que deixaram os olhos para poder chorar. Retalharam-na, empobreceram-na, humilharam-na, quando a boa política seria apenas arrancar-lhe unhas e dentes, que tão assanhadamente arranharam e morderam, para que cedo, um meio século, não ousasse recomeçar[6].
[Locutor.] O que é certo é que a primeira Grande Guerra obriga Aquilino a um regresso a Portugal, mesmo antes de concluir a licenciatura. Apesar disso, ensina no Liceu Camões, e em 1919 é convidado por Raul Proença para trabalhar na Biblioteca Nacional, onde convive com escritores de nomeada e onde germinará o grupo da Seara Nova. Para além de Aquilino e de Proença, integram esta revista de intervenção alguns dos melhores espíritos republicanos do tempo, como Jaime Cortesão, Câmara Reis, Raul Brandão, Augusto Casimiro, Faria de Vasconcelos, Azeredo Perdigão e outros. Entretanto, a instabilidade política da primeira República continuava, com o descontentamento popular a crescer à medida que os governos e as intentonas se sucediam a um ritmo de descontrolo. E acontece assim naturalmente o 28 de Maio de 1926, que consegue um consenso quase contranatura, da esquerda à direita, contra António Maria da Silva. Logo após o golpe, no entanto, há muitos que pressentem o caminho da tentação totalitária.
[Fernando Rosas.] No fundo, a reorganização tardia do bloco social do 5 de Outubro, a esquerda republicana com os movimentos organizados do operariado, este sector, este sector desde muito cedo compreende que aquilo, que aquela ditadura vai querer destruir uma certa ideia de República, radical ou com preocupações sociais, por que eles se batiam nos anos vinte. E com o afastamento do Cabeçadas e as primeiras depurações começa a conspirar. Ora, muito naturalmente, como homem, como republicano libertário, de simpatias anarquistas, que é o Aquilino Ribeiro, ele vai estar presente nesta conspiração, vai estar presente e vai participar como combatente, naquilo que foi a mais importante revolta contra a ditadura, apesar de ter sido, não rigorosamente a primeira, foi a segunda, há um pequeno levantamento em Chaves, logo em 1926, mas a primeira grande revolta contra a ditadura e aquela que realmente a ameaçou é a revolta de 3 de Fevereiro no Porto e 7 de Fevereiro em Lisboa. Há uma dilação no tempo e o Aquilino Ribeiro vai combater com os revolucionários que vêm para a rua combater no 7 de Fevereiro em Lisboa; ele faz parte dos combatentes que ocupam o sector dos ministérios no Terreiro do Paço, a zona oeste dos ministérios, ocupam os ministérios e o arsenal de marinha, essa parte da revolta nunca se consegue unir com a outra, chefiada pelo Agatão Lança, que anda pelos lados do Rato e da Rua da Escola Politécnica, fica aí, é aí cercada, é aí bombardeada, bate-se durante dois dias, até ao dia 8, 9 de Fevereiro e o Aquilino Ribeiro é ferido, é ferido por um estilhaço de granada e vai ter que abandonar os, enfim, a zona que ocupa nas instalações dos ministérios, ferido, ferido na testa e… e… e… carregado pelo meu avô materno, Filipe Mendes, que era um, também, era um dos dirigentes civis dessa revolta militar.
[Locutor.] Aquilino foge para a Beira Alta e dali toma os caminhos de um segundo exílio parisiense, que dura um ano. É entretanto demitido do seu lugar na Biblioteca Nacional e no final de 1927 regressa clandestino a Portugal, acolhendo-se nas Beiras, mas Aquilino é um homem de acção, por isso em 1928, vemo-lo implicado no frustrado movimento do Regimento do Pinhel, que se opunha ao governo. É preso no Fontelo, mas volta a revelar um especial jeito para se evadir. Na noite de 15 de Agosto, de festa da Senhora da Lapa, Aquilino Ribeiro e António Gomes Mota serram as grades da cela disfarçando o barulho no som de uma grafonola a tocar. É a oportunidade esperada. Um salto pelo alçapão do subterrâneo, a correria até ao muro da estação, a busca das livres serranias. Pela terceira vez, Aquilino ruma a Paris, mais tarde o sul de França, Baiona, Vigo. Em 1932, reentra semiclandestinamente no nosso país e instala-se em Abravezes no distrito de Viseu, antes de se mudar para Lisboa. Entretanto, na Europa começa a emergir o fenómeno nazi que um Aquilino sempre atento à política internacional considera como uma consequência inevitável da falta de senso que presidiu às decisões do Tratado de Versalhes, aquele com que foi assinalado o final da primeira Grande Guerra.
[Locutor. Texto de Aquilino Ribeiro.]
Em Versalhes não se pretendeu estabelecer a verdadeira concórdia entre as nações, mas sim dar satisfação aos ódios triunfantes. É explicável; mas deixassem, ao menos, criar ossatura à nascente democracia alemã, chorona e paz de alma. Ao contrário, a mísera veio disforme à luz e morreu de consumpção chupada pelos vampiros francês e britânico com seus acólitos. Hitler desabrochou do nateiro de miséria, de opressão, de vexame, de rancor reprimido como flor onde menos se espera, miraculosamente, por conjura do vento, húmus e sol. Aí têm Átila II. Por agora está a forjar o gládio; quando o tiver forjado, brandi-lo-á com fúria sobre a Europa espavorida e nada saberá resistir-lhe. É fatal[7].
[Locutor.] Hitler estendera as garras nazis, com a complacência ou mesmo cumplicidade de uma Europa que sacode responsabilidades, enganando-se a ela própria. Em Portugal, o regime olha até com simpatia para o exemplo autocrático que chega de Berlim. Assim se vão apertando as malhas da unicidade e das proibições, com falsos argumentos de interesses nacionais transformados em dogmas que não se discutem.
[Salazar discursa.]
Não discutimos Deus e a virtude. Não discutimos a pátria e a sua história. Não discutimos a autoridade e o seu prestígio. Não discutimos a família e a sua moral. Não discutimos a glória do trabalho e o seu dever. Assim se assentaram[8]…    …

[Locutor.] Felizmente para muitos, a polícia não consegue controlar a mente e o pensamento. Aquilino mantém-se fiel aos seus princípios e aos seus ideais e quando chamado a pronunciar-se, manifesta-se inequivocamente a favor da mudança; mas, para além das posições públicas, os intelectuais da oposição nunca deixam de se reunir em tertúlias de discussão livre, para gáudio dos participantes e arrepio dos inefáveis agentes da PIDE. E um dos locais certamente mais vigiados era o Chiado, na Baixa lisboeta.
[João Abel Manta/Arquitecto.] Eles reuniam-se…, eu tenho impressão que era fundamentalmente ali na Brasileira, Bertrand… quer dizer… Era o Chiado, não é? Era um sítio, quer dizer, não é o Chiado de hoje. Era um sítio parrana, não é?!, quer dizer, a gente descia o Chiado, encontrava praticamente toda a gente, não é?
Juntavam-se ali todos e, então, o meu pai descia da Brasileira, o Aquilino, a meias tantas, não ia muito à Brasileira, o meu pai descia da Brasileira, descia, enfim, talvez o Lopes Graça ou qualquer coisa, encontravam-se ali à porta da Bertrand, estavam ali coisa, e depois desciam mais uns metros e naquela loja das floristas, não é!?, que era a loja de entrada, então, ia tudo em grupo, em magote, subia para o consultório do Professor Pulido Valente, que era, enfim, a figura, uma figura, digamos, extremamente respeitada, e era uma figura assim magra, essa coisa toda. Tinha muita piada, eu assistia várias vezes a isso, a essa descida entre a Bertrand e o consultório do Pulido, juntava-se aquele magote todo e subia tudo lá para cima. Então, as conversas, discutia-se tudo, pá, desde o Beethoven e a Missa Solene, pá, até ao Proust, quer dizer, o Professor Pulido obrigou o meu pai, já uma pessoa idosa, a ler o Proust todo, hã? Está a perceber? Você já pensou o que é um homem de sessenta anos ser obrigado a ler o Proust!? O gajo exigia que os amigos lessem o Proust. Ele tinha uma grande admiração pelo Proust e, enfim, essa coisa toda; e o meu pai devorava aquilo, quer dizer, ele era uma espécie dum Mestre... Discutia-se muito, quer dizer, era uma tertúlia…, com certeza que se discutia política, com certeza que se desancava o Estado Novo, não é?, porque ali não havia pides, não é?, e… e discutia-se tudo.
[Locutor.] Mas, se a mente e a palavra, esta em ambientes íntimos, são difíceis de controlar, o mesmo já não se passa com a escrita. Salazar, embora admirando o estilo literário de Aquilino, não lhe perdoa a integridade. E a hipótese de vingança parece surgir em Março de 1959, quando o Ministério Público entende que a publicação do livro Quando os Lobos Uivam ofende, primeiro, a magistratura, depois, a PIDE, a seguir, o Presidente do Conselho e, por fim, o bom nome de Portugal, pondo em causa a segurança do Estado, crimes que o podem condenar a oito anos de cadeia.
[Mário Soares.] Ele é um grande escritor. Esse livro, a meu ver, é um dos livros menos expressivo, talvez dos menos expressivos da obra dele, e não há nenhuma razão para ele poder ser jugado ou condenado, não tem nada, mas é má-vontade, realmente, só a má-vontade do regímen contra ele, que ele sempre foi da oposição, é que fez com que isso acontecesse. Isso deu-lhe, aliás, um prestígio enorme nas fileiras da oposição e pode dizer-se que daí até à sua morte o Aquilino é considerado como a grande referência dos democratas portugueses e da gente da oposição, de todos os partidos, porque, há uma brincadeira que ele faz, de natureza linguística, acerca da palavra «plenário», que começa assim, não me lembro como é, mas diz: a língua tem as suas leprosarias. Veja-se esta palavra «ple-ple-plenário», que é…, e depois começa a brincar, o que é que se pode considerar o plenário, para chuchar naturalmente com o tribunal plenário.

[Imagem — a acusação]

A C U S A Ç Ã O
Acuso, em querela provisória o arguido AQUILINO GOMES RIBEIRO, mais conhecido por Aquilino Ribeiro, casado, de 73 anos de idade, escritor, filho de Joaquim Francisco Ribeiro e de Mariana do Rosário Gomes, natural do Carregal, concelho de Sernancelhe, comarca de Moimenta da Beira, e residente em Lisboa, à Rua António Ferreira, n.º 7-1.º direito; pois os autos apresentam indícios probatórios suficientes de que:
1.º
Pouco tempo depois da última eleição para a Presidência da República (fls. 16 a 19) e quando ainda se sentia o efeito da agitação provocada pela mesma, publicou o arguido o livro que escreveu intitulado «Quando os lobos uivam», a seu pedido rapidamente editado pela Livraria Bertrand de Lisboa, composto e impresso na Imprensa Portugal-Brasil, da Venda Nova-Amadora, desta comarca, numa edição normal de 8900 exemplares, 300 da de luxo e 25 da de luxo do autor.
2.º
De acôrdo com o arguido, a edição foi distribuida por muitas entidades e pontos de venda (onde são normalmente entregues todas as edições da Bertrand) do continente, ilhas adjacentes, ultramar e estrangeiro (fls. 93 a 116), com tanta rapidez que posto à venda em 31 de Dezembro de 1958 já só existiam no armazem da livraria editora, em 24 de Março do ano seguinte (fls. 26), 74 exemplares da edição de luxo e 32 da normal, apesar de normalmente as edições dos
[Locutor.] O processo é de facto ridículo, tanto do ponto de vista técnico-jurídico como moral. A defesa de Aquilino assume o ataque. Realça o perfil democrata do acusado e questiona a legalidade do próprio regime; e as reuniões preparatórias dessa estratégia, em casa de Manuel Mendes, chegam a ser divertidas.
[Alfredo Caldeira/Filho de Heliodoro Caldeira/Advogado de Aquilino.] Eram de facto reuniões de grande empenho colectivo e ao mesmo tempo de grande alegria, enfim, com todos os perigos que rodeavam a situação, mas de alguma maldade, vão buscar algumas das maiores figuras da literatura portuguesa para provar

[Imagem, como capa de  livro:

QUANDO OS LOBOS JULGAM


A JUSTIÇA UIVA


TEXTO INTEGRAL DA ACUSAÇÃO E DEFESA NO PROCESSO DE
AQUILINO RIBEIRO
Nova imagem:

A JUSTIÇA UIVA


    São folheadas várias páginas do processo... Só para exemplo, mostremos o que se lê na primeira delas.

   ou injustiça.
ra, é, assim, Pulido Valente.
Por isso, na própria Assembleia Naci
«instituições vigentes», vozes se leva
r, para significar quanto havia sido, afinal estup
    de outros categorizados professores.

     xemplo, a intervenção do]

que sempre se disse e que nunca ninguém foi perseguido por isso, nem no tempo da Inquisição; ele tem, aliás, uma frase, grosso modo é esta: eu sou como aqueles velhos carvalhos que quando tentam dar-lhe uma machadada a machada salta nas mãos de quem o tenta.

[Duas páginas de carta com abaixo-assinado ao Ministro da Presidência. Sobre elas, como legenda, em letras negras de tipo grande:
Excelentíssimo Senhor Ministro da Presidência
«Os escritores e jornalistas portugueses abaixo
assinados, perante a instauração de um
processo a Aquilino Ribeiro, …»]

[Locutor.] E as machadas, não uma mas centenas, saltam sob a forma de vozes, de textos, de protestos.

[Imagem, onde se pode ler os nomes de:
       João de Barros                         João da Silva                 Natália Correia
       Antonio Sergio                        Mario Areias                 Mario Monteiro Pereira
       Ferreira de Castro                    Sebastião Ribeiro          José Ferreira Peortas Lobo
       Alexandre O’Neill                   Hernani Cidade              Mário Cesariny Vasconcelos
       Armindo Rodrigues                 Cristiano Lima               José de Bragança
       Antonio José Fernandes           Raul de Oliveira            César de Frias
       Augusto Abelaira                     Assis Esperança             Alberto Candeias
       Luis Penedo                              Rafael Marçal                Mario Henrique Leiria]

A indignação só se compara à incredulidade e a reacção é imediata.

[Imagem de página de texto de Aquilino, muito emendado, palavras riscadas.]

E como a cultura não tem fronteiras, o assunto chega rapidamente a outros lugares.

[Imagem
DOCUMENTOS
PORTUGAL
L’écrivain Aquilino Ribeiro
poursuivit pour atteinte au prestige
du pays

Lisbonne, 16 novembre (A. F. P.). —
             M. Aquilino Ribeiro, l’un des plus célè-
             bres écrivains portugais contemporains,
             a été inculpé samedi par le tribunal]

(Jorge Reis.) Um dia na rádio, catrapuz, pá, no telex, telegrama da France Press para Lisboa. Diz que o Salazar move um processo ao Aquilino Ribeiro, por isto, por Quando os Lobos Uivam, por causa do romance… Quando os Lobos Uivam; eu fiquei aterrado, pá, … então, mas… como é que um safardana qualquer, um safado, se permite fazer um processo a um escritor, ao maior escritor português, pá? Agarrei no telefone e, felizmente, pá, porque tinha relações, e era meu amigo… e telefonei ao Mauriac, que eu por sorte estava em Paris e disse…, prémio Nobel, não é?, eu disse… bem… Mestre!, etc. … Passa-se isto, assim, assim, em Portugal, pá… «O quê? e tal…», ele… Não conhecia bem o Aquilino, não conhecia, mas era escritor e que um escritor, que o pensamento fosse perseguido, para ele… E diz-me: — Olhe, ó Reis, passe cá, quando sair da rádio, passe cá por minha casa. — Não ficava longe, a rua é na Avenida Théophile Gautier e ele escreveu um protesto, e disse: Mande para o Monde, mande para a revista Europa[9] e vá ver estas pessoas todas. E eu, acompanhado pelo Professor Barradas de Carvalho, andei de porta em porta, mais ou menos, a colher assinaturas, desde o Aragon, desde … bem, essa gente toda, pá. O Supervielle, toda a gente, … a Elsa Triolet, toda a gente assinou o protesto… que eu mandei para Portugal, para o Carlos de Oliveira, que entregou isso ao Aquilino e ao advogado, ao Heliodoro Caldeira. É claro, quando aparece essa coisa, isto tem uma retumbância enorme, foi publicado no Monde, aqui na imprensa e aqueles labregos de Lisboa, não é?, … aqueles tipos devem…   … ficaram aterrados. Imagine! O Salazar queria dar uma nota…, tinha dado entrevistas a uma tal Cristina Garnier e queria passar por um homem civilizado e sai um borra-botas a insultar a literatura portuguesa, na pessoa do Aquilino Ribeiro.
[Mário Soares.] É possível que o Salazar se tenha apercebido que isso jogava contra ele próprio. E, aliás, isso teve uma tal repercussão nos meios intelectuais europeus e houve tantas petições que foram organizadas pela oposição, a dizer: está aqui um homem, que é uma pessoa já de idade, com um prestígio destes, um grande escritor, com dezenas de livros publicados e tal e mesmo assim não tem respeito e, por causa de um livro que vagamente diz umas coisas, ele é processado e julgado, vai ser preso se calhar, enfim, isso deve ter pesado porque os agentes que o Salazar tinha no estrangeiro, devem-lhe ter dito que a coisa se estava a voltar completamente contra eles, sobretudo sendo ele como ele era um candidato sério, que chegou a ser, ao prémio Nobel.
[Locutor.] A candidatura de Aquilino ao prémio Nobel, encabeçada por Francisco Vieira de Almeida e subscrita por centenas de escritores e artistas portugueses, poderia ser o epílogo para a obra daquele que é considerado o maior escritor português do século XX, mas, mais importante e menos discutível do que a vasta produção literária, é a forma como viveu a sua própria vida, pautada pela autenticidade, pela coerência e pela defesa intransigente de princípios e de valores, como a liberdade, a solidariedade e a amizade. Mesmo que esta revestisse, por vezes, a forma de um beirão de rija e por vezes difícil têmpera.
[Baptista Bastos.] Um dia o tenente-coronel Ribeiro da Fonseca, que tinha sido marido da Maria Lamas, escreveu uns artigos no Diário de Lisboa contra o tabagismo, e eles eram muito amigos, porque eram companheiros da mesma, da mesma ala, da liberdade. Eram homens antifascistas, eram homens, enfim, dessa gente. E o Aquilino decidiu meter-se com o tenente-coronel Ribeiro da Fonseca, mas em brincadeira e num artigo lá do Século disse exactamente o contrário daquilo que o Ribeiro da Fonseca estava…, tinha dito. — Ah! O tabaco faz muito bem, o tabaco é muito bom — dizia ele. — Inspira, não sei quê… e tal… — Bom. Passaram-se uns dias e uma certa tarde, estava o Aquilino Ribeiro à porta da Bertrand, e entra o tenente-coronel Ribeiro da Fonseca e o Aquilino estende-lhe a mão: — Boa tarde, ó Fonxeca, ’tás bom? — disse ele. E o outro a … dizer: — Não aperto a mão a galegos. — E o Aquilino, estava com a mão no ar, bumba!, deu-lhe imediatamente uma estalada e envolveram-se os dois à…, ali numa cena absolutamente patética e grotesca, porque eram dois velhos, dois homens antigos, ali dois amigos. Foi o Armindo Rodrigues quem interveio e os afastou e que depois perguntou: então, ó Mestre Aquilino, então o senhor, você, com esta idade, meter-se dentro…, depois, ele: então o que é que voxê queria que eu fijesse? Estava com a mão no ar, onde é que eu havia de pô-la?
Quer dizer, era isto que o Aquilino no fundo era e que ressuma dos seus nos livros dele. O Aquilino é o Malhadinhas, por extensão. O Aquilino é também o S. Banaboião, o Aquilino é também «O burro e o seu burriqueiro», que é um dos textos mais espantosos da literatura portuguesa, dum livro dele que é o último e que é póstumo, que é A Casa do Escorpião. Quer dizer, o Aquilino é isso, é esse Portugal que ele amava — e que ele interpelava — porque o Aquilino interpelou permanentemente Portugal, pôs-nos cá em cima, para, porque amava Portugal, ele não entendia, não entendia por que é que este país, com esta gente, com este povo, não entendia por que é que esta gente e este povo, tinham sido e continuam a ser, tão mal governados. Era essa a grande questão que o Aquilino nos punha.

[Rosto de Aquilino, de quadro a óleo, contemplando, olhando sem nos fitar, da última estação da vida, um olhar profundamente sério, triste,  com intensidade e inteligência idênticas às que vimos na fotografia dele com a mãe, no início deste documentário. Outros desenhos.]
 [No ecrã, sobre duas fotografias-desenho:] 

Voz de Aquilino/Cortesia RDP

 A vida apaixonou-me sob, sob todas as formas, sobretudo essas formas insignificantes que não me chamavam a atenção dos outros. Eu nasci no meio dos castanheiros, na zona dos castanheiros. Sabe que o castanheiro é uma (i) árvore bonita, uma árvore da força e da beleza…; um castanheiro é uma cidade, uma cidade para os pássaros, há o peto-real, há a poupa, há o melro, que fazem o ninho nas, que fazem o ninho nos castanheiros, um perfeito mundo… E, depois, as pastoras que vêm, com os seus tamanquinhos… britar o ouriço… e com uns britadores especiais, tem muita graça, e com o seu capuchinho, a apanhar as castanhas, todas as manhãs, quando vem um bafo de vento, e quando elas começam a rir… — a castanha é uma coisa muito bonita.

[No ecrã, em letras brancas sobre fundo negro:]

2.ª Parte
Letras que dão voz ao povo.
O amor pela terra, pelas
suas gentes, pela vida.

[No ecrã:]
Quem conta um
Conto
Acrescenta um
Ponto
[Letras pretas escritas à mão em quatro tiras de pano branco, aplicadas em superfície castanha. Sobre um palco. No ecrã, legenda:]
«Mestre Grilo cantava
                                                             E a Giganta dormia»
                                                                 Aquilino Ribeiro
[A formiga.] — Ah, sua calaceira, cante, cante. Cante connosco a chamar o Sol. Que não se demore muito de trás os montes e nos traga alegria e claridade.
[A figura do meio.] — Estou mesmo para isso! Ai, sabe que mais, outro ofício e deixe dormir quem tem sonooo...
[A formiga.] — Outro ofício?... Essa não é má! Saiba, sua estúpida. Eu nasci para cantar. Tenho-o como um dever. Quando não cantar, reze-me pela(i)alma.
[A de vestido azul e colete amarelo.] — E chocando as asas tornou à cantiguinha.
[Formiguinha.] — Sol ri-co, ri-co, rico, rico, rico…
E, em coro, sapos, ralos, rãs, cigarras, respondiam pela várzea fora:
[As sombras deste coro projectadas no ecrã.] — Sol, sol, sol!… Sol, sol, sol…         Sou um grilo[10]…    …    …
[Locutor.] Disse uma vez Óscar Lopes que quem escreveu como Aquilino acerca das crianças, acerca dos bichos, acerca das camadas sociais na mó de baixo, acerca do amor e das coisas terrenas, acreditava com certeza em algo muito importante. Pelo seu lado, o próprio escritor gostava de afirmar que o melhor da sua obra estava na literatura infantil.
[Imagem do teatrinho, agora com menos o da guitarra e mais duas figuras masculinas. Vão representando ao mesmo tempo que o locutor fala.]
—  … dou sempre o meu melhor…
[Mariana, neta de Aquilino Ribeiro.] — Sim, já que tudo nos livros para crianças… foram feitos também para pessoas muito próximas e isso, quer dizer, foram feitas para os dois filhos, para o meu tio Aníbal, que era o filho mais velho do meu avô, para o meu pai e… para mim; por isso, foram feitos, também, a pensar em pessoas queridas…, para ele. E era fácil, também, que se calhar a sensibilidade se notasse mais, aí. Mas penso que não, que nos outros livros também se nota, quer dizer, o amor que ele tinha pela natureza, pela terra, pelos homens que vivem da terra e na terra, acho que se nota. E pelas ideias, quer dizer, também…, eu sempre ouvi a minha avó falar do meu avô… com uma grande ternura, penso…, quer dizer, penso, não, tenho a certeza, que o meu pai também tem uma grande admiração por ele e… e… sente muito a falta dele, ainda hoje. E isso, de facto, só é possível quando as pessoas são pessoas com uma grande sensibilidade. Independentemente das outras histórias que também se contam de que ele era um homem duro, forte, não no sentido de mau, mas de forte, quer dizer, teimoso, que levava as coisas dê… e provavelmente não seria uma pessoa de fácil trato. Mas, pronto, penso que tinha o outro lado e se calhar é nos livros que a gente o apanha melhor, ou as pessoas que não o conheceram bem, que apanham bem esse lado.
[Locutor.] Para além da sensibilidade, um outro aspecto que é unanimemente reconhecido em Aquilino Ribeiro é a sua enorme capacidade de trabalho. E o primeiro reflexo dessa capacidade é naturalmente o número de livros publicados, quase setenta, o que perfaz a extraordinária média de mais de um livro por ano de vida literária. Os editores chegavam mesmo a esperar pela novidade aquiliniana na chamada rentrée de Outono, hábito enraizado na regularidade da resposta do escritor. E para este, a produção fluía com a naturalidade do próprio respirar.
[Aquilino Ribeiro Machado.] Ele fazia as coisas, com relativo, com relativo à-vontade, na construção e na estruturação dos enredos e dos quadros que ele, uma vez falava comigo na estação do caminho-de-ferro da Cruz Quebrada, onde tínhamos ido tomar o comboio para Lisboa; dizia — Então, esta história… — E eu: mas como é que se constrói a história?
— Ah, isso para mim não tem dificuldade. Olha! Fazia este quadro, primeiro. Depois, fazia aquele, depois, fazia aqueloutro…
E, depois, com esta composição estava desenvolvido o livro. Ele, ali em cinco minutos tinha feita, tinha feito o guião duma novela, do princípio ao fim.
[Locutor.] [Pequeno filme: dois homens ainda novos (um deles, Henrique Almeida) percorrem uma rua; casa e janelas; rua da cidade e casas tradicionais.]
E assim se vão sucedendo as obras de ficção, os romances, as crónicas, o teatro, o articulismo, o ensaio, obras que ao longo de várias etapas remetem para uma grande diversidade de lugares, num itinerário que hoje pode ser perfeitamente identificado sob o ponto de vista geográfico. Já no que toca aos hábitos e à comunicação, naturalmente, mudaram muito desde então.
[Henrique Almeida/Centro de Estudos Aquilino Ribeiro. Na rua da cidade.] Dizia Aquilino que os veros aldeãos da Beira se reconheciam no breve farricoco que ele tinha criado ficcionalmente nas suas obras. Significa isto que no caso dos da actualidade, nós vamos à Beira e reconhecemos, de facto, certas personalidades que projectamos na ficção. Portanto, há um paralelo entre as personagens da ficção e as personagens do real. De alguma forma até, estão vivos e transmitem esse relato ainda oral. Em todo o caso, houve grandes transmutações. E hoje em dia é muito mais fácil identificar esses lugares, seguindo como que um percurso aquiliniano, o itinerário aquiliniano, por conseguinte, que reconstitui com fidelidade os lugares ainda hoje reconhecíveis como tal, num ou noutro caso, às vezes, desconfigurados já um pouco, mas quanto à linguagem que as pessoas hoje em dia usam, já não é a mesma que nós encontramos nas obras de Aquilino. Porquê? Por vários factores, desde logo pelo factor da televisão, que, manifestamente, altera mentalidades, altera o linguajar e por conseguinte dá algum distanciamento entre os, a actual população aldeã e aquela que Aquilino retrata nas suas obras.
[Homem a gadanhar hastes de milharal, já sem maçarocas?; mais trabalhos do campo.]
[Locutor.] A forma como Aquilino trata e ficciona as personagens e os ambientes onde se movem, o estilo que imprime nos seus livros é precisamente um dos aspectos mais polémicos da sua obra.
[Locutor diz texto de Aquilino.] Certos críticos acusam-me de renovar o vocabulário, à custa da fala do povo. Em muito pequena percentagem, e todavia nunca inventando. Por via de regra, detesto o neologismo. Só por necessidade.
A verdadeira língua viva foi o povo que a fez. Uma cidade com as suas fábricas, os seus museus, os seus palácios, o seu roteiro complicado, tudo isso não é nada como obra humana comparado ao trabalho da língua[11].
[Locutor.] O estilo aquiliniano é indubitavelmente marcado pela ruralidade e insere-se numa tradição de respeito pela língua, de desvanecimento pela língua, de pesquisa da própria língua. A exemplo de outros como o Padre António Vieira, Frei Luís de Sousa ou Camilo Castelo Branco; mas, sendo um autor predominantemente português, não deixa simultaneamente de nos legar uma marca de universalidade, fruto de uma vida cosmopolita e do conhecimento profundo da literatura estrangeira, nomeadamente, a francesa.
[Jorge Reis.] O Aquilino formou-se aqui em Paris. E não só se formou, acabou de formar-se como homem, mas formou-se como escritor; a língua, isto é a minha tese, é o que me parece, pá, a língua aquiliniana, aquela impenetrável língua, aquela que obriga a um dicionário, os escritores, foi aqui aprendida em Paris, não porque houvesse portugueses, … foi pela, digamos, pela língua francesa, e ele compreendeu o que é a língua francesa e compreendeu que a língua francesa é uma língua feita de um somatório de patois, que o Flaubert não escreve como o Zola, que o Maupassant não escreve como o Balzac, etc. E todos eles são franceses. Ele percebeu, como um grande escritor pode, percebe, ele percebeu que a língua, que as palavras são como bichos, como ele dizia, pá, que a língua é o capital mais precioso dum homem, pá; é um meio de comunicação e é um meio de criar outra vida.
*
Começam a aparecer páginas de jornais, a capa do Jardim das Tormentas, imagens de Paris, foto de Aquilino, nos seus quarenta anos, em plena força. O locutor vai falando.
[Primeira página de
a vanguarda
Lisboa, quarta-feira. 22 de Fevereiro de 1917
 ABUSO DO PODER
Um dictador de operetta | Revista do dia | Questões filológicas | Illusões da pobreza… de matéria e espirito
República
Ano XXXV (II Série), N.º 3484, 4.ª-feira, 6 Fevereiro 1946
«O escritor e os seus fantasmas»
por Aquilino Ribeiro
[Na primeira página, a 3 colunas:]
O romance naturalmente esposará a causa do povo, se assim se pode chamar o ocupar-se com as misérias e virtudes, os sonhos e as realidades, os anseios e as cruezas do magma humano no que oferece de mais rico e profundável. O homem, este animal que está ao alto da escala biológica na majestade e na relice, é no polipeiro que se encontra mais estreme e pitoresco. O melhor dador ……………………………………..
O SÉCULO
n.º 16718, 1.ª página, artigo de Aquilino
«A democracia francesa»]
*
[Locutor.] O conhecimento ímpar da língua vai permitir a Aquilino, não só uma vastíssima produção literária, mas também uma significativa actividade jornalística, actividade que lhe permite, aliás, os primeiros contactos com o grande público, ainda no dealbar do século. A colaboração regular que manterá com a imprensa permite-lhe, como ele próprio dizia, fazer o punho para a escrita ficcional. Também segundo Aquilino,
[Capa da 1.ª edição de Jardim das Tormentas.]
o livro de estreia foi o Jardim das Tormentas, cujo original foi entregue durante o primeiro exílio parisiense ao velho Aillaud, seu editor e amigo. Seguem-se-lhe dezenas de outras obras, denotando todas um amor profundo à terra e às raízes. Aliás, muito 

[Foto de Aquilino nos seus quarenta anos, em plena força.]

mais tarde, Aquilino Ribeiro virá por razões idênticas a entusiasmar-se com uma propriedade do concelho de Paredes de Coura, que lhe virá igualmente a servir de cenário para um dos seus romances mais conhecidos.
[Imagem da casa de Romarigães.]
[Aquilino Ribeiro Machado.] O meu pai era um homem filho da terra, não é?, e estava ligado profundamente à terra; a terra, para ele, representava de facto a vein, a veiculação efectiva e sentimental a qualquer coisa que não era apenas a propriedade: era o valor simbólico que estava ínsito na sua posse. Era a sua juventude, era a sua cultura, recebida nos tempos em que se formou, duma forma bastante oral, porque era pela oralidade que se transmitia a memória dos povos da província aos mais novos… O meu pai estava ligado a essa ancestralidade. E como tal, quando na repartição dos bens que resultaram da herança do meu avô e foi dado aos herdeiros optar por este ou por aquele bem, ele optou por Romarigães, porque Romarigães era a terra; era uma grande terra. Eu recordo-me de ele ter telefonado: «Ficámos com uma terra muito grande; vamos lá a ver o que é que isto dá!...» — Imagino, notei no tom de voz, já eu andava no Técnico, que ele estava sentimentalmente satisfeito, porque aquilo representava, uma vez mais, firmar bem os pés na terra, firmar os pés na terra, donde lhe vinha a energia, como aquele herói mítico que recebia a força da terra e para ser morto pelo Hércules teve de ser levantado no ar; pois o meu pai também recebia muito da inspiração do contacto com a natureza, do contacto com a natureza, do contacto, ali estava a terra, em Romarigães, e estava sobretudo uma igreja muito bonita, que, ao lado duma casa em ruínas lhe regalou o olho.
[Locutor.] Ao longo de quase oitenta anos, Aquilino Ribeiro regalará os olhos e alertará as emoções para múltiplos aspectos da vida que o rodeia. Desde o simples chilrear dos pássaros, ao mais complicado acontecimento político ou social, o que curiosamente faz com que a sua literatura tenha uma forte carga sensorial.
[Mário Cláudio/Escritor.] Sendo o Aquilino Ribeiro um racionalista, por formação, por opção mental, e tendo uma prática de racionalidade, por exemplo, na construção da sua obra e na construção dos seus romances, é um homem que procede na base de um espírito muito geométrico, muito, muito rigorista, ele é também um extravasador de emoções, uma figura que vive muito à base dos cinco sentidos, um sensual, de certa maneira, um autor da visualidade, da tactilidade, os elementos gustativos, por exemplo, e os elementos olfactivos são importantíssimos da sua obra e isso cria uma tensão, do meu ponto de vista, muito provocatória, que é a tensão que existe sempre entre uma regra imposta com esse carácter de austeridade, quase clássico ou classicizante, conviver com algo que é altamente explosivo, como é a emotividade humana.
[Imagens de filme: caçador, espingarda, cão, tiros; fotografia para a posteridade de quatro caçadores, sentados num declive, um deles ao meio, chapéu, casaco branco e gravata preta, parece Aquilino[12].]
[Vilaça Pinto.] Palavras dum abade: «Ocupemo-nos da santa trincadeira, que o meu estômago está a gritar contra a cabeça que o governa[13]!» Aquilino Ribeiro. Isto é uma forma, realmente, de ele dizer, que cria água na boca; quem olha para a comida e quem gosta de comer, sobretudo estes pitéus do Alto Minho. [Imagens de filme, árvores, rio, tudo verde, a superfície e o fundo; trutas.] Ele perde-se no amor pelas trutas. As trutas, para ele, são assim, são assim como que algo de extraordinário que passa pelo rio e que muitas vezes, iluminadas pelo sol, fazem das trutas uma coisa maravilhosa, prateada, que depois, sobretudo, como ele diz, em escabeche, a fugir para o vinagre, são umas delícias. Dizia ele em determinada altura que o ceote na tasca do Chacim era uma coisa fabulosa. O ceote de lampreia. Juntavam-se lá os padres e os abades a beberem bom vinho, que na altura era apelidado do melhor vinho verde que era o vinho dos Arcos, dizia ele: a maravilha das maravilhas, naquele ceote de lampreia. Ora, isto define que realmente em volta da mesa se juntava grandes apreciadores e grandes amantes da comida. O amante da comida é o amante da natureza e o amante da humanidade.
[Aquilino, já idoso, e duas senhoras, uma delas a mulher; mais fotografias, ambiente campestre.]
[Locutor.] Aqui estão meia dúzia de tópicos por que me guiei, amor, sempre mais amor ao próximo do que ódio, respeito pelo real até à obsessão, originalidade, quer dizer, eu só, contra ventos e marés, na opulência e na pobreza, e sobretudo no desassombro de ser o que sou e persisto ser[14].
[Baptista Bastos.] Um dia, estou ali à porta da Bertrand, com ele, da livraria Bertrand, o café Chiado era em frente, ele esperava pelos amigos que bebiam café, atravessava a rua que ia à Bertrand, que era a sua editora, e depois ficava ali um bocadinho à porta… E eu, ia para ao pé dele, enfim, porque, porque também gostava de ser conhecido, não é? E as pessoas respon…, cumprimentavam-no, com grande respeito, com grande efusão, com grande cordialidade. E, então, um dia, ah!..., começavam a aparecer as primeiras, tímidas minissaias. E o Aquilino estava com o chapéu, com o beiço caído, começou ali a olhar e um dia passa uma rapariga, mostrando ligeiramente a perna um bocadinho acima do joelho e vejo o Aquilino, discretamente, porque ele era muito conhecido, não podia estar a olhar para as miúdas, assim…, e já era um homem de uma certa idade, a deitar assim o olho…, e eu disse, assim: — Ó Mestre Aquilino, que rica miúda, hã? — E ele volta-se e…    …
— Ó Baptista Bastos, pelo amor de Deus, voxê não apoquente os últimos dias do velho prosador.
Quer dizer: e todas estas coisas davam de facto a dimensão sibarita, a dimensão, o gosto de viver, o prazer das mulheres, o prazer dos amigos, o prazer, enfim, da vida.
[Locutor.] Aquilino Ribeiro nasceu a 13 de Setembro de 1885 em Carregal de Tabosa, concelho de Sernancelhe. A infância e a adolescência passada nas serranias marcá-lo-ão para toda a vida. «Nasce-se com o berço às costas como uma geba e a Beira Alta não tem símile no mundo.» Filho de um pároco, Joaquim Francisco Ribeiro, e de Mariana do Rosário Gomes, Aquilino muda-se em 1895 para a Soutosa, na Nave, Moimenta da Beira. A este pátio acolhedor, aconchegado e aberto, volta sempre em momentos de aflição ou de simples vontade de recolhimento.
[Maria Josefa de Campos/Viúva do filho mais velho.] O refúgio dele! Ele, quando se escondia, era para aqui que se vinha esconder. Quando tinha de se, ele veio de, ele veio em 1927, ele veio para aqui, veio para aqui, primeiro, e depois foi para e foi para Paris. Era o refúgio dele.    … Ele gostava de estar aqui. Ele andava com… ia à caça com um homem que já morreu, é o Zé caç…, é caçador, é o Zé sapateiro, que morreu… Ele trabalhava os campos quando era preciso, ele construiu aquela casa ali assim com a ideia, talvez, de ser a casa do rendeiro, a segunda, aquela que está ali, e tinha um, tinha mais uma casi…, uma coisa para os porcos, tinha várias coisas aqui para a agricultura, mas é que ele não trabalhava na agricultura, evidentemente.    …    … Ele escrevia.
[Locutor.] A escrita naturalmente tem uma base educacional. Aquilino Ribeiro faz o exame de instrução primária no Colégio da Senhora da Lapa, um colégio jesuíta na cernelha da serra, onde miradoiros brancos, aos quatro pontos do horizonte, guiam os peregrinos para o santuário. Em 1900, vai para Lamego, para o Colégio Roseira, onde aprende a ser gente, a ser livre e a amar a liberdade. Esse espírito, aliado a um carácter determinado, levá-lo-ão, dois anos mais tarde, a negar definitivamente a vontade de sua mãe para que fosse padre e a abalar para Lisboa.
Paris: é também uma cidade com especial significado para Aquilino Ribeiro. Para além de lhe servir de exílio por três vezes, é aqui que em 1910 conhece a sua primeira mulher, Greta Tiedemann, sua colega na Sorbonne, a quem, doce e propícia sombra do seu trabalho, dedica o primeiro livro. Mas Paris é também uma escola de vida e de cultura.
[Jorge Reis.] O Aquilino penetrou na vida francesa, não sei como, pá!, porque ele não falava de si e eu não estava também, agora, a ser indiscreto ou assim ò coisa…; mas, penetrou, mal chegou, penetrou na vida francesa e chupou esta coisa toda, pá!, assimilou tudo. É extraordinário, pá! Como…, ia a exposições; sabe quem eram os pintores favoritos, preferidos do Aquilino, quando ninguém os conhecia em Portugal? Eram os fauve; ele ia sempre…, os fauve para ele, os Matisse, os Derain, essa gente toda é que eram os grandes, pá! Quando ninguém em Portugal os conhecia, a não ser numa…, num pequeno meio restrito de pintores, talvez chegasse lá uns ecos. E… música. A senhora, a primeira esposa, a senhora alemã, tocava piano. Eles tinham, quando casaram alugaram um piano e o Aquilino deliciava-se com as sonatas do Beethoven; o Aquilino ia aos concertos à Sala Gaveau, porque era próprio. Eu falo isto, porque eu tive, eu… o mesmo itinerário, sem saber, sem estar a copiar, eu fiz o mesmo itinerário que ele, com a diferença de cinquenta anos de idade (pá), mas íamos à Sala Gaveau aos concertos, aos concertos, à orquestra Colonne, ele fala nisso nos seus escritos. Mas não fazia, como eu disse, não fazia alarde. Tudo aquilo era tão natural para ele, tudo aquilo era França (pá).
[Locutor.] A cultura e o amor unem inexoravelmente Aquilino a Paris. Aqui, foi pai do seu primeiro filho, Aníbal, em 1914, e aqui voltará a apaixonar-se nos finais dos anos 20, já depois de ter enviuvado.
[Jerónima Dantas Machado.] Uma tarde, bateram à porta, por sinal que estavam lá as visitas, que eram as senhoras dos emigrados que iam lá para casa, iam para lá passar a tarde e entre elas a mulher do Chagas e outras senhoras…, e bateram à porta…, era o Aquilino. Por acaso, o meu pai não estava, tinha saído dar a sua voltinha, que ele gostava muito de passear, o meu pai. E tive que telefonar para a casa de um amigo onde ele me tinha dito que ia e dizer-lhe que estavam lá aqueles senhores, sobretudo o Aquilino. Ele veio e assim está como eu conheci o Aquilino [breve riso] e como depois nos casámos em Maio.
[Locutor.] Jerónima Dantas Machado, filha do presidente exilado Bernardino Machado, acompanhará Aquilino Ribeiro por toda a vida; como mulher, mãe, companheira e, sempre que necessário, dedicada ajudante.
[Manuel Machado Sá Marques/Sobrinho de Aquilino Ribeiro.] Quem dactilografava tudo, também, ao Aquilino, era, era a minha tia Gigi, era a secretária do…    … e aqui neste prédio havia uma menina, pequenina, uma jovenzinha, que também frequentava, porque eles eram muito amigos de crianças, como aliás pode ver. E a criança estava aqui assim, assistia, portanto, enfim, ao trabalho do escritor e da minha tia Gigi e um dia perguntaram à jovem: não sei quê do escritor… E ela riu-se: Oh, oh, oh! Ele não escreve nada; quem escreve é a senhora D.ª Gigi, ele só anda de um lado para o outro e di… e fala alto. [Ri.]
[Locutor.] Aquilino Ribeiro é um homem que não busca reconhecimento nem notoriedade. O dia-a-dia é feito essencialmente de trabalho, de muito trabalho, que o fazia levantar bem cedo na madrugada e passar horas e horas sentado na banca, a escrever. Apesar de tudo, em 1952, arranja uns meses para se deslocar ao Brasil, onde receberá as mais altas homenagens de colegas de profissão e homens públicos brasileiros e onde é condecorado com a comenda do Cruzeiro de Sul. Em 1956, é o primeiro presidente da recém-formada Sociedade Portuguesa de Escritores. Uma vida preenchida e coerente, onde cultivou a inquietação e onde ainda lhe sobrou «tempo para ver como correm as nuvens»[15], para se dedicar à família e aos amigos; para fazer valer princípios e valores bem entranhados num espírito beirão de honra, do antes quebrar do que torcer, mas onde há sempre lugar para a compreensão e para o diálogo.
[Aquilino Ribeiro Machado.] Era um homem bastante afectuoso, que deixava vir os sentimentos à tona com muita facilidade, quer para um tratamento ternurento para com os filhos, quer para os increpar com alguma violência, nunca batendo, mas com alguma violência, porque ele era de feitio um pouco colérico, um feitio colérico de homem que extravasava sempre as suas emoções. Não tinha contenção; de quando em quando ficava furioso, atirava com tudo o que tinha à mão, mas, aquela tempestade vencida, caía em si e imediatamente ia ter com as pessoas e pedia-lhes desculpa ou fazia qualquer coisa que significasse o mesmo. Nunca me lembro de o meu pai guardar rancor por ninguém. Era uma coisa espantosa. Andou aí em guerras literárias com gente que ou não o compreendia ou que para se afirmar o contrariava e da qual ele podia guardar razões de queixa; passados anos, chegavam-se mansinhos ao pé dele, mais ou menos escondidos atrás das costas de alguém e iam cumprimentá-lo e ele: ó fulano, está tudo esquecido!...

[Música. Esta música continua até ao fim do genérico e o seu termo coincide com esse fim.]

Lê-se no ecrã:
«Que o escritor realize o mundo de
beleza que traz em si, é já alguma coisa.
Quanto ao mais, que seja o que lhe
apetecer, desde que não arme em fariseu,
e não esteja nunca contra os simples,
de braço dado com os trafulhas,
nem contra os fracos de braço dado
com os poderosos[16]

*
Agradecimentos
Maria Ricardo Cruz
Luís Henrique Pereira
Centro Estudos Aquilino Ribeiro
Cooperativa Árvore
Grupo de Teatro Filandorra
Fundação Aquilino Ribeiro

Imagem
Manuel Liberato
Rui César
Manuel Salselas
Arquivo RTP

Assistente de imagem
Acácio Pereira

Montagem e pós-produção
Fernando Pinho

Pós-produção áudio
Luís Rangel

Sonoplastia
José Gabriel

Técnica de investigação e pesquisa
Teresa Catanho

Produção
Maria da Costa Lima

Reportagem e realização
João Pacheco de Miranda













© RTP-2000 


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A música do genérico: um amigo a quem recorri, ciente da sua vincada memória das composições musicais, logo identificou a obra e o andamento: Concerto para piano, N.º 3, 3.º andamento, Rondó Allegro, de Beethoven. Agradeço ao JT.
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[1] Da entrevista a Igrejas Caeiro, na rádio, 1957, programa O Perfil de um artista, parte final.
[2] As páginas de jornais, fotografias, um excerto de filme reconstituindo a explosão na Rua do Carrião, outro, com imagens da família real, o regicídio: gravuras e fotografias da época, os corpos no Arsenal— vão ilustrando a fala do locutor. Em AO PAIZ, não é possível saber se se trata de jornal ou de proclamação avulsa.
[3] Texto não localizado.
[4] Da entrevista a Igrejas Caeiro.
[5] O locutor diz Pátio ou Patium, em vez de Parchin; «a terra daquela que seria a sua primeira mulher» não é Parchin, mas Meclemburgo. N’A Alemanha Ensanguentada, lê-se Parchim (edição nas Obras Completas de Aquilino Ribeiro, acabada de imprimir em 1975). Lê-se em Aquilino Ribeiro (1885 – 1963), Catálogo da exposição comemorativa do primeiro centenário do nascimento, Lisboa, 1985, Biblioteca Nacional (ed.), CRONOLOGIA, p. 18:
1912 — Reside uns meses na Alemanha, em Berlim e em Parchin, terra de Moltk.
[6] É a Guerra, p. 13, dedicatória ao Dr. António Gomes Mota, datada da Cruz Quebrada, Maio de 1934. Lisboa, Bertrand, 1.ª edição.
[7] É a Guerra, p. 14-15.
[8] Discurso em Braga, no 10.º aniversário do 28 de Maio (1936).
[9] É Europe.
[10] O texto de Mestre Grilo cantava e a Giganta dormia, como vem na 2.ª edição, em separado, deste conto (1976), reza assim:
[…] Ah! Sua calaceira, cante, cante connosco a chamar o Sol que se não demore muito por detrás dos montes e nos traga alegria e claridade.
— Estou mesmo para isso! Olhe, sabe que mais, outro ofício e deixe dormir quem tem sono.
— Outro ofício!... Essa não é má! Saiba, sua estúpida, que eu nasci para cantar. Tenho-o como um dever. Quando não cantar, rezem-me por alma.
E chocando as asas tornou à cantiguinha:
—Sol rico! Rico, rico! Rico…
E, em coro, sapos, ralos, rãs, cigarras, respondiam pela várzea fora:
—Sol, sol, sol! Sol… […]   […] Sou um grilo […]
[11] Estas palavras encontram-se em Aquilino Ribeiro, n.º 1 da colecção A Obra e o Homem, Org. Manuel Mendes, Lisboa, Arcádia, 1960, integrando o belíssimo «Solilóquio autobiográfico literário», páginas 55-87.
[12] E é. A foto vem, no livro referido na nota anterior, entre as páginas 70 e 73, na página 72 (não numerada), com a legenda: Caçada nas dunas de Pedrógão.
[13] Aquilino Ribeiro, Andam Faunos pelos Bosques, Lisboa, Bertrand, edição comemorativa do centenário do nascimento de Aquilino Ribeiro, p. 58.
[14] Texto não localizado.
[15] Não identificado o lugar de origem destas palavras. Na secção EFEMÉRIDES, do livro organizado por Manuel Mendes (ver nota 11), lê-se para o ano de 
          1960: A pedido de uma centena de signatários, entre eles os primeiros nomes da literatura portuguesa contemporânea, alguns artistas e homens públicos, é proposta a sua candidatura ao Prémio Nobel de Literatura, pelo Professor Catedrático da Faculdade de Letras de Lisboa, Dr. Francisco Vieira de Almeida.
E para concluir, diz-nos: «Trabalhou-se e sobrou ainda muito tempo para ver como correm as nuvens.»
[16] Ver na obra organizada por Manuel Mendes, a página 65 do «Solilóquio autobiográfico literário», já referido na nota 11. O texto termina a primeira parte — Identificação —, das cinco de que se compõe. Esta «Identificação» integra um belíssimo texto sobre a língua portuguesa (págs. 61 a 65), incluindo no último parágrafo as palavras com que termina este documentário. Este escrito de Aquilino Ribeiro merece ser mais divulgado.

1 comentário:

  1. Muito bom, este teu trabalho. Não tive tempo de ler tudo mas vou fazê-lo mais tarde.
    Abraço

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