segunda-feira, 2 de junho de 2014

Questionário de Proust: uma resposta

Achei uma delícia o artigo de Xavier Sardà*, no primeiro jornal em língua catalã que me veio parar às mãos. Um desejo antigo, poder ter acesso a esta  — e tão próxima de nós — língua de cultura. Estas são as minhas primícias.
       A maneira como são usados os esquecimentos, o direito de não dizer nada em alguma fase do processo e de um modo geral a lentidão da nossa justiça, mina aberta a prazos, expedientes e incidentes, aguçou-me o apetite para este manjar.
         Foi também oportunidade para conhecer o célebre questionário de Proust**. Este questionário vem na linha dos que havia em Inglaterra no séc. XIX, as Confessions. O entretém remonta, ali, aos anos 1860. Estou em crer que os questionários que alunos e alunas do Liceu de Évora preenchiam há cinquenta anos, são uma continuação livre e simplificada, adaptada ao gosto das meninas e meninos de então. As perguntas eram escritas no próprio caderno de uma disciplina e a pessoa a quem eram apresentadas respondia. Não participei, mas tive conhecimento directo de um caso e isto aumenta o meu interesse por este assunto.
          O jogo de Xavier Sardà resultou em cheio.
                    *Ver, abaixo, a seguir à tradução.
                    **ver, no fim, duas ligações à internet.


*

PROUST E A INFANTA
     Misturar fragmentos de realidade sem ligação está na base de imaginar mundos diferentes. Como seriam as respostas da infanta Cristina num outro contexto? Imaginemos as mesmas respostas a perguntas diferentes: a filha do Rei respondendo ao célebre questionário Proust:
— Qual é o seu maior receio?
— Não me lembro bem porque foi há muitos anos.
— O principal traço do seu carácter?
— Não me lembro bem porque já vai fazer muitos anos e não me lembro.
—Qual é a qualidade que prefere nos homens?
— Sei que o meu marido trabalhava e prestava os seus serviços à Octagon, não recordo nada de Namasté.
— Qual o seu principal defeito?
— Não sei, desconheço.
— Que aprecia mais nos seus amigos?
— Não sei, senhoria, desconheço.
—Se não fosse você, quem gostaria de ser?
— Não sei.
— Quais são os seus autores favoritos em prosa?
— Soa-me a algo, mas não sei qual a relação.
— Quais são os seus autores de ficção?
— Eu dou-lhe força para empreender um projecto novo, depois da sua formação na Esade e da sua experiência na Octagon, para se lançar a outros projectos de âmbito desportivo, porque é a bagagem que tem.
— Qual é o facto histórico mais deplorável?
—  O nome escolhê-lo-íamos entre ambos, mas agora não me recordo entre que nomes vamos escolher. Ou o vai escolher ele ou o vou escolher eu.
— Que feito militar admira mais?
— O meu marido pede-o e por confiança nele, vai-me parecer bem e vou aceitá-lo.
— Qual é o seu actual estado de espírito?
— Se está aqui é que o haveria de receber, mas não me lembro.
— Qual é a falta que lhe inspira mais indulgência?
— Só me recordo de ter ido ao acto de constituição, mas creio que não vai ser nem uma junta.
— Onde lhe agradaria viver?
— Não sei.
— Que pássaro prefere?
— Não me lembro.
          — Os seus compositores favoritos?
— Soa-me a algo, mas não sei qual a relação.
— Qual é o seu lema?
— Conheço-o como jogador de andebol.
— Que dom da natureza lhe agradaria possuir?
— Assessor fiscal do meu marido.
Imaginemos agora uma declaração da infanta Cristina perante o juiz Castro: «Sou infanta de Espanha e filha do Rei. Tanto pela minha condição de membro da Casa Real, mas também como mulher e a título pessoal, quero deixar claro que tenho a obrigação e desejo ter a mesma sorte jurídica que o meu marido. Os meus advogados falaram de amor e confiança, mas vejo que não sabem o que significam estas palavras no seu real significado. Não me degradem como mulher à ignorância ou ao olvido. Sim, respeito e estimo o meu marido e por esta razão nunca o trairei.»

                                                  el Periódico de Catalunya PER A GENT COMPROMESA, 23 DE FEBRER DEL 2014

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