O adeus à brisa
A RTP Premium deu uma série de programas,
no canal 2, sobre escritores. Entre os últimos, conta-se Aquilino Ribeiro,
Agustina Bessa-Luís, António Lobo Antunes, Fernanda Botelho, Natália Correia e
Urbano Tavares Rodrigues. Vou ver outra vez o documentário sobre Aquilino, pelo
menos. Vê-se Aquilino a falar e ouve-se a sua voz, um tanto fina, não
condizente com a imagem que tinha e tenho dele. Não esperava, embora a voz dele
seja naturalíssima. Foi um privilégio ouvi-lo. Mas o dia, hoje, calhou ser de
Urbano Tavares Rodrigues
O adeus à brisa
Um filme
de Possidónio Cachapa, Filmes do Tejo II, 2008
*
Imagens
do cotovelo de um rio, o rio, mais largo, com mouchões…
— … um
livro de Steinbeck; quando o li, dei por mim a pensar na minha infância, que é
um livro chamado A Um Deus Desconhecido.
— Isto,
sou eu a cavalo, com uma boina basca, acho eu.
— Sentia-me
um senhor do mundo, mas dum mundo que não era de ninguém, que eram as terras, era
a minha Terra do Nunca; são anos de encantamento, de relação poético-panteísta,
quando muito, com as estrelas, com os valados, com as amendoeiras, com os
chaparros; fazia parte daquilo.
Eu
queria, eu acho que tenho um cravo na mão, não é? […]
… …
…
Ou é o
chicotinho!? Não, isto parece-me que não é da fotografia… …
Eu
começo a descobrir, não se descobre logo; ou talvez pelos sete, oito anos, à
minha volta a injustiça social. Isto aqui, parece-me que é a casa do caseiro e,
eh pá, este bocado…, depois, ali, era os galinheiros, era o forno do pão e era
no forno do pão que nós nos começávamos, os trabalhadores do monte não eram
muitos…, o que havia era os trabalhadores que saíam com ranchos e com quem
nós lidávamos muito, porque vinham para a apanha da azeitona e ali ficávamos a
ouvi-los e o que ouvíamos eram todas as velhas histórias do Alentejo, coisas
com bruxas, com padres, com frades, com almocreves, também a conversa política,
porque eram camponeses já um bocado politizados.
·
Fala um
camponês, só se vê a parte central do corpo, com as mãos a cofiar uma espécie
de haste de trigo ou seja do que for, parece entretenimento, vai tirando folhinhas do caule, encostado ao cajado, a escorar a axila esquerda. Não tem cinto; a imagem é agora do rosto, um homem moço, cara enxuta, de feições perfeitas. A voz que se ouve, um tanto fina, não é a que se espera deste homem. Uns dedos, a ponta da mão, acompanham expressivamente a fala, duas ou três vezes, de fugida, na periferia do quadro. A voz vem do lado da cena. Afinal, não é o homem moço que fala. Esse, é o futuro do passado?
— Eu, há
dez anos, aí assim por esse mundo de Cristo, sem ter regalias nenhumas,
trabalhar de dia e de noite, ainda nunca por acaso tive um dia de férias, nem
um domingo para ir visitar a família, nem um dia de semana…
… …
…
— Nós
tínhamos uma casa de banho lá em casa, com água corrente, quer dizer, que é
água corrente do depósito, que se dava à bomba para ter água corrente. [Outra
fotografia.]
Isto era
para o pessoal, era a casinha, era uma sanita, onde eles iam de noite ou coisa
assim.
O meu
irmão Miguel, que vem a cavalo, ele vinha de ir tomar banho no rio ou
atravessar o rio, porque está com um robe e uma toalha ao pescoço. Nós temos só
um ano e meio de diferença, eu e o Miguel. Lemos os mesmos livros, sonhámos os
mesmos sonhos, depois divergimos um bocado, voltei-me mais cedo para as ideias
socialistas do que o Miguel.
— As
nossas brincadeiras na altura eram brincadeiras que poderia dizer brutas. Eu
recordo-me que eu e o Urbano, cada um em seu burro, travávamos combates. Como
eu lhe digo que eram brutas…
— Eram
brutas, de verdade.
— E
lembro-me de uma vez o ferir num braço, com uma, uma azagaia ou coisa que
jogávamos, tínhamos que nos desviar.
— Ainda
tenho uma cicatriz. Coisas disparatadas, eu, por exemplo, para montar um
cavalo, que era bravo, subi para cima de uma oliveira e zás! De cima da
oliveira, atirei-me e fiquei escarranchado no cavalo, depois, atirou comigo ao
chão, é claro, ainda andei ali agarrado às crinas um bocado.
— Quando
entrámos no liceu, andávamos sempre à pancada, porque não tínhamos tido nenhuma
relação com outras crianças.
— Já
havia um heroísmo sem causa em nós. Uma valentia quixotesca.
— Eram
os manos Urbanos; ele muito mais briguento do que eu. E foi pela vida inteira.
Porque, quando acaba a adolescência, nunca mais tive brigas físicas, a ele não,
ele ainda com 60 anos, ainda briga.
— Não
tinha noção do perigo. E isso reapareceu algumas vezes, ao longo da minha vida.
Porque houve momentos…, eu depois passei a tornar-me mais ajuizado, mas, mas
reapareceu nalgumas cenas tardias, em que eu continuei a avançar,
assim como louco, contra multidões.
… …
… …
— Embora
eu tenha participado na campanha do Norton de Matos, em 1949, tenha participado
em greves universitárias, no tempo do MUD, atitudes políticas muito fortes só
as tomo na campanha do Delgado. Era redactor do Diário de Lisboa, o que era uma
posição óptima para acompanhar a campanha e influenciá-la. Nos textos que eu
escrevia, havia uma permanente simpatia pelo Delgado; depois, um dia, faço uma
declaração. Eu, primeiro, hesitei e fui
assistir a uma sessão do Arlindo Vicente. E acho que fiz bem, porque eram sobretudo
os comunistas que o apoiavam, mas nós sentíamo(-no)s de tal maneira os
condenados da Terra, quando à saída éramos fotografados, um por um, pela PIDE.
(Música) (Imagens)
Estavam
todos ali à volta, que era uma coisa criminosa, mas, depois, as campanhas
fundiram-se, não é? E eu, então, já não tenho dúvidas, apoio o Delgado e faço
uma declaração no Diário de Lisboa,
em como eu, Urbano Tavares Rodrigues, apoio o Humberto Delgado, defensor do
povo português e rei da Liberdade e tal e tal e tal. Grande bronca! E na
Faculdade, bronca maior, ainda. Os meus alunos «Ahahah».
… …
… … …
Estava
numa fase na minha vida, em que eu sentia que era uma partícula no rio da
história. A história caminhava para o socialismo e eu estava a cumprir, cumprir
um dever.
— O
Urbano é um humanista, o Urbano chega, por exemplo, ao Partido Comunista,
através do coração, não chega através da ideologia.
— Apesar
das minhas reservas, em relação à União Soviética e aos países de Leste, de
qualquer maneira era aquilo que eu pensava que poderia, que devia ser o amanhã
e que haveria de transformar-se.
[Ouve-se um discurso, vê-se imagens de cartazes de propaganda, os céus de
Moscovo (?) cheios de bombardeiros da época, vermelhos, grande cartaz com a
figura de Lenine, homens e mulheres cheios de vida, em postura de luta, com
bandeiras. Do discurso/exortação, algumas palavras sobre ser igual, serem
iguais, percebe-se mal; canções do exército russo; operários e operárias.]
Continua
o mesmo filme e Urbano lê, do seu livro:
— Várias
vezes de manhã, cerca das sete horas, já Moscovo havia acordado, perfilavam-se
os homens vestidos quase de igual, com aquelas ligeiras gabardinas de meia
estação, feitas em série. Junto às paragens dos autocarros, o trabalho
principiava por todo o lado, na imensa capital dos estados da União Soviética. Ia eu, com o vento ainda frio a bater-me no rosto, até à Praça Vermelha, que,
desde o primeiro instante me atraiu como um sortilégio, talvez por causa desse
tom intensamente vermelho, que lhe dá nome e beleza. Krasnaia, vermelha [a
Praça Vermelha], significava em antigo eslavo bela. [Deixa de se ver o filme.]
— O que
há, na minha viagem à União Soviética, é uma, é uma certa ambiguidade, quer
dizer, eu falo com entusiasmo do país e do povo soviético, dos povos
soviéticos, a certa altura da viagem, começo a aperceber-me que nem tudo o que
os guias me [mais filme] dizem, o que seria muito bonito, se assim
fosse, corresponde totalmente à realidade, […] uma desconfiança e tenho muitos
contactos com escritores, Voznesensky, Ievtushenko, etc., que me falam, falam
de privações da liberdade.
[O
monte]
João de
Melo: — A natural insatisfação, que é uma parte do seu combate, pelas coisas,
pela vida, pelos sistemas sociais, pelo seu modo de ser e de estar em sociedade
e no mundo que lhe coube viver, se não é efectivamente uma das matrizes
essenciais da pessoa e do criador que ele é, que ele sempre foi.
— Há-de
haver qualquer coisa. Vai haver, vai haver, vai haver um novo mundo, com uma
procura do socialismo, mas que poderá não surgir, a meu ver, o mesmo socialismo,
que não será certamente, o socialismo da União Soviética. Foi uma experiência
que não se vai repetir.
[Canção
de Georges Brassens]
Heureux qui comme Ulysse
A fait un beau voyage
Heureux qui comme Ulysse
A vu cent paysages
Et puis a retrouvé
Après maintes traversées
Le pays des vertes années
Par un petit matin d'été
Quand le soleil vous chante au cœur
Qu'elle est belle la liberté
La liberté
Eu vou
ao Albert Camus, em Paris. E foi, inicialmente, uma relação de dois escritores,
que se conhecem na Sorbonne, o Albert Camus disse-me: «Ah, eu gosto muito de
Portugal, eu sou director literário da grande livraria Gallimard, você mora
aqui no Birro Latino, apareça por lá, venha conversar comigo.» Eu, primeiro,
pensei… bom, isto são coisas que se dizem por amabilidade, mas, depois, fui. O
Camus, como ele era, quer dizer, com esta cara comprida, inteligente… [mais Brassens] [imagens de Paris] [voz de Miguel Urbano:]
— Quando
vai para França e descobre a realidade francesa do pós-guerra, ele adquire uma
consciência social e política, quando volta a Portugal e descobre o Portugal
fascista dos anos 50, isso marca profundamente a vida dele e a literatura dele.
— Eu
penso que, se pensarmos nos contos e novelas do meu primeiro livro, A Porta dos Limites, Vida Perigosa e A Noite Roxa, há sobretudo a análise das personagens portuguesas,
postas em choque ou contrastadas com a vida francesa [imagens de ruas de Paris], mais liberta e
elas, por vezes, tentam ultrapassar os próprios franceses, em determinados gestos
ousados, mas lá por detrás está o peso dos preconceitos e eu o o peso dos
preconceitos chamo-os para uma terra que eles renegam, que é o Portugal do
fascismo.
Lê: «A
cama estava já como uma tábua dura e o pescoço de Irisalva doía; doía-lhe o
ombro, sobre o qual jazia, atormentado, esfibrado pelas unhas do reumático (aquele vento aguilhoante da noitinha entranhara-se-lhe no corpo e ficara lá). A boca
seca, sabia-lhe a redúvias.» (Bastardos do Sol, 7.)
[O longo e largo corredor, penumbra clara,
sol ofuscante, ao fundo; do lado esquerdo, estante em toda a extensão; à
direita, quadros. Ouve-se o vento.]
— Havia
uma relação de grande fraternidade entre os escritores portugueses, que eram na
sua grande maioria os maiores antifascistas. Isso aproximava-nos muito. É claro
que há sempre preferências, predilecções, amizades, que resultam às vezes de
circunstâncias ocasionais; outras vezes, de grandes afinidades, porque eu era
muito amigo do Fernando Namora, muito amigo do Carlos de Oliveira, muito amigo
do David Mourão-Ferreira…
O David
é uma pessoa com quem eu continuo a conviver; de vez em quando, quase que me
distraio a dizer: «Ó David, vê lá na estante em que data é que o Petrarca
escreveu este poema tal, porque não consigo recordar. Porque eu fazia isso e
ele era a minha memória segura. …
… … …
… São presenças. Pessoas que não morreram.
Não
sendo eu um neo-realista, porque estive mais próximo do existencialismo, do
surrealismo ou do onirismo, até surrealista, mas de qualquer maneira era
impossível não ter, não receber determinadas influências do neo-realismo em
Portugal. O neo-realismo vai muito no sentido do herói colectivo e eu, vou mais
no sentido do herói individual, embora o colectivo esteja presente; mas não há
uma personagem colectiva, o povo em marcha, com a sua visão do futuro…
[Ouve-se
Salazar a discursar, imagens de regime.] «Só uma palavra me acode, só uma
realidade existe a um nível deste acto de comunhão patriótica, e essa é
Portugal.»
—
Portugal era, segundo a definição de Salazar, «o jardim de modernidade da
Europa»; a coisa mais hipócrita que se pode arranjar.
[Hino da
Mocidade e imagens da Mocidade e de situações do regime, desfile de tropa a
marchar por avenida de Lisboa; «Angola é nossa», discurso de político, os
pastorinhos, boletim clínico de Salazar…]
[o vento]
— O
homem não é aquilo que é e age em função disso, o homem age, a partir de
escolhas e, então, o homem que ele é é aquele que pratica esses actos, que
cumpre essas escolhas.
[O
vento]
João de
Melo: — É sabido que, do ponto de vista social e político, o Urbano é um homem
de tomar partido, e foi um homem de projecto, e um homem, digamos que pagou
bastante caro alguns dos seus actos cívicos, para o qual ele esteve sempre
disponível, quer antes, durante a ditadura, quer depois do 25 de Abril, foi sempre
um homem de acção, um homem de palavra.
Miguel
Urbano: — Quando volta para Portugal, com o fascismo e com as perseguições, há
um assumir, ele toma consciência de que, como escritor, tem que participar e
tem que lutar. [vento]
— Embora
muito cedo estivesse perto do Partido Comunista, desse dinheiro para os presos
políticos, e até para o Partido Comunista, muitas vezes, de qualquer maneira,
funcionava como um antifascista que colaborava para salvar alguém, para o pôr
na fronteira, para lhe arranjar uma casa, para o esconder, funcionava, dava
apoio a todos os antifascistas. Falsificava-se o passaporte, quer dizer, o
passaporte tinha que ter o retrato dele, mas tinha um outro nome. E, então, ele
tinha um passaporte que, em Espanha, já seria de uma pessoa qualquer. Mas para
lá chegares, tinha que se ir combinar à fronteira que alguém em determinado
sítio previamente combinado era levado — quantas vezes eu fiz isso — era levado
por um passador até à margem de lá. E na margem de lá, ele ou eles, tinham de caminhar
a pé, até encontrarem o automóvel que os levava para o outro lado e onde eles
estavam a salvo.
Mas as
complicações, as casas onde era preciso metê-los, as pessoas que tinham medo,
quantas vezes eu tive alguns escondidos em casa, apesar de minha casa ser muito
vigiada, a Maria Judite a tremer de medo. Fui preso, fui preso, fui torturado,
tive cinco dias e cinco noites, sem dormir. E passei quase cinco meses em
Caxias, num isolamento total; sempre no cárcere, sem direito a recreio, sem ver
o sol, a não ser quando ia aos interrogatórios… Muito duro. Depois, habituei-me
àquela vida, fui arranjando estratagemas, para conseguir viver.
………………………………………………..
[Urbano
fala, com uns 40 anos]… — E outros, que tiveram torturas muito mais dolorosas,
não tenho o direito de me alongar em especulações sobre o que me aconteceu,
porque eu fui um dos muitos que passaram por lá e que realmente, pois,
resistiram, porque tinham uma razão para isso, duas razões, até. Uma delas,
sobretudo o companheirismo, o não querer denunciar ninguém. E a outra é o
respeito por mim próprio, que é qualquer coisa, também, de importante. [Volta o Urbano de agora.]
— Fui
muito, muito silenciado; tive livros apreendidos, livros proibidos de figurarem
nos escaparates,
[Livros
em cima de uma mesa; a seguir, imagem de compartimento sem janelas, paredes de
blocos (de pedra?), não rebocados. Em primeiro plano, duas cadeiras de
estrutura tubular, assento e encosto em fórmica; o resto é um montão de
detritos, cinzas?, e dois ou três elementos de um móvel, mesa ou cama.]
— […]
estava já, estava à espera daquilo. …
… … … A primeira vez foi uma coisa
insignificante, foi /…) ser signatário do programa para a democratização da
República. Eram comunistas, eram socialistas, aquele grupo… Mário Soares também
lá estava, também foi preso; então, fui preso, neguei tudo. Só me davam uma
esferográfica, uma vez, tirei a mina; fiquei com a mina, com aquela coisinha
frágil, com que se escreve muito mal, e comecei a escrever em papel higiénico
duro; onde se podia escrever. Se fosse do outro, enrolava e não seria
possível. … …
… Os Contos da Solidão.
Alguns…, dos Contos da Solidão.
…………………………………………………….
Durante
muito tempo, eu escrevi quase em transe, muitas vezes. Como se uma voz, vinda
não sei de onde, portanto até do Inconsciente, que me ditasse certas páginas e
são as pastas melhores que eu escrevi, são pastas desse tipo. [Urbano, aqui,
disse mesmo «pastas» duas vezes, onde esperávamos «páginas».]
[Imagem
de canavial, a parte superior das canas.]
— Devia
ser aí dos cinco, seis anos, pois…, quatro, talvez… … Lembro-me de coisas que me marcaram.
Lembro-me de coisas que me marcaram, que era a minha descoberta do sofrimento,
que me assustava, que eu não compreendia, mas que estava na minha frente. A dor
dos outros.
[Fotografia
da mãe com um bebé; mais duas fotografias com bebé, face colada à face; o bebé
sentado em encosto almofadado; canavial; o vento.]
A minha
mãe ficou connosco no Alentejo.
Miguel
Urbano: — A minha mãe, como eu digo, era muito conservadora. Então, contratou
uma professora. Nós aprendemos a ler e escrever em casa. Fomos fazer exame de
admissão, como era na altura, preparados por uma professora…
Urbano:
— … tradicional, burguesa, portuguesa, com um sentimento de classe muito forte,
mas eu conheci uma outra mãe; a mãe, que, pouco a pouco, foi evoluindo, na
medida em que via um filho exilado, o outro, a ser constantemente preso,
perseguido, e ela começou a evoluir, colocando-se contra o regime e
modificando-se, até certo ponto, tanto quanto é possível uma pessoa
modificar-se. … …
Foi cedendo, e ficou uma pessoa muito maia amiga e mais acessível. E
dessa outra mãe, eu tinha uma grande saudade. [O canavial, o vento; fotografia
do pai, com os seus 40 anos.]
......................................................
— Ele ia
lá passar fins-de-semana, às vezes ficava uns dias, trazia-nos presentes,
soldados de chumbo, que nós apreciávamos muito, brinquedos; nós tínhamos poucos
brinquedos, eram feitos por nós, com madeira, com barro. Quando o meu pai foi
preso, depois do encerramento do Mundo
e da Sé, o meu pai participou na revolução do 3 de Fevereiro de 1927
[Outra
fotografia do pai, já mais velho — tem um ar um bocado sério, um pouco
pessimista, compreensivo, de pessoa boa.]
e a partir daí, o meu pai vai
viver connosco. Durante algum tempo, resolve não ser jornalista e tentar
administrar o monte, do que ele não se sai muito bem.
……………………………………………………………..
Miguel Urbano: — Que
lembro-me, até, a minha mãe contar, como o meu pai tinha sido secretário, que
ele uma vez tinha ido jantar. Levava o menino ao colo, que era muito pequenino,
ao Palácio de Belém, com o Teixeira Gomes e que depois houve uma cena tremenda,
que ela ficou envergonhada; o Urbano agarrou uma colher de prata e não a largou
até que o Teixeira Gomes, o presidente, disse: «deixe lá o menino levar a
colher, que isso não tem importância nenhuma e tal…, senão ele fazia um
berreiro tremendo e não largava aquilo.
[Fotografia de Teixeira
Gomes, cotovelo sobre a lareira, de perfil, ao lado de um busto de homem,
também de perfil. Decoração clássica.]
— Ai, a
colher de prata, que giro! Como ele se lembra.
…………………............................................
— Eu
descobri os livros com dedicatórias para o meu pai, que foi muito amigo dele e…
e comecei a ler aquilo muito cedo. É um dos maiores ironistas da literatura
portuguesa. Uma fabulosa ironia, um extraordinário sentido de humor, acutilante
e crítico, que está presente na visão que ele nos dá da burguesia algarvia, em
quase todos os seus livros e até na peça de teatro Sabina Freire, mas, ao mesmo tempo, atravessou um século.
……………………………………………………………….
O livro
e o leitor
— Pensa o seguinte: pensa que um livro, quando encontra o último leitor, vai enriquecer
extraordinariamente esse leitor, ampliar a sua personalidade, dá-lo a conhecer
a si próprio, vai estabelecer um contacto entre ele e o mundo e não houve
intenção nenhuma, por parte do autor do livro, em fazer isso; só quis criar uma
coisa bela. A coisa bela tem que ser profunda e inteligente. Contudo, quem lê
um livro, muitas vezes, no final do livro, começa a ser um homem diferente. Eu
fiz grandes leituras dos surrealistas franceses e desenvolvi, assim, um grande
interesse por uma poesia, até certo ponto, enigmática, ambígua, que dá um
grande lugar ao sonho e que está muito perto da música.
Há
alguns dos poemas da Clepsidra, que
são verdadeira música, que criam mistério, é preciso como que recriar um
puzzle.
… a uma afogada
|
À flor da vaga, o seu
cabelo verde,
Que o torvelinho enreda e
desenreda…
O cheiro a carne que nos
embebeda!
Em que desvios a razão se
perde!
Pútrido o ventre azul e
aglutinoso,
Que a onda, crassa, num
balanço alaga,
E reflui (um olfacto que se
embriaga)
Como em um sorvo, múrmura
de gozo.
|
Não sei
se notou que é um poema muito carregado de uma sexualidade quase necrófila,
quer dizer, e ao mesmo tempo é um poema de luta, de um corpo a apodrecer, com o
mar purificador. Um dos poemas mais lindos que ele tem, que é quase só música,
é aquele que «ao longe os barcos de flores…». É lindíssimo, mas eu agora, vou ver se o procuro. ... ... ... Não encontro.
A
passagem do tempo
A passagem do tempo, vi-a
sempre como um inimigo, quer dizer, o tempo é aquilo que está concorrendo a cada
momento para a degradação de todos os seres humanos, quer dizer, para a trajectória
para a morte. Mas não só isso; os grandes afectos, os grandes amores, que o
tempo vai esvaindo, vão alterando, eu acho que tem uma presença muito forte em
tudo o que eu escrevi, o tempo ligado ao amor e à morte.
[Imagens e som de Urbano, na televisão.]
«Estou persuadido de que a esperança de grande
maioria dos portugueses e das classes trabalhadoras está efectivamente na
promessa que me foi feita de que possam ser asseguradas todas as liberdades
fundamentais, o direito de expressão, pleno, e de que haverá eleições
livres… … …
…»
Vivi
muito intensamente a vida, no sentido do risco, de que já falámos, no sentido
da adesão à luta por uma causa que eu acho justa e digna do nosso esforço, e
também como festa. Por exemplo, uma manhã de natação, quando eu podia nadar; no
Outono, numa…, no mar ainda tépido ou numa piscina um pouco aquecida…
[Vê-se o cartão de sócio do
Clube Nacional de Natação:]
SÓCIO
N.º 3887 EFECTIVO
Ex.mo Sr. Urbano Tavares Rodrigues
O PRESIDENTE O SECRETÁRIO
ASSINATURA
DO SÓCIO
_______________________
Era a
glória de viver, para mim, quer dizer, como estar com uma bela mulher… Segundo
me explicou uma vez uma bela mulher… [na análise]: Tu não és nada um Dom Juan
característico, mas tens um ar de menino abandonado, que precisa de ajuda, que
nos deita muito abaixo. Atraía-me tudo. Quando eu tive tudo, ara a parte, a
parte erótica e era ternura, companheirismo…
…, a compreensão, a compreensão do outro.
As
mulheres
Isabel
Ruth
«O facto de ele ser amável,
sedutor, que é, são facetas de uma pessoa, que é mais completa, não é? E são
facetas. Lembro-me de haver um fascínio, de parte a parte.
E havia um interesse em ele
saber quem eu era e eu com certeza, tinha curiosidade, até porque a palavra
«escritor» também fazia muito sentido para mim, não é? O que ficou em mim foi o
carácter dele, a gentileza e a amabilidade.» [Imagem de Urbano novo, de gabardina branca.]
Urbano: «Mas então ainda Irisalva cria nele, como num deus da Primavera, mesmo que a lucidez
sopeada a advertisse de que Delfino se enfastiava e se evadia, dia após dia, para
mais longe ou para a melancolia de uma estreita soledade, de uma irremediável
impotência.» (Bastardos do Sol, 3)
[Passam rostos de mulheres no
ecrã.]
«Provavelmente, havia em mim
uma capacidade de sedução, uma certa riqueza libidinal, digamos, que me impelia
muito para experiências amorosas. Sempre as achei mais interessantes do que os
homens, no sentido de que, como estavam a começar a sentir-se humilhadas e
presas, havia uma vontade de libertação. Isso tornava as mulheres muito
interessantes, em finais [vão passando imagens de mulheres] dos anos 50,
princípios dos anos 60, e essa vontade de emancipação fazia com que elas já
fossem interessantes; eram interessantes, humanamente [pinturas, com mulheres],
tal como eram interessantes, do ponto de vista literário.
«Há
mulheres que têm uma forma de beleza sua, que encanta, sem ser a beleza
convencional.
[Na
praia, mulheres com Urbano e outro homem novo, que pode ser o irmão.]
«Portanto,
houve mulheres com quem eu me senti perfeitamente encantado, sem serem belezas
perfeitas.
[Fotografia
de Maria Judite de Carvalho.]
«Eu vivi
com duas intelectuais, quer dizer: são os meus casamentos, a Maria Judite e a
Ana Maria. E ambas respeitaram sempre a minha solidão de escritor, sentindo que
ela era importante e entendendo-a. Sempre que possível, escolhi espaços privilegiados, às vezes, até, para evitar, justamente, tudo o que em casa traz, o
telefone, o barulho, as pessoas que chegam e… e… é com…, escrever o meu romance
para outro lado; para um hotelzinho na Praia da Rocha ou em Sesimbra.
«Mesmo
como uma figura solitária e solidária. Quer dizer: eu, a minha oficina de
escritor é também uma forma de solidão, … solidária, mas que pode não ser
solidária em determinados momentos, pode ir quase até ao desespero, ou à
angústia extrema. Escrever, (é) isso mesmo.
[Fotografia
de multidão, em comício ou grande manifestação pública, pequeno filme com cenas
militares do 25 de Abril, na rua, em Lisboa.]
«O 25 de
Abril, para mim, corresponde à realização de um grande sonho da minha vida. Dar
conquistas à liberdade.»
Ouve-se:
Aqui, posto de comando do
Movimento das Forças Armadas. A todos os elementos das forças militarizadas e
policiais, o comando do Movimento das Forças Armadas aconselha a máxima
prudência, a fim de serem evitados quaisquer recontros perigosos. Não há
intenção deliberada de fazer correr sangue desnecessariamente, mas tal
acontecerá, caso alguma provocação se venha a verificar. Serão nomeadamente
responsabilizados todos os comandos que tentarem, por qualquer forma, conduzir
os seus subordinados à luta com as Forças Armadas.
[Voz de João de Melo]
«Tinha
acontecido o sonho grande, pelo qual ele se tinha batido, tinha lutado. Eu
lembro-me duma alegria dele, uma alegria perfeitamente de rapaz.»
[Imagens,
filme, do 25 de Abril.]
UTR:
«Foi uma camarada, uma jornalista da República,
que me telefonou: “Olha, a Revolução está na rua.” Eram duas da manhã. E eu,
vesti-me a correr e entro na festa revolucionária, com uma grande euforia.
[Ao
mesmo tempo que as imagens do 25 de Abril, continuam a desfilar no ecrã,
ouve-se:
Grândola,
vila morena,
Terra de
fraternidade,
O povo é
quem mais ordena,
Dentro
de ti, ó cidade!
Dentro
de ti, ó cidade,
Dentro
de ti, ó cidade…]
«Eu
acompanho, como jornalista, a saída dos presos de Caxias e vi, logo, a primeira
[… saída dos presos de Caxias, filme] tarde, não é, com grande entusiasmo.»
Fala
João de Melo:
«No mesmo dia em que chegou
Mário Soares, de Paris, após o 25 de Abril, que nos encontrámos, uma multidão
enorme, em Santa Apolónia, e de toda aquela gente, eu acho que a pessoa mais
feliz era o Urbano Tavares Rodrigues.»
UTR: «E é uma grande
enxurrada, onde há coisas lindas, mas onde é preciso viver aquilo tudo, mas
foi, resumindo numa palavra, a festa revolucionária, foi para mim um período de
alegria intensa e profunda,
[Imagens de murais, bem
coloridos]
em que realmente parecia
mesmo ça va, ça marche, como se dizia
na Revolução Francesa, isto vai mesmo.
«Vi tudo
isso, vi tudo isso, vi com angústia, vi com paixão e, por vezes, com uma
alegria quase indizível, de tão grande que era, tanto correspondia ao sonho da
minha vida.
[Imagens,
soldado com G3]
«Uma
revolução é feita por heróis, por entusiastas, mas é feita, também, por
oportunistas, por, por bufos, está lá tudo.»
[Imagens
de filme — Um homem jovem, sentado a uma mesa, com outro ao lado, fala, em
sessão de trabalho político]
É urgente que os nossos governantes tomem
medidas firmes e dêem garantias a quem quer trabalhar e fazer produzir a terra.
Quem é que quer trabalhar e fazer produzir a terra? … … são os trabalhadores. Ou são os donos das
terras? … De maneira que, depois, [ouve-se uma voz …«não queremos a fome …»]
não queremos a fome, não queremos a miséria.
[Pequeno
filme: um homem fala, no campo, para nós ou para alguém atrás da câmara]
Depois, é claro, há muita
malta que vê pouco e diz assim: — hã e tal, na sei se se há-de trabalhar, se na
hei-de trabalhar. Está a perceber?
[Outra
pessoa fala, o homem de antes trabalha, agora, com um tractor]
A gente, ouvíamos dizer, e
por bocas, por fora: — Anda-se a tirar isto do Monte Branco, anda-se a tirar
aquilo do Monte Branco; onde se inclui cevadas, vinhos, etc., e outras coisas
mais. E, então, o pessoal da Atendeira reunimo-nos todos e convidamos todos os
que queriam, aqueles, entrar na cooperativa e já alguns estavam inscritos e
convidamos e atão vamos amanhẽ tomar aquela herdade, ainda alguém na chegue lá
e na [……………].
[Voz do
entrevistador]
Vocês
aprenderam, vieram para a Assumada, e da Assumada, o Monte Branco, precisamente
para evitar que algumas coisas mais saíssem, não é?
[Imagens
de um monte, deve ser o da família de Urbano]
Urbano:
«Desejava uma reforma agrária, mas não era assim que a imaginava. Era uma coisa
mais certinha. E aquilo feito, é uma reforma, uma revolução agrária. E
empolgante, que nos arrasta. E nunca nos teriam tocado em nada do que era
nosso. Nós tínhamos lutado pela reforma agrária, antes e depois do 25 de Abril,
e achávamos que devíamos dar o exemplo; porque era uma questão de coerência. E
assim o fizemos. Às vezes, pergunto-me se, como, se tinham grande amor àquilo,
se não teria sido um pouco de romantismo. Romantismo ou não, não me arrependo.
[Voz de Urbano]
As terras serão simples e as
águas murmurantes, piquenas as barreiras e as árvores de gigantes. Múltiplo e
forte viverá nas vilas um povo de pastores e camponeses. Não mais as igrejas
guardarão os Nosso Senhor no mundo fugitivo, chorando como um ser ferido, à
traição. E aos desconhecidos que baterem às portas, abrir-se-ão casas
acolhedoras.
«Como
homem, eu fui um homem que viveu profundamente empenhado, lutando desde muito
cedo contra o fascismo, contra a opressão, e em circunstâncias por vezes muito
difíceis, lutando dentro do meu próprio campo, até, fazendo críticas, mas, mas
sempre com um objectivo que é a sociedade onde o homem é irmão do homem.»
[Imagens
de um bebé, dando passos, a brincar com uma bola colorida — muito grande, de
plástico fino, com gomos cosidos, das que se enche, soprando. Marca RUCA, com
um sol — e a mexer numa almofada. Deve ser o filho.]
*
Silêncio,
… …, silêncio. Depois, diz umas
palavras e … pausa. Umas palavras …, pausa. Urbano de pé, ao meio do corredor,
direito, os pés juntos, de costas para a parede, ao lado direito de quem está a
ver. Os últimos quadros:
— O
bebé. Há um momento em que o bebé nos olha de frente. Os seus olhos;
—
Urbano, de corpo inteiro;
— O
perfil escuro, dos pés até aos joelhos ou pouco menos;
—
Urbano, da zona da cintura para cima.
É com
esta imagem em contraluz e em perfil que vamos ouvir as últimas palavras de
Urbano, neste documentário:
«A primeira lembrança feliz, … …, a primeira … …
… bom, quando ela se apoiava primeiro numa primeira vez que montei a
cavalo.» [cavato?]
*
A luz
entra no aposento e desenha um corredor de luz. A metade esquerda está
completamente escura. Na direita, a luz exterior reflecte-se nos espelhos,
dando alguma claridade. Ao fundo, uma porta de vidros grandes, as guarnições de
madeira pintadas de bege, alta, encimada por um tímpano grande em semicírculo,
deixa entrar a luz de fora quase ofuscante, para quem vê este quadro, do lado
escuro.
Urbano é um recorte todo negro, na contraluz. Uma sombra, como uma tábua
deitada no chão, continua o escuro da silhueta ao longo do corredor, até ao seu fim, perto do observador.
A sombra deixa de fora as pontas dos pés, percebendo-se perfeitamente a sua
delineação.
*
Tela
negra.
Passam
mais uns segundos. Em letras brancas, sobre a tela negra, em baixo, em dimensão
relativamente modesta:
Para
o Urbano
*
Segue o
genérico e ouve-se a canção tradicional «Olha o passarinho/Que bem que ele
canta/Quando está cantando/Parece que tem/Uma guitarra na garganta».
Quando
Urbano diz as últimas palavras, «a sociedade onde o homem é irmão do homem»,
começa a ouvir-se um som de fundo, espécie de ventania, que chega abafada do
exterior, mas se vai afirmando um pouco mais. Este som de fundo mantém-se, sob
a canção e o genérico.
Revisionando o filme, verificamos que este vento se ouve, se vai ouvindo muitas vezes, constituindo como um aviso, do princípio ao fim. Despertos e receosos. Lembra-te, homem!
*
Realização
Possidónio
Cachapa
Fotografia
Cláudia
Varejão
Câmara
Cláudia
Varejão
Possidónio
Cachapa
Som
José
Reis
Adriana
Bolito
Montagem
Rita
Figueiredo
Montagem
Som e Misturas
Hugo
Leitão
Produção
Maria
João Mayer+Francisco d’Artemare
Possidónio
Cachapa
Coordenador
de Produção
Fátima
Correia
Correcção
de Cor
Pop
Filmes
Designer
Rui
Guerra
Produtora
Delegada RTP 2
Olga
Toscano
Fontes
Documentais
Arquivo
RTP
Maria
da Conceição Neuparth
|
Documentalista
RTP
Vera
Paiva
Músicas
«Partisans
Song»
RUSSIAN RED ARMY
«Grândola Vila Morena»
Música
e letra de José Afonso
«Heureux
qui comme Ulysse»
Música
e letra de Georges Brassens
Depoimentos
Urbano
Tavares Rodrigues
Miguel
Tavares Rodrigues
João
de Melo
Isabel
Ruth
Agradecimentos
Ana
Santos
António
Santos Tavares Rodrigues
Herbert
Telo
Joana
Cachapa
Luís
Afonso Cruz
Miguel
Valverde
Sofia
Neuparth
|
(Mensagem modificada, por completamento da transcrição, correcção de erros, acrescento de algumas explicações intercalares e eliminação de outras, em 28-4-2013.)