19-07-2014
Era preciso ler o Proust todo. Ele obrigava os amigos a ler o Proust todo*.
E estes não estavam à espera de ser velhos, para o fazerem. Diga-se que era --
estou convencido disso -- para eles um prazer fazer parte do mundo de
Guermantes, Albertine, os Verdurin, Odette e tutti quanti... Entretanto, havia a vida lá fora, não tão real como a que
se vive no universo de À la Recherche du Temps Perdu, mas era
preciso sobreviver. Como conseguiria eu dar conta deste recado? Desde o Verão de 67 que tenho esta obra, numa edição de
bolso, que muito estimo. Li, naquela época, Un Amour de Swann,
texto publicado separadamente, na mesma editora -- a Gallimard --, reproduzindo
de Du côté de chez Swann (520 p.), a 2.ª parte (p.
225 a 456). Também, vejo pelos meus sublinhados e observações a lápis, bem
metade da 1.a parte de Du côté de chez
Swann. De então para cá, quase nada.
Penso que não seria admitido, se tivesse outras condições para nele entrar,
no convívio selecto das tardes, ali à Bertrand, no consultório do Dr. Pulido.
Faltava-me o pré-requisito básico de ler o Proust todo, em tempo útil. Sto
scherzando.
Dizia o Dr. Martins (Barbosa Martins), em Montargil, por ocasião de visita
domiciliária, em conversa, falando de Francisco Gentil e Pulido Valente, seus
ilustres colegas na clínica, querendo caracterizar algo da postura deles: --
Nem o Pulido é gentil nem o Gentil é pulido. -- Homens francos, competentíssimos
no seu mester. Deixemos este aparte de saudade, em relação ao Dr. Martins,
também ele homem muito inteligente.
Pois, hoje de tarde, dei uma volta por Torres. Fui armado, pelo sim, pelo
não, com A l'ombre des jeunes filles en fleurs, cujo título se
me perguntassem diria: «É A l'ombre des jeunes filles en fleur.»
Vejo, agora, que me enganava. Roubava um «s» ao título. Isto pode não ter
significado nenhum, mas temos o Dr. Freud para pensar nisso. Comecei pelo meio
e as poucas páginas que li deram-me o encanto indefinível havido desde a
primeira hora, já longínqua. A leitura foi acompanhada de breve e persistente
sorriso interior, se assim posso qualificar. Vou dar o texto em francês e
traduzi-lo. Não! O livro que me acompanhou foi Sodome et Gomorre. Depois do
texto antologiado, fala-se do convite feito ao marquês e à marquesa de
Cambremer. E entra na conversa uma crítica saborosa às etimologias de lugares
do antigo padre de Combray (págs. 289 e sgs.).
*
Em Saint-Pierre-des-Ifs subiu uma esplêndida rapariga que, infelizmente,
não fazia parte do pequeno grupo. Não podia despegar os meus olhos da sua carne
de magnólia, dos seus olhos negros, da construção admirável e alta das suas
formas. Ao fim dum segundo ela quis abrir um vidro, porque fazia um pouco de
calor no compartimento, e não querendo pedir licença a toda a gente, como só eu
não tinha capa, disse-me numa voz rápida, fresca e risonha: «Não vos é
desagradável, Senhor, o ar?» Teria querido dizer-lhe: «Venha connosco à dos
Verdurin», ou: «Diga-me o seu nome e morada.» Respondi: «Não, o ar não me
incomoda, Menina.» E depois, sem se mover do seu lugar: «O fumo, não incomoda
os seus amigos?» e acendeu um cigarro. Na terceira estação desceu de um salto.
No dia seguinte, perguntei a Albertine quem podia ela ser. Porque,
estupidamente, crendo que se não pode amar senão uma coisa, ciumento da
atitude de Albertine a respeito de Robert, estava seguro quanto às mulheres.
Albertine disse-me, creio que muito sinceramente, que não sabia. «Queria tanto
tornar a encontrá-la! exclamei. -- Tranquilizai-vos, reencontramo-nos sempre»,
responde Albertine. Neste caso particular, enganava-se; nunca voltei a
encontrar nem identifiquei a bela rapariga do cigarro. Veremos de resto porque,
durante muito tempo, tive de parar de a procurar. Mas não a esqueci.
Acontece-me muitas vezes pensando nela ser tomado de uma inveja louca. Mas
estes regressos do desejo forçam-nos a reflectir que, se se quisesse
reencontrar estas raparigas com o mesmo prazer, seria preciso voltar também ao
ano que foi seguido de dez outros durante os quais a rapariga perdeu frescura.
Pode-se às vezes reencontrar um ser, mas não abolir o tempo. Tudo isso até ao
dia imprevisto e triste como uma noite de Inverno, em que já não se procura
esta rapariga, nem nenhuma outra, em que encontrar vos assustaria mesmo. Pois
já não sentimos bastantes atractivos para agradar, nem força para amar. Não,
bem entendido, que se seja, no sentido próprio da palavra, impotente. E quanto
a amar, amar-se-ia mais que nunca. Mas sente-se que é uma empresa demasiado
grande para o pouco de forças que se conserva. O repouso eterno já pôs
intervalos em que não se pode sair, nem falar. Pôr um pé no andamento que é
preciso, é um êxito como não falhar o salto perigoso. Ser visto neste estado
por uma rapariga que se ama, mesmo se se conservou o rosto e todos os cabelos
louros de homem novo! Não mais se pode assumir a fadiga de acompanhar o passo
da juventude. Tanto pior se o desejo carnal redobra em vez de diminuir! Faz-se
vir para ele uma mulher a quem não se terá a preocupação de agradar, que apenas
partilhará uma noite o vosso leito e que nunca mais se verá.
*
* Juntavam-se ali todos e, então, o meu pai
descia da Brasileira, o Aquilino, a meias tantas, não ia muito à Brasileira, o
meu pai descia da Brasileira, descia, enfim, talvez o Lopes Graça ou qualquer
coisa, encontravam-se ali à porta da Bertrand, estavam ali coisa, e depois
desciam mais uns metros e naquela loja das floristas, não é!?, que era a loja
de entrada, então, ia tudo em grupo, em magote, subia para o consultório do
Professor Pulido Valente, que era, enfim, a figura, uma figura, digamos,
extremamente respeitada, e era uma figura assim magra, essa coisa toda. Tinha
muita piada, eu assistia várias vezes a isso, a essa descida entre a Bertrand e
o consultório do Pulido, juntava-se aquele magote todo e subia tudo lá para
cima. Então, as conversas, discutia-se tudo, pá, desde o Beethoven e a Missa Solene, pá, até ao Proust, quer dizer, o Professor Pulido obrigou o
meu pai, já uma pessoa idosa, a ler o Proust todo, hã? Está a perceber? Você já
pensou o que é um homem de sessenta anos ser obrigado a ler o Proust!? O gajo
exigia que os amigos lessem o Proust. Ele tinha uma grande admiração pelo
Proust e, enfim, essa coisa toda; e o meu pai devorava aquilo, quer dizer, ele
era uma espécie dum Mestre... Discutia-se muito, quer dizer, era uma tertúlia…,
com certeza que se discutia política, com certeza que se desancava o Estado
Novo, não é?, porque ali não havia pides, não é?, e… e discutia-se tudo.
(Palavras de João Abel Manta / Arquitecto, no
programa O LUGAR DA HISTÓRIA, emitido pela primeira vez na RTP, 2000. Reproduzido
na RTP 2, em 15 de Abril de 2013. Pode ver-se, também, pela internet,
procurando no sítio da RTP. A transcrição foi feita por mim e pode consultar-se
na íntegra, aqui.)
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