domingo, 20 de julho de 2014

Não vou conseguir entrar no consultório do Professor Pulido Valente

          19-07-2014

Era preciso ler o Proust todo. Ele obrigava os amigos a ler o Proust todo*. E estes não estavam à espera de ser velhos, para o fazerem. Diga-se que era -- estou convencido disso -- para eles um prazer fazer parte do mundo de Guermantes, Albertine, os Verdurin, Odette e tutti quanti... Entretanto,  havia a vida lá fora, não tão real como a que se vive no universo de À la Recherche du Temps Perdu, mas era preciso sobreviver. Como conseguiria eu dar conta deste recado? Desde o Verão de 67 que tenho esta obra, numa edição de bolso, que muito estimo. Li, naquela época, Un Amour de Swann, texto publicado separadamente, na mesma editora -- a Gallimard --, reproduzindo de Du côté de chez Swann (520 p.), a 2.ª parte (p. 225 a 456). Também, vejo pelos meus sublinhados e observações a lápis, bem metade da 1.a parte de Du côté de chez Swann. De então para cá, quase nada. 
Penso que não seria admitido, se tivesse outras condições para nele entrar, no convívio selecto das tardes, ali à Bertrand, no consultório do Dr. Pulido. Faltava-me o pré-requisito básico de ler o Proust todo, em tempo útil. Sto scherzando.
Dizia o Dr. Martins (Barbosa Martins), em Montargil, por ocasião de visita domiciliária, em conversa, falando de Francisco Gentil e Pulido Valente, seus ilustres colegas na clínica, querendo caracterizar algo da postura deles: -- Nem o Pulido é gentil nem o Gentil é pulido. -- Homens francos, competentíssimos no seu mester. Deixemos este aparte de saudade, em relação ao Dr. Martins, também ele homem muito inteligente.
Pois, hoje de tarde, dei uma volta por Torres. Fui armado, pelo sim, pelo não, com A l'ombre des jeunes filles en fleurs, cujo título se me perguntassem diria: «É A l'ombre des jeunes filles en fleur.» Vejo, agora, que me enganava. Roubava um «s» ao título. Isto pode não ter significado nenhum, mas temos o Dr. Freud para pensar nisso. Comecei pelo meio e as poucas páginas que li deram-me o encanto indefinível havido desde a primeira hora, já longínqua. A leitura foi acompanhada de breve e persistente sorriso interior, se assim posso qualificar. Vou dar o texto em francês e traduzi-lo. Não! O livro que me acompanhou foi Sodome et Gomorre. Depois do texto antologiado, fala-se do convite feito ao marquês e à marquesa de Cambremer. E entra na conversa uma crítica saborosa às etimologias de lugares do antigo padre de Combray (págs. 289 e sgs.).

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Em Saint-Pierre-des-Ifs subiu uma esplêndida rapariga que, infelizmente, não fazia parte do pequeno grupo. Não podia despegar os meus olhos da sua carne de magnólia, dos seus olhos negros, da construção admirável e alta das suas formas. Ao fim dum segundo ela quis abrir um vidro, porque fazia um pouco de calor no compartimento, e não querendo pedir licença a toda a gente, como só eu não tinha capa, disse-me numa voz rápida, fresca e risonha: «Não vos é desagradável, Senhor, o ar?» Teria querido dizer-lhe: «Venha connosco à dos Verdurin», ou: «Diga-me o seu nome e morada.» Respondi: «Não, o ar não me incomoda, Menina.» E depois, sem se mover do seu lugar: «O fumo, não incomoda os seus amigos?» e acendeu um cigarro. Na terceira estação desceu de um salto. No dia seguinte, perguntei a Albertine quem podia ela ser. Porque, estupidamente, crendo que se não pode amar senão uma coisa, ciumento da atitude de Albertine a respeito de Robert, estava seguro quanto às mulheres. Albertine disse-me, creio que muito sinceramente, que não sabia. «Queria tanto tornar a encontrá-la! exclamei. -- Tranquilizai-vos, reencontramo-nos sempre», responde Albertine. Neste caso particular, enganava-se; nunca voltei a encontrar nem identifiquei a bela rapariga do cigarro. Veremos de resto porque, durante muito tempo, tive de parar de a procurar. Mas não a esqueci. Acontece-me muitas vezes pensando nela ser tomado de uma inveja louca. Mas estes regressos do desejo forçam-nos a reflectir que, se se quisesse reencontrar estas raparigas com o mesmo prazer, seria preciso voltar também ao ano que foi seguido de dez outros durante os quais a rapariga perdeu frescura. Pode-se às vezes reencontrar um ser, mas não abolir o tempo. Tudo isso até ao dia imprevisto e triste como uma noite de Inverno, em que já não se procura esta rapariga, nem nenhuma outra, em que encontrar vos assustaria mesmo. Pois já não sentimos bastantes atractivos para agradar, nem força para amar. Não, bem entendido, que se seja, no sentido próprio da palavra, impotente. E quanto a amar, amar-se-ia mais que nunca. Mas sente-se que é uma empresa demasiado grande para o pouco de forças que se conserva. O repouso eterno já pôs intervalos em que não se pode sair, nem falar. Pôr um pé no andamento que é preciso, é um êxito como não falhar o salto perigoso. Ser visto neste estado por uma rapariga que se ama, mesmo se se conservou o rosto e todos os cabelos louros de homem novo! Não mais se pode assumir a fadiga de acompanhar o passo da juventude. Tanto pior se o desejo carnal redobra em vez de diminuir! Faz-se vir para ele uma mulher a quem não se terá a preocupação de agradar, que apenas partilhará uma noite o vosso leito e que nunca mais se verá.
(Sodome et Gomorre, Gallimard, Le Livre de Poche, s/d, p. 284-5.)






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Juntavam-se ali todos e, então, o meu pai descia da Brasileira, o Aquilino, a meias tantas, não ia muito à Brasileira, o meu pai descia da Brasileira, descia, enfim, talvez o Lopes Graça ou qualquer coisa, encontravam-se ali à porta da Bertrand, estavam ali coisa, e depois desciam mais uns metros e naquela loja das floristas, não é!?, que era a loja de entrada, então, ia tudo em grupo, em magote, subia para o consultório do Professor Pulido Valente, que era, enfim, a figura, uma figura, digamos, extremamente respeitada, e era uma figura assim magra, essa coisa toda. Tinha muita piada, eu assistia várias vezes a isso, a essa descida entre a Bertrand e o consultório do Pulido, juntava-se aquele magote todo e subia tudo lá para cima. Então, as conversas, discutia-se tudo, pá, desde o Beethoven e a Missa Solene, pá, até ao Proust, quer dizer, o Professor Pulido obrigou o meu pai, já uma pessoa idosa, a ler o Proust todo, hã? Está a perceber? Você já pensou o que é um homem de sessenta anos ser obrigado a ler o Proust!? O gajo exigia que os amigos lessem o Proust. Ele tinha uma grande admiração pelo Proust e, enfim, essa coisa toda; e o meu pai devorava aquilo, quer dizer, ele era uma espécie dum Mestre... Discutia-se muito, quer dizer, era uma tertúlia…, com certeza que se discutia política, com certeza que se desancava o Estado Novo, não é?, porque ali não havia pides, não é?, e… e discutia-se tudo.
(Palavras de João Abel Manta / Arquitecto, no programa O LUGAR DA HISTÓRIA, emitido pela primeira vez na RTP, 2000. Reproduzido na RTP 2, em 15 de Abril de 2013. Pode ver-se, também, pela internet, procurando no sítio da RTP. A transcrição foi feita por mim e pode consultar-se na íntegra, aqui.)

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