quarta-feira, 6 de dezembro de 2023

O Púcaro

Chega a época de Natal, com o dia mais pequeno do ano e a noite mais longa. Frio e calor, à volta de um cepo de sobreiro à porta da igreja ou junto ao cruzeiro. Dou comigo a lembrar o tempo de criança. Havia a missa do galo e, depois, convívio na sala-cozinha. Na chaminé, o fogo e o foco de intimidade. A melhor iguaria seria o pastel de grão, feito em casa. Preparava-se a massa (farinha, ovo, sal…), estendida, com um rolo; em cima, punha-se um montinho com uma colher – o doce de grão –, virava-se a «folha» de massa de modo a as duas extremidades se sobreporem, os dedos marcam o sítio onde está o doce para colar e a carretilha, rodeia, em jeito de meia lua, cortando no lado do encontro das duas metades da «folha». Deixa biquinhos, uma espécie de serrilha.
O dia mais pequeno e a noite mais longa simbolizam o recolhimento, a concentração, nas famílias e em comunidade; alegria, amor, consciência do sofrimento de alguns. Mesmo a natureza sofre e dela somos parte. A noite de 25 de Dezembro é iluminada pela celebração do nascimento de Jesus; nasce todos os anos e a natureza com Ele, na tradição arreigada na terra portuguesa…
Tenho vindo a pensar há algum tempo numa coisa humilde, de barro, quase confundível com lama, coisa normalmente depreciada. De barro se diz na Bíblia que somos feitos, querendo lembrar a nossa condição transitória. E a mensagem do Natal é o convite, a exortação a procurar, construir, salvar o que mais importa: as pessoas, em viver solidário. Em pequenas e grandes atenções e tarefas.
Na ceia de Natal, em criança, certamente não pensava no púcaro. Se pensasse, havia de encontrá-lo, ao menos na «pucareira», espaço ao canto, ao lado da chaminé, com o cântaro, a bilha, a panela e outra louça. Aos poucos, a certa altura comecei a pensar. Procurei, tenho procurado e não encontro o púcaro. Sei, agora, que há o púcaro rico, mas só conheci o púcaro pobre, de barro. É este que procuro reencontrar.
Quando li ALGUMAS PALAVRAS A RESPEITO DE PÚCAROS DE PORTUGAL, de Carolina Michaëlis, chamaram-me a atenção a tese muito provável por ela defendida «de que púcaros e búcaros* têm a sua pátria na Península», contra «o dogma antigo das origens americanas», (p. 10), o facto de irem à mesa de reis para matar a sede e outros usos, pouco vulgares entre nós, ao contrário de Espanha, como seja a bucarofagia, púcaros odoríferos, pôr flores e humidificar certos aposentos… E mais ainda me terá chamado a atenção a completa ausência do púcaro mais popular, a que chamo pobre, nas imagens publicadas. Só são apresentados exemplos de púcaro com bojo ou bochechas, como se lê nos versos de Afonso Lopes Vieira e nem um com a forma cilíndrica que trago na memória e de que encontrei confirmação junto de várias pessoas com quem falei e me pareceram dignas de fé.
O púcaro «rico» ia à mesa de reis, pela qualidade do barro, a porosidade, que fazia chiar quando se enchia, sobretudo quando era novo e refrescava a água. Todavia, era usado apenas uma vez…
Para concluir, devo confessar o espanto e alegria, ao descobrir pela boca do dono da Olaria Armando Caetano em Pinhal de Frades – Ericeira que o «púcaro rico», previamente esvaziado de ar, era usado para curar dores nas costelas, encostando-lhe a boca à zona dorida. Um meu conhecido a viver no Sarge e natural do vizinho concelho do Sobral conta o caso de dois endireitas, pai e filho, que faziam o mesmo com um copo de vidro, vendo-se a carne do paciente ser aspirada pelo copo-ventosa como pequena bola.
* Búcaro é o equivalente castelhano do português púcaro.
P. S. A definição mais simples que encontrei é a que vem a seguir à terceira imagem, abaixo. O «senhor de idade aproximada à minha», de boa presença, tinha ar de pessoa conhecedora.



Sobreiro, 7 de Abril de 2018
Na aldeia do Sr. José Franco
Um senhor de idade aproximada à minha: o púcaro tem o bordo recurvado para fora e uma asa. É de chacota (não envernizado).
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http://casacomum.org/cc/visualizador?pasta=10003.001.023
 http://mmap.cm-stirso.pt/proto-historia/
 http://www.matriznet.dgpc.pt/MatrizNet/Objectos/ObjectosConsultar.aspx?IdReg=121970
https://books.google.pt/books?id=URhxSzKOEZoC&pg=PA577&lpg=PA577&dq=p%C3%BAcaro+penado&source=bl&ots=y8-DFu3kFV&sig=iVPGz9Y2fNru75qZ05aEdhw7bjE&hl=en&sa=X&ved=2ahUKEwiFkojGiM_eAhWRyYUKHf3UAEQQ6AEwAHoECAkQAQ#v=thumbnail&q&f=false
https://www.uc.pt/uid/celga/recursosonline/cecppc/textosempdf/24avisitadasfontes (Índices de Formas e Concordâncias)

Tirar nabos da púcara

Avô Zé, com as tenazes “conchegava” os chamiços que ardiam; avó Ana encostava o púcaro de barro ao brasido cheio de água da Fonte Velha, quando começava a ferver deitava para dentro uma ou duas colheres de café, era tão bom, tão bom, perfumava toda a casa.
Para assentar, punha dentro do púcaro uma brasa; sabia tão bem!