sexta-feira, 23 de maio de 2014

De Helsínquia para o Aeroporto, 3


A gare da linha vermelha – Saldanha – é, entre todas, de alto nível. Começámos por esta, mas a ordem lógica de leitura, até uma ordem histórica, deve começar por Saldanha – linha amarela. É mais tranquila, de uma beleza mais sossegada, uma interpretação do mundo com a cor e poesia do mito. A zona intermédia, de passagem de uma «sala» à outra parece encaminhar-nos para as estações a caminho do Oriente e do Aeroporto, com as figurações em mármore rosa de Borba – rosto, mão direita, mão esquerda. Curiosamente, as figuras de convite apresentam-se na mesma posição, quer se venha de uma «sala», quer se venha da outra: de frente para o passante, o que não daria a nenhuma das gares prevalência sobre a outra. O mesmo se diga das figurações em mármore de Borba?
— O plano superior comanda o inferior — alvitra a minha interlocutora.
                                                           (Da mensagem «De Helsínquia para o Aeroporto, 2»)
*
A minha interlocutora já me esperava num dos átrios, na zona dos passageiros portadores de título válido. Depois de uma visita rápida à estação de Saldanha I, não tinha resistido a tudo querer ver melhor, retrocedi, voltei à linha vermelha, fui saindo, descendo, subindo escadas, comparei frases e desenhos de um lado e do outro da gare e dei comigo no Arco do Cego. A recompensa foi muito boa. Não tinha feito a ninguém a promessa de não voltar para trás a cabeça, como a mulher de Lot. Compreende o que digo quem viu ou vir as últimas imagens de De Helsínquia para o Aeroporto 2. E aqui estou, perante alguém já habituado a estas bizarrias. Vou ainda rever Saldanha I.


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Os painéis da gare

Dia
O galo, a mulher-dia, luz, água, barco à vela. Cores: azul e amarelo.
Assinado: LFA

Noite
Os humanos descansam; a sua natureza reconstitui-se; é o inverno do dia. Vemos um homem e uma criança. O mesmo barco repousa, de velas arreadas. Parece gente, também, com o desenho de um peixe na proa. É um olho aberto num barco que dorme; um peixe-olho.
À esquerda, uma águia (?), talvez um galo, á espera que a noite acabe.

Inverno
Homem velho (antropomorfismo), a passagem do tempo (ampulheta), na mão esquerda do homem, o bule do chá. Na zona central, homem e árvore parecem ser um. A cor de fundo é o preto. Um ramo nasce do tronco, cresce para a direita, sobe, vai na direcção da mão e torna a subir, volátil, desenhando uma figura humana de braços abertos em apoteose de ascensão, sobre o verde. Parece o espírito a sair da lâmpada de Aladino. Abaixo do bule, sobre o verde, novo esboço de bule e um pouco mais abaixo, um pássaro azul.
É Inverno.
Cores: preto, azul e verde.
Assinado: LFA

Primavera
Mulher ainda jovem, mas já perfeitamente amadurecida. Nos pés, sandálias presas por tiras. Ao lado dela, um homem sem aparências românticas; alguma barba. Na verdade, percebemos ali um centauro (meio homem, meio cavalo). Uma linha vertical (a meio do corpo do homem), cruza-se com outra, que lhe vem da base da cabeça, passando pelo metacarpo de uma mão direita. Do lado esquerdo desta linha quase vertical, outro braço segura um arco, apontado na direcção de um pavão, que deve representar a mulher. As cores são as mesmas: verde e rosa-velho, no pavão e na mulher; verde em alguma vegetação e na cabeça do Cupido (já mais rapaz…); rosa-velho, junto ao arco.
Flores rosa-velho e rosa-velho e azul. A mulher toca violino.
É Primavera.

Verão
O ceifeiro olha para a ceifeira. Ela olha para nós. A figura central é ela. Talvez sejam os dois, mas… é ela. Enche o quadro. Está do lado de cá de um muro azul; ele, do lado de lá, segura pela asa um cântaro, assente em cima do muro, onde também apoia o braço.
 — Sulamita, queres beber?
O cântaro de água, cântaro de desejos Em que pensa, quando nos interroga com o olhar? Em Paris, num café ou bar agradável, mostrando só numa tira do seu rosto os olhos*. Menina de algum mistério, à janela da sua máscara. Está completamente livre. Ele parece obstruído, atrás do molho de caules de trigo. Bem se importa. Só tem olhos para ela. Ela segura a foice.
Nós só para ela temos olhos. No chapéu, uma espiga de trigo. Ao seu lado, pombas brancas.
Ceifeira, linda ceifeira!
É Verão.
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(*) Vejo, agora, com mais cuidado, que não se trata de uma pintura pertencente ao quadro, de origem. A parisiense parecia estar dentro do cântaro. Trata-se, afinal, de um autocolante, ali posto por alguém. Quando um dia voltar à estação, será possível removê-lo? Se assim for, o texto será modificado, mas manterei esta ficção. Ficaremos com os dois textos.

Outono
Homem e mulher. Terra azul, chamas cor de rosa-velho ou folhas. Mulher com grande taleigo ou cesta no regaço…, frutos…, romã, uvas, …; dá uma peça de fruta cortada ao meio ao homem… Ele tem a mão esquerda levantada, com a palma aberta, na nossa direcção… Ela veste de amarelo (folhas?). Ele, no peito, veste da cor das folhas. São folhas. Fundo azul.
É Outono.
Assinatura: LFA

 Visão
Uma mulher em pose descontraída estende um espelho onde a outra se mira. Uma terceira ajuda-a; a sua cabeça apenas se adivinha.

Ouvido
Cores: rosa-velho, castanho, azul-claro, três tons de azul. Sentados no chão; o pai (Arlequim?) toca, a mãe (Columbina?), com a mão esquerda aberta, junto ao ouvido; com o indicador da mão direita na boca e um pouco virada para o filho, atrás, pede silêncio. O menino, de pé, parece querer andar, correr…, tem as duas mãos erguidas na direcção da mãe, como quem diz: «Está bem! Está bem!
A cor rosa-velho liga os três.

Olfacto
Um ser celeste, mulher de cabeça e pescoço coberto, vestida de tons azuis-claros até aos joelhos ou pouco além, ainda nos ares, verte perfume num frasco que
Nestes seres míticos e simbólicos, os pés aparecem, geralmente, livres, como as mãos. Com a mão esquerda, verte o perfume, com a direita, leva o indicador ao nariz, olhando para a mulher.
A mulher está sentada no chão, na direcção da visitadora, o tronco meio volvido, fica de frente para nós, a cabeça em sentido oposto. Aspira o aroma de flores.

Paladar
Homem, Mulher e Criança. A criança, atrás, os pais em primeiro plano. Um fundo azul, central. Nele se destacam o homem e a mulher. Cores: amarelo, rosa-velho, azul. Em cima de uma tábua-mesa, frutos que a mulher com um gesto da mão.
O homem bebe numa taça sumo dos frutos. A criança parece dizer qualquer coisa e segura um cacho de uvas na mão direita. Do braço e ombro do pai, uma faixa castanha prolonga-se e rodeia a criança (sobre fundo azul independente), integrando-a no grupo familiar. Têm todos boca e olhos de quem fala. Todos, ao mesmo tempo.
Assinado: LFA

Tacto
Criança; mulher. A palma da mão direita da criança toca a palma da mão direita da mulher. Parecem voar, estando a criança mais claramente em voo, mais distante do chão, embora as cabeças de ambos estejam à mesma altura. Dois tons de azul. Azul-escuro, como fundo, atrás da parte superior do corpo da mulher. Em parte, envolvidos por faixas amarelas, de luz, energia que os une. Uma das faixas de luz venda os olhos da mulher. Dir-se-ia cega de luz. O rapaz tem o ombro direito (o que nos mostra) e corpo limpo de qualquer asa, mas do seu lado esquerdo, abaixo do ombro, há um esboço que sugere asas. Como há uma ligeira torção no perfil, poderão ser duas asas. O corpo da mulher está quase de frente, só o rosto está de perfil para nós.
A energia, amor, luz que os une passa pelas palmas das suas mãos. O tacto. Elo de ligação, real e figurado.

Espera
Ao alto e ao meio, três ampulhetas. Da esquerda para a direita: cheia, meia cheia, vazia.
Parece que estão debaixo de uma ponte ou pontes e sob um arco de uma só cor (rosa-velho) que pode ser um arco-íris. Poderão ser duas mulheres: a da esquerda olha contemplativamente, a mão esquerda sobre um livro aberto, a direita, quase apoiada ao queixo, cotovelo sobre o joelho. A outra mulher, mais nova, desfolha, pétala a pétala, um malmequer, mal me quer, …bem me quer. Faltam algumas pétalas, que o vento vai levando. No extremo direito da composição, a ampulheta ameaçadora…, vazia.
A mulher mais velha, formosa e segura, parece não ter medo do tempo. Lê, pensa…, pensa sem tempo. Paira. Uma fita verde que lhe vem da cabeça e da testa esvoaça na brisa. Não há tempo.
O verde e o amarelo. Verde é a esperança indomável. O amarelo clama à responsabilidade. No livro e na flor-oráculo. O livro ensina, mas, estando aberto, é como se estivesse fechado. A flor adverte. Ambas as mulheres vestem de verde; a mais velha, menos; a mais nova, mais.

Encontro
O pintor fixou o momento do encontro. Ele, de azul, ela, de rosa-velho. É um momento alto. A grinalda que passa pelas suas cabeças, como que os coroa, à maneira dos heróis antigos. Quem segura a imensa grinalda, uma criança, aqui, não o filho, mas um cupidinho. Grinalda verde, símbolo de união de esposos; o verde simboliza a natureza e está na grinalda e como fundo ao corpo da mulher. Um pouco de verde, também, do lado do homem. A cor da natureza, a vida.
O pintor fixou o lapso de tempo em que a criança, cabelos-folhagem e asas-folhas, nos olhou, sem descurar as suas altas funções. É um olhar leve, gosta do que faz. Parece nadar ou voar.

Partida
Mulher, homem; crianças, caras viradas para a mãe, uma delas parece correr para o pai, de braços estendidos; a outra, para a mãe. As crianças formam um X, no cruzar dos seus movimentos. O homem e a mulher olham-se, o corpo dele já está meio voltado, só o rosto está de frente para a mulher. As mãos de ambos, levantadas e abertas.
Cor azul. Na mulher, sobre o azul do vestuário, barras largas rosa-velho, à volta do pescoço, caindo sobre as costas. Rosa-velho, também, na parte ventral e inferior. Desta região, sai uma pincelada-barra rosa-velho, continuada por mais três faixas, como despedida, desfraldam-se em direcção ao homem, como lenços compridos, flutuam ao vento. Estão unidos pelos lenços. Ela toca em dois, ele, noutros dois.
Assinado: LFA

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Luís Filipe de Abreu
O Dia e a Noite. A humanidade e as duas naturezas, como se fossem separadas, sendo, talvez, uma. Os elementos primordiais resumidos a quatro podem ser discerníveis duma maneira ou doutra no universo «fora» de nós ou no universo «dentro de nós». Também somos água, terra, fogo e ar. O tempo.
Luís Filipe de Abreu revela-nos nas pinturas da gare de Saldanha I a mulher, o homem, a família — a humanidade — na aventura de viver, feita de sentidos, alegria, tensões, trabalho, esforço, espera, esperança, separação, união, despedida e encontro. O amor, a amizade. As pessoas estão praticamente nuas de artifício, descalças. Aos atavios são leves, sem determinação de época ou lugar, de maneira geral. O tom mitológico serve para nos mostrar no essencial como somos e como nos vemos.
Das estações do ano, podemos dizê-las antropocêntricas, pois o ano desenvolve-se como a vida do Homem; vemos nas figuras correspondentes às estações do ano o quadro da vida humana correspondente a cada uma delas. Dentro da estação, como uma casa em que se habita, moramos, vestidos de ramos e folhagem, moramos nas árvores e somos ramos e folhas delas. Vimos da terra e a ela voltamos — isto é dito aqui, de maneira plástica.
O evoluir da gente é mostrado ao longo do ano/vida, como um caminhar do nascimento à morte, seguida por novo ciclo…
De maneira mais próxima da vida concreta, são-nos mostrados Os Trabalhos e os Dias, para usar a fórmula que tanta fama e uso logrou, desde Hesíodo ao nosso tempo.
Nas paredes das escadas de acesso ao piso inferior que leva à linha vermelha, pinturas versando os quatro elementos e sua ligação à actividade humana.
Luís Filipe de Abreu, mais uma vez, afirma a espiritualidade, faz-nos pensar na caminhada da vida… Há quase um ano, fiquei a conhecer e procurei entender o grande painel cerâmico, à entrada do Hospital de Portalegre. À entrada daquela estância de dor, é um grande memento! («Lembra-te, homem…»)
Ver, no fim, informação biobibliográfica sobre Luís Filipe de Abreu.
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Jorge Vieira
Os seus baixos-relevos estão nas paredes, nas entradas da Avenida da República e Praça Duque de Saldanha, nas zonas de passagem para a gare e acompanhando-dialogando com os trabalhos de Luís Filipe de Abreu, na zona dos quatro elementos. Têm a força e verdade do mito, do sonho, do homem nu e inteiro.
Só posso dizer de Jorge Vieira, que me parece de grande qualidade, cheio de interesse o seu trabalho, mas precisaria de o estudar com mais detença, pelo que prefiro nada dizer; ele aí está, para cada um apreciar por si.
São apresentados, no fim, elementos biobibliográficos de consulta. Agradável, para mim, a sua ligação a Estremoz.
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Estamos os dois cansados. A minha companheira de viagem, farta de esperar. Ao mesmo tempo com um sentimento de alívio, entramos numa carruagem, na linha amarela, com destino ao fim da viagem, Restauradores. Aí, vou apresentar rapidamente, à visitante do Museu do Metro, quase forçada, as cidades de Nadir, já minhas conhecidas.


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     Tem muito interesse e qualidade a ficha técnica da responsabilidade do Metropolitano de Lisboa, sobre a estação do Aeroporto. Aqui.

Tese de mestrado, sobre Luís Filipe de Abreu e o desenho das notas de escudo emitidas pelo Banco de Portugal, em


Tese de mestrado sobre Jorge Vieira (pode ver e abrir o pdf, em baixo, ao lado direito).

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