Converso com Deus em português, assim como Carlos V, do
Sacro Império, admitia falar com o Senhor em espanhol. Língua que só veio a
aprender ao desembarcar na Espanha no ano de 1515, à idade de quinze anos, para
assumir o trono espanhol que, de facto, pertencia à mãe, Joana, acusada de
louca e encarcerada no castelo de Tordesilhas.
No idioma luso, acolho impropérios
e expressões de amor. Nesta língua aprendi que a complexidade e o mistério da
realidade subsistem mediante o uso pleno do léxico. E que, ao pensar em
português, o mundo melhor se ordena a fim de facilitar meu trânsito por suas
vias secretas.
Com que gozo, ao longo dos anos, pulei a cerca para entrar
no quarto alheio que deixou a porta a aberta pensando em mim na língua comum. Quando
nos confidenciávamos fingindo que comprometiam o mundo em nome do amor. Também
nesta língua o padre me perdoou os pecados antes de eu completar vinte anos.
Cada palavra que usei ao longo da existência traiu-me,
enalteceu-me, deslumbrou-me como se eu fora Camões. Mesmo quando burlava com
seres e personagens, o retorno que a língua me dava me redimia. A paisagem lírica
ou dramática, que me ensejava, sempre me turvou os sentidos. Não sei se de
alegria ou de melancolia, esta herdada dos portugueses. Também não sei se é
mais fácil mentir com ela ou tecer os elogios que podem ser confundidos com
bajulação.
E o que mais pensar que se faz com esta língua? Claro que
falar com Deus, como Carlos V. De maneira que não O assuste e que Seu silêncio
não me perturbe, me roube o ânimo de viver e de pecar.
Aguardo alguns minutos, mas Deus não me responde. É do Seu
feitio distinguir os eleitos, os que têm vocação para a santidade, que não é o
meu caso. Compreendo a Sua estratégia. Também eu, em me-//nor dimensão, sou
dotada de pequenas táticas. Alguém que, sujeita à ruptura das normas, traduz a
ordem caótica dos acontecimentos como pode, sempre com o idioma luso.
É com esta língua amada que enfrento os nós da criação que
pratico na calada da noite. E me dou conta, altaneira e orgulhosa, que esta
língua garante-me o ofício, fez de mim uma escritora.
Só me resta, então, no crepúsculo ou no anoitecer, inclinar
a cabeça em reverência e agradecer comovida.
(Nélida Piñon, no Livro das Horas, p. 69-70)
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Disse-o, há pouco tempo (neste blogue, 14-02, p. p.); este é um elogio da língua portuguesa que me comoveu, agradou por dentro. As palavras foram ditas pela autora, no programa A Força das Coisas, da Antena 2.
É ainda melhor ouvir. As mesmas palavras ditas, e ditas no meio da conversa com Luís Caetano. Começamos a ouvir e, de repente, como diria Jorge Rodrigues (outro excelente apresentador e pedagogo da Antena 2, com Ritornello, que acabou abruptamente), «Apertem os cintos!», mais atentos, logo enlevados.
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http://www.rtp.pt/play/p321/e184549/a-forca-das-coisas; começa aos 73:02.
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