segunda-feira, 2 de março de 2015

Nélida Piñon, no Livro das Horas


Converso com Deus em português, assim como Carlos V, do Sacro Império, admitia falar com o Senhor em espanhol. Língua que só veio a aprender ao desembarcar na Espanha no ano de 1515, à idade de quinze anos, para assumir o trono espanhol que, de facto, pertencia à mãe, Joana, acusada de louca e encarcerada no castelo de Tordesilhas.
No idioma luso, acolho impropérios e expressões de amor. Nesta língua aprendi que a complexidade e o mistério da realidade subsistem mediante o uso pleno do léxico. E que, ao pensar em português, o mundo melhor se ordena a fim de facilitar meu trânsito por suas vias secretas.
Com que gozo, ao longo dos anos, pulei a cerca para entrar no quarto alheio que deixou a porta a aberta pensando em mim na língua comum. Quando nos confidenciávamos fingindo que comprometiam o mundo em nome do amor. Também nesta língua o padre me perdoou os pecados antes de eu completar vinte anos.
Cada palavra que usei ao longo da existência traiu-me, enalteceu-me, deslumbrou-me como se eu fora Camões. Mesmo quando burlava com seres e personagens, o retorno que a língua me dava me redimia. A paisagem lírica ou dramática, que me ensejava, sempre me turvou os sentidos. Não sei se de alegria ou de melancolia, esta herdada dos portugueses. Também não sei se é mais fácil mentir com ela ou tecer os elogios que podem ser confundidos com bajulação.
E o que mais pensar que se faz com esta língua? Claro que falar com Deus, como Carlos V. De maneira que não O assuste e que Seu silêncio não me perturbe, me roube o ânimo de viver e de pecar.
Aguardo alguns minutos, mas Deus não me responde. É do Seu feitio distinguir os eleitos, os que têm vocação para a santidade, que não é o meu caso. Compreendo a Sua estratégia. Também eu, em me-//nor dimensão, sou dotada de pequenas táticas. Alguém que, sujeita à ruptura das normas, traduz a ordem caótica dos acontecimentos como pode, sempre com o idioma luso.
É com esta língua amada que enfrento os nós da criação que pratico na calada da noite. E me dou conta, altaneira e orgulhosa, que esta língua garante-me o ofício, fez de mim uma escritora.
Só me resta, então, no crepúsculo ou no anoitecer, inclinar a cabeça em reverência e agradecer comovida.
(Nélida Piñon, no Livro das Horas, p. 69-70)

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Disse-o, há pouco tempo (neste blogue, 14-02, p. p.); este é um elogio da língua portuguesa que me comoveu, agradou por dentro. As palavras foram ditas pela autora, no programa A Força das Coisas, da Antena 2. 
É ainda melhor ouvir. As mesmas palavras ditas, e ditas no meio da conversa com Luís Caetano. Começamos a ouvir e, de repente, como diria Jorge Rodrigues (outro excelente apresentador e pedagogo da Antena 2, com Ritornello, que acabou abruptamente), «Apertem os cintos!», mais atentos, logo enlevados.
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