FEV
70 — Nascimento de Maomé, o profeta. Festejos natalícios da parte dos
muçulmanos da Província. Às nove horas, na pista de aterragem, o cherno, chefe
religioso dos muçulmanos, reza, acompanhado de grande multidão. Às dez horas,
um cortejo de homens grandes tocando tambores, mocas e cantando, faz uma visita
de cortesia junto ao bar de oficiais.
Chega
entretanto o comandante do Batalhão, que recebe os cumprimentos. Um dos homens
do cortejo dirige-se em fula ao Exmo. Tenente-Coronel Rocha Peixoto. Cantam,
tocam tambores e retiram-se, deixando-nos na retina por largo tempo as
compridas vestes brancas.
21FEV70
— Sou surpreendido dentro da minha tabanca pelos cantos monótonos da procissão
do cherno.
À
tarde estivemos no alpendre onde ele estava, de frente para a assembleia de
homens grandes, sentados e descalços. Dois homens que vão sendo revezados
sacodem o ar com dois panos na direcção do seu papa. Muitos fiéis o vêm
cumprimentar. Descalçam-se, pegam-lhe a mão e esboçam uma vénia.
Há
dez anos que não vinha a Mampatá. Veio por Áfia, Malibula, Caussara e esteve a
rezar pela paz nas cinzas da extinta tabanca de Bácar Dado*. Antigamente,
quando os caminhos eram francos, ia à República da Guiné. «Há lá mesquitas
feitas pelo cherno» — diz-nos Baró. Ia também ao Senegal.
Quantos
filhos tem? «sapoidjegó», 16, um deles, recentemente em Meca, cumprindo o
preceito corânico.
Presentes
os oficiais de 2.ª linha, alferes Aliú, de Mampatá, e tenente Baró, de Aldeia
Formosa, este, um grande conversador.
O
cherno, mais tarde, celebrou na mesquita e pernoitou aqui. No dia seguinte,
pelas 15 horas, pôs-se a caminho para Quebo, com uma comitiva de cerca de cem
pessoas.
*Grande distância, para os seus 64 anos.
(Ronco, Jornal do CIM, n.º 15, 15 de Março de 1970, p. 11)
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NOTÍCIAS
DE BOLAMA
[…]
22JUL70
Recebemos
a visita dos senhores deputados em visita pela Província. Na comitiva, o senhor
capitão Andrade do P. F. A., o senhor deputado Pinto Leite, o senhor deputado
Leonardo Coimbra, filho do filósofo português do mesmo nome, e o senhor
deputado Pinto Bull, da Província da Guiné.
A
comitiva tinha estado de manhã no sul e em Aldeia Formosa e vinha visivelmente
bem disposta. Salientou-se imediatamente o bom espírito do senhor deputado
Pinto Leite, que falava de Aldeia Formosa e do Cherno Rachide.
A
notícia chegou dois dias depois da sua visita a Bolama. Um helicóptero perto de
Teixeira pinto perdeu-se da formação.
A
morte que não conhece horas nem pessoas estendeu-lhes o abraço violento dum
tornado.
Foi
assim que o destino imobilizou num desastre a alegria e vitalidade dos que
havia pouco tinham estado connosco.
Foi
uma desagradável surpresa.
Lembramo-nos ainda perfeitamente de todos
os malogrados. Aqui fica o nosso pesar e o nosso recolhimento.
(Ronco, Jornal do CIM, n.º 23, 01AGO70,
p. 3 e 20)
Está
em Aldeia Formosa o homem de maior autoridade e prestígio entre os fulas da
Guiné. A sua direcção espiritual é acatada bem além da fronteira portuguesa. É
homem de aspecto simples, forte. Já o vi sentado no chão, com os homens-grandes
à volta. Alguns falam, falam, falam; ele ouve e intervém na conversação, de vez
em quando.
Vêm
homens-grandes, mulheres, soldados, descalçam-se e cumprimentam-no. Pegam-lhe a
mão e esboçam uma vénia. Ele é o maior, o sábio, o doutor, o santo. Ele é o
CHERNO…
(A
assembleia ocorreu em Mampatá, a 21FEV70)
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A CANÇÃO DO CHERNO RACHIDE
Filhos
amados, vosso pai Rachide
Uma
regra de vida nos vai dar,
Segui-a
com rigor e não tereis
Nada
que lastimar.
Raparigas sabei
que um homem espera
Encontrar na
mulher três qualidades:
Respeito aos
seus segredos, ao seu leito
E
a todas as vontades.
A
vós rapazes dou-vos um conselho
Que
todo o sábio para si tomou
De
outro, inda mais sábio, Logomane
Que
outrora assim falou:
— «Deves ter fé
em Deus que tudo vê
«E tudo pode
acerca dos mortais
«Trabalha com
ardor e serás útil
«A
ti e aos demais.
—
«Estuda e elevarás a tua alma
«que
os livros bons te podem ensinar
«Muitas
coisas formosas deste mundo
«e
a Deus agradar.
—
«A palavra, o alimento e o sono
«Como
remédio deverás tomar:
«O
bastante p’ra que o corpo não sofra
«Mas
sem nunca abusar.
— «A boca é uma
e as orelhas duas
«Isso te indica
como proceder
«Usa o ouvido
mais do que o falar
«E saberás
viver.
—
Em três partes o estômago divide
«P’ra
comida só uma reservar
«As
outras hão-de ser bem necessárias
«P’ra
água e para o ar.
— «A noite é
grande e não deve ser gasta,
«Do sol posto à
manhã, toda a dormir,
«Destina parte
dela à oração
«Terás feliz
porvir.
—
«Deves casar p’ra nunca cobiçares
«Mulher
doutro. Não nego, o casamento
«Traz
desgosto profundo.
«Mas
se a fêmea procuras fora dele,
«Em
vez desse desgosto terás dois
«Neste
e no outro mundo.
Meus filhos,
quem seguir estes conselhos
No decurso da
vida há-de contar
Satisfações a
esmo.
E maiores
triunfos que o atleta
Que vença toda a
gente nos torneios,
Pois vence-se a
si mesmo.
«Esta canção entoada diariamente pelos
seus alunos define Cherno Rachide»
(In
Grandeza Africana, de Manuel
Belchior)
[Em
Ronco, Jornal do CIM, n.º 32, 1 de Janeiro de 1971, p. 25 e 26]
***
Grandeza
Africana
recolhe na língua portuguesa as quinze lendas que Manuel Belchior ouviu em Nova
Lamego (Gabu Sara), onde chegou em Dezembro de 1961, da boca do régulo fula
Alarba Embaló, que se mostrou um óptimo auxiliar.
As primeiras
lendas que vão seguir-se têm o seu cenário longe das fronteiras da nossa Guiné,
no velho Mandem (foco original dos mandingas) ou no reino fula de Maciná, e os
personagens nelas referidos viveram, segundo a cronologia estabelecida por
escritores e viajantes árabes, nos séculos XIII, XIV e XV. Quanto às últimas,
já se passam no nosso território ou nas regiões vizinhas e narram factos
ocorridos no século passado.
As lendas do
Mandem e do Maciná são património histórico e intelectual tanto dos mandingas e
fulas da Guiné Portuguesa, como dos indivíduos das mesmas etnias que se
espalham por vários estados africanos onde, se tomarmos os dois povos em
conjunto, chegam nalguns casos a constituir a maioria das respectivas
populações (Mali e República da Guiné) ou importantes minorias (Senegal, Nigéria, Camarões).
(Do PRÓLOGO do autor)
«A
CANÇÃO DE CHERNO
RACHIDE» é a última do
livro e, tal como todas as que a antecedem, serve de título em capa à narrativa
que segue, neste caso, antecedida por um POSFÁCIO, ou melhor, constitui a parte
final do posfácio. Aqui, estamos na contemporaneidade. E imersos na tradição.
Basta ver que a «canção do Cherno Rachide é na maior parte preenchida com os
conselhos «Que todo o sábio para si tomou / De outro, inda mais sábio, Logomane
/ Que outrora assim falou:»
***
«Tive o privilégio de, com o meu Capítão
(Eurico de Deus Corvacho), ser recebido, em Aldeia Formosa, pelo senhor Cherno
Rachide, o chefe espiritual daquela zona que se estendia para além da fronteira
(1).
Fiquei impressionadíssimo com o porte e as
palavras sábias que nos dispensou. Na despedida apenas nos disse (em
francês!!!): "Procurem não maltratar o meu povo".» (Palavras tiradas, daqui.)
Mais, sobre o Cherno
Rachide; o
desastre do helicóptero; Não há solução militar — disse
Pinto Leite.
Obs.: Para aprofundar sobre a influência e o
contexto do Cherno, pesquisar directamente em http://blogueforanada.blogspot.pt.
Olhando bem a foto, não tenho dúvida.É mesmo o Patrício.Você fez uma introdução ao meu primeiro texto para o RONCO. Procuro o contacto do "então" Cap. Matos, hoje Coronel na reforma.
ResponderEliminarOlhando bem a foto, não tenho dúvida.É mesmo o Patrício.Você fez uma introdução ao meu primeiro texto para o RONCO. Procuro o contacto do "então" Cap. Matos, hoje Coronel na reforma.
ResponderEliminarEstive a ler o texto a que se refere e acho que desenha bem a melopeia nostálgica da música e canções árabes ou muçulmanas que ouvíamos. Mais à noite, não? Essa toada que faz sonhar, rodar a mente, «Roda roda roda.
EliminarTudo roda por fim numa vertigem e tende a subir num remoinho e transforma-se agitando-se no espaço sideral. Lá em baixo a bola colorida que é a TERRA [...]»
leva-nos numa transição sem darmos conta. Bem descrito...
Há, pelo menos, um texto seu anterior a este:«AUA já tem nome».
Vou ver se alguém tem o contacto.
JL