sábado, 7 de março de 2015

Viagem no RITA MARIA

VIAGEM NO RITA MARIA
MISTER CHARLES, CANDIM, HOLLYWOOD E OUTRAS COISAS MAIS…
      A viagem no RITA MARIA, de Lisboa até Cabo-Verde, correu sem incidentes e com bastante monotonia. Essa monotonia foi quebrada de quando em quando. Aparecem certos pontos altos na jornada, pelo menos agora, à distância…
       Aparece como ponto muito intenso: Mister Charles. Mister Charles que esteve quarenta e nove anos na América, que deixou o Fogo natal aos dezassete ou dezoito anos…; como é escuro o passado desta ilha, ilha de deportados.
     Mister Charles, com a língua que aprendeu em Cabo-Verde quase completamente esquecida… Muitas coisas nos ofereceu este homem que veio morrer à terra. Que veio à terra casar com uma rapariga nova, futura viúva alegre, à custa do dinheiro (DÓLARES) que ele andou a mourejar… Sim, porque este emigrante era do tipo de mourejar e esgaravatar dólares (talvez esteja já morto algures na ilha do Fogo…).
      Quantos contos teria ele na pasta? Chegaram-lhe a oferecer 50 contos pela pasta. Mister Charles, 90 contos pela pasta?
      Aparece outro ponto muito intenso: Candim. Com dois filhos aos dezoito anos, uma retirada de nove meses em Dacar. Este Cândido sentava-se à mesa e falava-nos. Era um homem do mar que nos falava, um homem livre e desorientado. Tinha umas conversas um tanto próprias e desprendidas. Normalmente diz-se dum homem como Candim: «Tem a sua filosofia da vida.» Diz-nos: «O trabalho em Dacar não é brincadeira nenhuma.» E das cabo-verdianas: «A mulher cabo-verdiana ilude-se. Eu dizia que as amava, mas eu não amava ninguém.» E disse também uma frase que ficou a repercutir em mim e no Monteiro, uma frase com todo o tipo de sentença: «A mulher da Europa não acredita no amor.» Era uma frase fácil de entrar no coração dos europeus. Era a frase de que precisávamos para justificar os nossos fracassos amorosos… A mulher da Europa não acredita no amor… A mulher cabo-verdiana ilude-se; um homem diz que as ama e elas acreditam… Pois, sim, Candim… E a mulher africana? — Mas o Candim só conhece as mulheres de S. Vicente, vulcânicas como as suas ilhas.
      O Candim é como muitos outros, com a vocação e a necessidade do mar, em petroleiros, barcos ingleses, viagens de 45 dias… Mar Negro, Gibraltar, Cabo da Boa Esperança. O Candim foge das suas ilhas, foge da sua prisão oceânica… Foge, mas regressa como os outros, de vez em quando. O encanto do mundo passa-lhe pelos olhos, depois das grandes viagens… O Candim não tem dinheiro, gasta tudo em três dias nos portos… O Candim, no fim de contas, é uma criança eterna aos trinta anos, um estéril vagabundo, homem que nunca consegue ter dinheiro nas mãos. É sempre um rapaz ao pé dos emigrantes da Holanda ou outros lugares que enviam dinheiro para a família ou mandam fazer casa em S. Vicente. Nós também gostávamos de ter as viagens de Candim: Califórnia, Los Angeles, «fui a Los Angeles», Hollywood. E vem a confissão do encanto que também a nós embriaga: «Hollywood é uma maravilha.»
      Outro ponto intenso: a paragem na ilha da Madeira. Todos a sair do barco à pressa, uns nos táxis, outros a pé a percorrer os bares. Mais uma vez aqui nos aparece o Charles a gastar 800$00 num bar. Primeiro, tomava-se o cocktail: 20$00. Quem tivesse sede de outras bebidas, ia para o reservado, uma sala ao lado, em que em vez dom cocktail se bebia champanhe. Ou «tchampenhe», na boca do Charles. O Charles cantava: «Beber cocktail, beber cocktail.» As meninas fizeram-no gastar um dinheirão!... O champanhe que as sequiosas companheiras pediam provocava-lhe, agora, uma certa reserva: «Não querer ouvir falar nesse nome de tchampenhe.» Brincava com a empregada do barco, a menina… «Queria casar com a menina…»
      Outro ponto intenso: ainda aqui aparece o Charles como elemento número um de toda a gente embarcada… São as canções na noite da véspera da chegada a S. Vicente. Havia um cantor, uma guitarra e no meio da roda formada para assistir, o Charles. Toda a gente aceitava a autenticidade do seu suor, da sua pasta, pois não largou a pasta para dançar, a legitimidade dos seus passos caprichosos no chão, a legalidade do seu sapateado. Ao fim de quarenta e nove anos, caramba! S. Vicente tão perto, ao fim de quarenta e nove anos…
      Como ele afastava as crianças que lhe fechavam o círculo, com um gesto da mão… Foi um monumento o Charles com a barriga obesa, uma camisa encarnada e amarela, à hippy. O cantor cantava, o da guitarra acompanhava e o Charles dançava.
      Outro ponto: S. Vicente e a Praia e a frase do escritor a vir-nos à memória: «Cabo Verde não é Europa nem África, é Cabo Verde.» Esta frase foi imposta pelo espectáculo do Porto de S. Vicente…, com os estivadores a estender a mão para a chapa que lhes permitirá trabalhar na descarga do barco. Pelo espectáculo do desembarque na Praia, ao largo, porque não há cais acostável… Tantos barcos à vela a correr, a voar em direcção ao navio… Um escritor das ilhas — e isto contou-me um cabo que vinha também para a Praia — descreveu o esvoaçar dos barquinhos à volta do navio, como os pássaros a ir buscar o comer ao bico da mãe. O escritor ou poeta acertou em cheio com a sua imagem.
      A monotonia da viagem foi cortada de vez em quando, como dissemos no princípio desta narrativa. Podíamos ainda falar em grupos, na mulatinha bonita e aristocrata, menina de salão e de grupinho, ou no seu chevalier servant. Em S. Vicente, no HOTEL PORTO GRANDE e pelas ruas, num automóvel muito caro como alguns que existem em Cabo Verde (parecem aviões sem asas), lá andam eles…
      Mas a monotonia, ressalvados os momentos que assinalámos, foi grande. Durante a viagem, enquanto durava a monotonia, lembrei-me da vida dos homens que fazem do mar a sua profissão. Mesmo a vida dos oficiais não me pareceu muito brilhante. Sempre o mar…, o mar…, o mar. Mar azul, primeiro, mar verde, depois, água barrenta à entrada do Geba. Sempre o mar, o céu azul e os jogos de cartas na sala. Para nós, passageiros, a viagem era uma coisa transitória…
      Mas, para os profissionais do mar, que lhes deixam as inúmeras horas sobre a imensidão aquática? Que fica ao chefe das máquinas, depois de tantos anos a bordo? Ele diz, nada. Ou diz, muito pouco… Fica muito pouco... Fala como se fosse tudo muito vago…, como o sulco que o barco abre na água para fechar logo a seguir…
      Fala na Reeperbahn, em Hamburgo. Conhecia muito bem a Reeperbahn e a avenida S. Pauli. Andou durante doze anos a fazer o caminho de Hamburgo, namorou uma senhora alemã durante doze anos — os mesmos que durou a carreira para as terras germânicas — e diz que as alemãs são muito egoístas no amor… confirma, assim, no tocante à Alemanha e só até certo ponto, as convicções do Candim. Disse muito sobre S. Pauli, aqueles grandes bailes… A preferência de uma alemão por ele, quando soube que era chefe (de máquinas…), era chefe, tinha dinheiro… Mas tudo isso passou, não ficou nada, é como a rota, imperturbável depois da passagem dos navios…
      Enquanto durou a conversa até vir um vento fresco e a hora do jantar. O mar azul ondeava nos olhos do chefe, o seu barco navegava-lhe as pupilas. Os grandes lazeres, o tempo disponível e um quarto lembraram-me muitas vezes ANTÓNIO SÉRGIO. O mar será bom para quem quer ler muito, instruir-se, mas por uma temporada. ANTÓNIO SÉRGIO deixou o mar..., que é um poema, mas um poema grande demais…
*
      Deixo, aqui, esta memória de viagem para a Guiné, onde estive a cumprir uma comissão de serviço militar. Foi publicada no Ronco, Jornal do C. I. M. (Centro de Instrução Militar, em Bolama). Os meus companheiros de viagem mais próximos eram dois alferes, um deles, médico, o outro, depois de desembarcarmos, seguiu para Bambadinca, comandar um pelotão. Rapazes. Olho para estas palavras e… que hei-de dizer? Parecem-me um tanto objectivas…, de mais? Era assim…Deixarei, aqui, mais algumas, uma selecção. Se eram muito adequadas para um jornal militar, não sei muito bem. Algumas coisas, não seriam. Mas, quem agrada sempre? Ao ler, agora, o Ronco, encontro coisas interessantes de outros colaboradores. Talvez, na altura, não atentasse tanto nelas. Uma ou duas, porei aqui, também.
      Obs.: A viagem durou onze dias. Pus o pé em Bissau, em 4 de Novembro de 1969. Já depois do regresso definitivo, uns tantos anos depois, li, no Diário de Notícias, talvez, a notícia do abate do RITA MARIA, da Companhia Geral, que pertencia à CUF. Era um navio misto, de carga e com a lotação de 95 passageiros. Da viagem, lembro mais alguma coisa, mas há sempre algo que lançamos pela borda fora da história, embora não da lembrança.

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