domingo, 1 de março de 2015

Luandino Vieira

Li o livro, quando ganhou o prémio da Sociedade Portuguesa de Escritores, em 1965. Linguagem, nos modos de dizer, no contar as coisas e no discurso directo, como a das pessoas que encontrava no dia a dia. Sem sair da língua portuguesa, angolanização. Abro LUUANDA e nas epígrafes, frases em quimbundo (penso eu) sabem a grego, como nos livros mais ou menos eruditos, em que se encontra citações em grego no alto da página. Erudito não quer dizer, simplesmente, afastado do viver comum, em marcenarias ou lapidações de torre de marfim; a palavra significa, na sua origem, o que deixou de ser rude, se poliu. E porque não erudito este livro de Luandino Vieira, de seu nome José? [1]
Ma ‘xi ietu iá Luuanda mubita ima ikuata sonhi…
                                                                           (de um conto popular)

*
Gostava muito de Delfina, queria mesmo ela sabia todas as coisas da vida dele, mas como ia-lhe contar então o que tinha sucedido nesses dias de procura de trabalho? Ou ainda falar esse trabalho de carregar cimento no porto, serviço assim só de monangamba, ela não ia aceitar, ia-lhe deixar naquela hora, naquele sítio, no meio do caminho das barrocas. Também dizer não tinha trabalho, não encontrara serviço, era pior. Delfina continuava falar, sentia-se mesmo na voz dela era só para fazer raiva, dizia João Rosa já tinha-lhe prometido falar no patrão para lhe mudarem no escritório, que ela devia mas era ir mesmo na escola da noite e que depois queria se casar com ela, se ia aceitar namoro dele e mais outras conversas de João Rosa, só para irritar Zeca Santos. Essas palavras magoavam-lhe, lá dentro sentia tristeza, vergonha dele mesmo, mas também sorte não tinha, gostava a pequena, o pior é que trabalho de todos os dias custa encontrar. Pensou a tarde já estava ser boa com esse encontro, pena Delfina estar-lhe xingar assim. Medroso, agarrou-lhe no braço e baixando a voz na orelha dela, falou como ele sabia:
— Ouve então, Fininha? Você esqueceste o sábado? Aquilo que disseste, enh? Para quê você está se zangar? E depois falar assim à toa nesse sungadibengo de Rosa, para quê? Eu não fico raivado, qu’é que você pensa? Agora tenho meu emprego aí com Maneco, na estação de serviço… E depois, você sabe, você viu no baile. Marcelina anda-me chatiar…
— Ih! Essa sonsa?! Sukuama! Já viram! Tem nada de cheirar…
(Luuanda, p. 28)

Na televisão, a preto e branco, apareceu alguém a comentar  o livro, a linguagem usada, dando exemplos em quimbundo, para pôr em relevo o seu cunho sintético, com uma ou duas palavras ou expressões muito sucintas. O pouco que quer dizer muito. E expressivo. Lembro-me de um senhor, angolano negro, mas talvez estivesse acompanhado em sua mesa por mais uma ou duas pessoas.
            Já se sabe como as coisas terminaram com a extinção da Sociedade Portuguesa de Escritores. Para mais, ver, aqui.
*
O Zé (Luandino) Vieira deixou de ser português? A língua em que escreve é a portuguesa ou o português, angolanizado (?). E o próprio Luandino?
Durante muito tempo, achei estranho. Possivelmente, pensava que para ser angolano, tinha de deixar de ser português. E tão novo..., mas, é na novidade que se dão as grandes absorções. Parece-me, agora, que não. É angolano, mas sem deixar de ser português. O ser íntimo, o leite materno não é como a pele da cobra, que se possa despir. Fica sempre na pessoa, que evolui tanto, a ponto de ter, e ser, outra nacionalidade, enriquecendo-a com a origem que tem dentro de si, com  a origem que ele é, continua a ser.
Luandino nasceu em Vila Nova de Ourém; vive no Minho, em convento do amigo e escultor José Rodrigues. Para prazer de quem chegar a estas linhas, aqui ficam duas peças de Alexandra Lucas Coelho, que, quando foram publicadas, li com todo o interesse e um pouco comovido. É «ouvi-lo» contar a sua vida no antigo convento, verdadeiro frade ou eremita, na frugalidade e vida simples, sem parar de escrever; e a enorme paciência ou hábil adaptação ao aproveitar o pouco que lhe era possível na vida de reclusão no Tarrafal. Lindo!
Os anos de cadeia foram muito bons para mim(1Mai2009)
Ver, também de Alexandra Lucas Coelho, a entrevista a Luandino (15Dez2006).
*
Sugestão, para mim mesmo
Reler LUUANDA; ler a cidade e a infância, contos. A CIDADE E A INFÂNCIA, edição da Casa dos Estudantes do Império - Lisboa
LUUANDA e A CIDADE E A INFÂNCIA tiveram edição fac-símile, por A Bela e o Monstro, Edições, 2014.


[1] José Vieira Mateus da Graça.  Curiosamente, mantém no pseudónimo  o nome dado pelos pais ou padrinhos: José Luandino Vieira.

Sem comentários:

Enviar um comentário