sábado, 14 de março de 2015

O TROVISCO
Alferes no pelotão de morteiros, do BART 1914, sediado em Tite, de 1967 a 1969. Transferido para o C. I. M., de Bolama, aqui completou a comissão, em Março ou Abril de 1970

Encontrei em Bolama um conjunto de alferes que na hora da refeição falavam e discutiam com uma vivacidade, que cheguei a pensar…, mas não! Um deles me disse darem-se todos muito bem, aquilo era só aparência e energia. Claro que estes afluxos não eram contínuos. Todos tinham vindo do mato e chegavam a Bolama, para completar a comissão, dando recruta às companhias de instrução formadas por naturais da Guiné, das várias etnias. Nem sempre os grupos de trabalho são iguais. Este era muito bom. Gostei francamente de os conhecer, nos primeiros dois meses em que estive em Bolama, antes de ser mandado para Mampatá, no Sul, a oito quilómetros de Aldeia Formosa (para os fulas, Quebo).
Depois do jantar, íamos para a parte do edifício defronte da grande praça central de Bolama. Da messe, descia-se três ou quatro degraus e logo ali à esquerda nos sentávamos a conversar. Nessas conversas, destacava-se pelo volume da voz, a alegria que tinha, o Trovisco. Era um rapaz, um homem muito forte e às vezes saía um vozeirão e gargalhadas, à medida da sua robustez, que parecia fazerem tremer as paredes. Contagiantes. Os passeios ao cais, à ponte-cais eram obrigatórios, a chamada volta dos tristes. Havia um café na marginal, junto à entrada da ponte-cais, do Cabo Augusto, senhor já idoso, que tinha sido da marinha. Nunca faltavam ostras e cerveja. Ia-se, também, conviver uma vez ou outra com camaradas do Destacamento de Fuzileiros, ali mesmo à beira do canal que nos separa de S. João, do outro lado, no continente. Ia-se a S. João de sintex (banheira, também lhe chamávamos).
Iniciada uma recruta (não a completei), estávamos no campo de futebol a dar instrução e aparece o Trovisco (devia vir de Bissau e ainda não nos conhecíamos). Estávamos fardados, mas no peito só a camisola branca a que hoje se chama «T shirt». E o Trovisco pergunta a um dos alferes antigos, camaradíssimos dele, como é que eu era (se era assim como os outros). A pergunta era de circunstância, para dizer se temos homem.
No Natal, o Luís Almeida e eu, com outros militares, e mais o Trovisco, fomos fazer a segurança de Bissau. Ficámos alojados no Cumeré. Andava-se um pouco na estrada para Nhacra até uma ponte-cais de madeira e do lado de lá do canal do Impernal, diz-me a memória que se via bem Bissau, a uns vinte quilómetros de distância. Lembro uma patrulha nocturna a Nhacra, à tabanca, pedindo a identificação a algumas pessoas. Também fomos, de dia, ao quartel. Dormíamos em colchões de água, com aqueles gomos longitudinais e as costas e o flanco, o corpo todo, ao princípio dançavam um bocadinho. Repelente para os mosquitos. Lembro o cabo enfermeiro, uma simpatia de rapaz, o cozinheiro – de manhã, era importante o pão e o café… No fim, deu um elogio (contacto informal) ao Luís Almeida, pelas suas qualidades no trabalho e humanas. O cozinheiro era da guarnição de Bissau. E o Trovisco? Ficou sempre em Bissau. Nunca cheguei a saber bem o que lá andava a fazer. Sei que o Luís dizia que andava f. e ref. com ele. Ele usava só o ref., que não tem nada a ver com «referência».
Fomos uma vez a Bissau, o capitão Rosa, o Trovisco, eu e não sei quem mais,  escoltar os «Barões de Bolama», soldados prisioneiros, que estiveram dois meses em Bolama (por ali à solta), enquanto a prisão de Bissau era arranjada para os poder lá ter, pois não tinha as condições, precisou de obras. E regressaram a Bissau, de onde tinham vindo, com alívio para nós, pois, mesmo não se tendo registado problemas, não era fácil o convívio com eles.
No ensino aos instruendos, lá à maneira dele, funcionava na perfeição.
Quando voltei de Mampatá – ao fim de apenas quatro meses, fui um felizardo –, o Trovisco já não estava em Bolama. Tinha terminado a comissão.
Numa passagem por Lisboa, de férias, encontrei o Trovisco, no Rossio, à porta do café Nicola. Estava acompanhado por dois ou três amigos, bem disposto e falámos um pouco. Falou no meu regresso a África e empregou a palavra «matagal». Mais ou menos, assim: –  Então, vais para o matagal? – Ninguém dizia «matagal», mas «mato». Isto diz um bocadinho sobre o Trovisco, que era ou devia ser um rapaz muito urbano, muito de aproveitar o convívio que uma cidade permite. Gostava de conviver.
Um grande abraço ao Trovisco, lá onde estiver.
*
A seguir, três textos no Ronco, Jornal do C. I. M., com  referência ao Trovisco. O segundo é de minha autoria, o conteúdo do terceiro foi contado à minha pessoa pelo Benedito Lopes.
***
O CIM em notícias
Mais dois alferes do Centro de Instrução Militar a terminar a sua comissão.
Os últimos meses vividos pelos alferes Machado e Trovisco em terras da Guiné foram passados no C. I. M. E foi grande a acção que desenvolveram na nossa Unidade. Oficiais competentes, inteiramente devotados pelo serviço deixam atrás de si uma página inesquecível.
Ronco regista a partida e formula votos de felicidade.
 [Publicado no RONCO / Jornal do C. I. M., n.º 17, 15 de Abril de 1970, pág. 10]


CARTAS DA ALDEIA
[…]
Mampatá, 9 de Maio de 1970
Sido, o intelectual. De óculos e pera afilada. Um fula inteligente, mas preso aos hábitos da sua raça, hábitos dum distrito dentro do planeta. Sem o sarro da incompreensão a empedernir-lhe a cabeça. Sem a actividade, o fogo de vista dos que chegam // a BOLAMA todos chibantes nos seus fatos civis. Aqueles que o Alferes Trovisco visava na chegada de um novo contingente saído da L. D. G. «Vêm de camisa Lacoste e óculo fumé…» e a gargalhada do Trovisco, aquele gargalhadão enorme abalava toda a fachada do C. I. M. …
— Então, aquele gajo é o intelectual cá do sítio? — pergunta um amigo de ALDEIA FORMOSA que veio cá passar a tarde, o capelão. O Sido atravessava o largo junto à mesquita com uma revista debaixo do braço. «É, é, é o intelectual cá do sítio.» … ao fim da tarde, é infalível: lá está ele na mesquita com o rosário nas mãos.
Este é um dos homens do Pelotão. Evoluído, lê as Selecções, o jornal. Tem o livro A GUERRA DO BIAFRA, cheio de fotografias. Corpos escorridos pela fome, quadros duma guerra duríssima…
… Mas é uma pena que esteja na sua terra, na terra que o absorve. É o sangue que o chama, mas sangue que afoga… É pena que permaneça no seu distrito, distrito de arame farpado…
(Ronco, n.º 19, 30 de Maio de 1970, págs. 3 e 11)

OS BALANTAS DA C. CAÇ 17 CONTAM…
[…]
Benedito Lopes
— Cantámos ne recruta:
Tiro já mofum tansã
Alferes Trovisco nétuadem biabdô
Dete Kindulo com deta bidali
Lité nim cruta netesum sunga

Tradução
Ao princípio julgámos que duraria pouco.
Ao fim de algum tempo decorrido estivemos cansados.
O alferes Trovisco que não julgávamos capaz disso.
Corre pouco, não corre com força que nós já estamos quase a desmaiar.
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— Outra, também cantada quando íamos de licença, na Páscoa:
Barcaça ióli, barcaça ióli
Messe Bolama fida nanlussa
Baga santa barco ute binsan
Barcaça ute.

Tradução
Barcaça demorou, barcaça demorou
Estamos fartos de Bolama
E dizem que o barco está
Para chegar e esse barco
Nunca mais chega.
[…]
(Ronco, n.º 25, 1 de Setembro de 1970)

 Praça Sousa Guerra
Foto tirada do alto da antena de transmissões, no interior do C. I. M. Ao meio, a figura tutelar de Ulisses Grant, que decidiu arbitralmente a questão da posse de Bolama (entre Portugal e a Inglaterra), a favor de Portugal. (Sentença proferida em  21 de Abril de 1870.)
O edifício da esquerda era a Escola de Habilitação de Professores de Posto
No da direita, fica actualmente a sede da AMI.

 Administração do Concelho

Dia de festa, com o edifício da Administração do Concelho por cenário
3 de Abril de 1971: desfile dos recrutas, depois do Juramento de Bandeira e imposição de crachás aos participantes no I Congresso das Etnias da Guiné, que ocorreu em Bissau a 2 de Agosto de 1970. Presente o Governador e Comandante-Chefe, Gen. António de Spínola, e outras altas entidades militares.

Igreja matriz de Bolama, de dimensão insuficiente para as necessidades da paróquia
Fica no mesmo lado do quartel, mas muito perto da Administração do Concelho

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(Óptimo trabalho. História interessante e bem contada. Tem muitas fotografias. O fluxo do tempo mostra a escala das coisas. Nuns breves (?) seis anos, quantas pequenas diferenças. (Ou grandes?) Na vista aérea de Bolama, o local do memorial a Ulisses Grant, assinalado no «quadrado» frente à Administração do Concelho, fica no «quadrado» da direita, havendo outro de permeio. Trata-se de um grande espaço entre a antiga Administração do Concelho e o edifício, no extremo oposto, onde está instalada a sede da AMI.)
Infelizmente, entre outras fotografias de interesse, há algumas que nos deixam constrangidos, pelo estado a que se deixou chegar edifícios-património de todos os guinéus. Ao edifício da Administração do Concelho de então, com a sua colunata à grega, se chama uma vez Palácio do Governador. Ver, se se quiser, à direita, as páginas e ligações.
http://www.ami.org.pt/default.asp?id=p1p211p212p623&l=1 (A AMI em Bolama)
http://www.ami.org.pt/default.asp?id=p1p7p28p108p244&l=1 (Histórico da AMI na Guiné-Bissau)

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