Fernanda Botelho [180°]
Eu cheguei a Lisboa num dia de sol. Parece o primeiro verso de um poema,
mas cheguei por acaso a Lisboa num dia de sol. E ao sair do Rossio, da estação
do Rossio, olhei para a luz, olhei para aquilo e senti-me no paraíso.
Fernanda Botelho
No passado dia 19 de Abril, a RTP 2 emitiu mais um de vários programas
sobre escritores portugueses, desta vez, Fernanda Botelho.
Venho oferecer a transcrição do que foi dito e lido no decorrer do
programa. Colegas da Faculdade e no ofício da escrita, estudiosas da sua obra,
tiveram o privilégio de a acompanhar nesta peregrinação em que estamos. Todos
con-viveram.
Da minha parte, ficou muito por anotar quanto a fotografias, documentos,
partes de filme, que foram sendo apresentados em simultâneo, ilustrando as
falas, ou em pequenos interlúdios. Foram mostrados, por exemplo, os cafés -- a Orquídea, a Paraíso, o Chave de Ouro. Digamos só que no diálogo tirado de
«Bailarico Saloio» aparecem os rostos de duas mulheres [actriz Cecília
Guimarães], irmãs (é o mesmo rosto, lado a lado), fala uma, responde a outra,
parecem ter 50 anos, uma mais desenvolta/agressiva, a outra, mais compreensiva
e humilde. No livro Gritos da
Minha Dança, em breve nota explicativa a este «teatro sem acção», são
apresentadas como personagem A e B; a personagem A é uma idosa de
aproximadamente 70 anos e a personagem B, de meia-idade, com aproximadamente 50
anos.
E Henry Miller, na casa de Natália
Correia, fazendo a felicidade de Urbano Tavares Rodrigues, que nos conta o caso.
*
F. B. -- Fernanda Botelho
A. M. C. V. -- António Manuel Couto
Viana, poeta. Um dos directores da Távola
Redonda, em que Fernanda Botelho colaborou.
U. T. R. -- Urbano Tavares
Rodrigues, jornalista, professor universitário, escritor.
J. V. -- Joana Varela, directora da
revista Colóquio / Letras -- Fundação Calouste Gulbenkian. Fernanda Botelho
dedicou-lhe o seu último livro, Gritos
da Minha Dança.
G. A. -- Graça Abreu, professora da Faculdade de Letras de Lisboa, escreveu Da Surdina ao Clamor: Arquitetura da Crise em Fernanda Botelho.
F. Branco -- Fernanda Branco,
professora do ensino secundário; escreveu Orquestração
Rigorosa para Uma Terra sem Música.
J. M. A. -- Joana Marques de
Almeida, autora de A Figura
Feminina em Fernanda Botelho.
*
Fernanda Botelho [180°]
(Voz.) «Não
sinto nostalgia do passado. Pois que fiz eu na minha vida, que mereça a
sacralização das lágrimas fora de prazo? Escrevi uns livros que o tempo vai
escorrer para a poeira das coisas esquecidas. Acumulei livros que não sei o que
a posteridade vai fazer deles, quando o espaço que ocupam for utilitariamente
reclamado e não havendo, aliás, quem os leia.»
(Pág. 65, de Gritos da Minha Dança.)
(Urbano Tavares Rodrigues, na sua casa.) «Conheci
a Fernanda Botelho, na Faculdade de Letras de Lisboa, onde andávamos em anos
diferentes, mas…, e em curos diferentes; porque eu fiz Filologia Românica e ela
fez Filologia Clássica; mas conheci-a, era uma rapariga baixa, muito bonita,
com feições finas, com um sorriso levemente irónico e que o que aliás já
deixava entrever a personalidade dela.»
(Joana Varela, nos jardins da
Gulbenkian?) «Era uma mulher muito interessante, muito bonita e com um
tipo muito pouco português, não é?, muito branca, com os olhos verdes…»
(António Manuel Couto Viana, em sua
casa.) «Era singular, era diferente dos outros. Irreverente, e
realmente, sem preconceitos, apesar de ser uma mulher do Norte.»
(Voz de Joana Varela.) «Uma das
coisas que sobressai mais na imagem da Fernanda é o facto de ela ter o cabelo
muito curto, que é uma coisa que, isso, isso não era vulgar.»
(Voz de UTR.) «Era uma
pessoa nitidamente avançada para a época dela; em todos os comportamentos e
isso está explícito nos livros dela, está muito marcado.»
(Voz de AMCV.) «Havia,
talvez, um certo frisson com, com a
mãe, não é, realmente, a mãe estaria em desacordo com certas atitudes dela e
sobretudo, bom, com a sua literatura.»
[Aqui, a página
de rosto de A Gata e a Fábula, com
dedicatória:
Lx. Setembro de 61
Para a minha mãe
esta Ⱥ GATA
E A FÁBULA, numa
dedicatória muito
simples, porque é
a mais sincera de
todas as dedicatórias
— ditada pelo grande
amor que lhe tenho.
Da sua
Nanda
(Fernanda Botelho)
(J. V.) «Conflitos com a mãe que terão sido
sempre bastante surdos, quer dizer que a Fernanda tinha respeito pela mãe e
portanto que acataria a ordem estabelecida. Sei, por exemplo, que a Fernanda
queria fazer Direito, que não havia no Porto, não havia Faculdade de Direito no
Porto, a mãe foi matriculá-la a Coimbra e ela veio de lá matriculada em
Clássicas, porque Direito não era um curso para raparigas.»
(Fernanda Botelho.) «Mas
admito que foi uma educação austera, de que eu consegui libertar-me e, nessa
altura, deixei de ter preconceitos. Os preconceitos que eu tinha deixaram de
existir.»
(Urbano.) «Ela é de família aristocrática, descendente
do Camilo Castelo Branco e do Abel Botelho.»
(J.V.) «O Abel Botelho foi um escritor
naturalista, que fez uma imensidão de romances, daqueles com muito adultério e
muitos casos de mulheres perdidas e coisas assim parecidas e, portanto, dá a
ideia que pelo menos corre ali, naquela família, corre um sangue qualquer, que
tenha a ver com literatura.»
(Voz de FB.) «Nasci no
Porto em 1926 e estudei no Porto, fiz a minha instrução primária no Porto…»
(Uma voz lê.) «Toda
esta minha inépcia era um tanto ou de todo inexplicável. É que aos quatro anos, sem saber explicar
como, aprendi literalmente a ler sem mestre. Repito, não sei ou não me lembro
de qualquer explicação para o facto ou de como o facto aconteceu. Seja como
for, esta minha prematura capacidade é rigorosamente autêntica. E como será
óbvio, a partir do momento em que meti o dente na suculência das letras e das
palavras, passei a devorar livros.»
(Pág. 15, de Gritos da Minha Dança.)
[Vê-se, à medida que se ouve a voz, as
páginas de O Livro da Primeira Classe,
primeiro, de fugida, a 99, depois, vão sendo folheadas, a 103, a 105, a 107 e a
110.]
(Fernanda Botelho aparece na imagem, com O Livro da Primeira Classe na mão.)
[Ao mesmo tempo que se ouve FB, uma faixa
transparente desliza na vertical, com quatro tiras brancas longitudinais,
deixando um espaço maior ao meio. Sobre esta passadeira, começa a ler-se:
d
e
s
o
b f
e e
d i
i t
ê a
n
c a
i
a D
e
u
s
Uma pergunta começa a ler-se ao alto, e a
atravessar esta resposta, da direita para a esquerda:
Sabes o que é um pecado, meu pequenino?
Entretanto, a resposta que vimos acima
aparece completa: «É uma ofensa feita a Deus.» Mais abaixo, em letras maiores:
«… que quer ser bom, um menino corajoso confessa as suas maldades.» Todos estes
dizeres se encontram na pág. 110 de O
Livro da Primeira Classe, sob o título Confissão.]
«Eu, isto tudo está guardado, não está em boas …
este livro, O Livro da Primeira Classe,
que até que me chamaram a atenção, tem as orações, orações de rezar, rezas,
está em mau estado, mas não é porque tenha sido maltratado, é simplesmente
porque é mais velho do que eu; foi nele que eu aprendi a ler aaa… a ler antes
do tempo.»
(Voz.) «No meio
de todas as águas mornas, evoco uma situação que, a princípio aflitiva, veio
ter deslinde muito positivo. Deu-se o caso de eu cair à cama, lá ficando
durante três semanas a canja de galinha. Nesse entretanto, a professora Dona
Lucília havia ministrado aos seus discípulos os primórdios da análise lógica
(sintaxe). Quando regresso aos bancos escolares, vejo a malta a alinhavar e a
saltar frases, e aquilo era coisa para mim misteriosa, e não apenas misteriosa,
também em absoluto o Mistério. E, mais ainda, um labirinto para minha perdição
sem fio a que me agarrar. Não por muito tempo: uma semana depois, já eu o
agarrara por mercê de uma Ariana-anjo-da-guarda e saía ilesa do labirinto e do
mistério. E apaixonei-me — pelo mistério, pelo labirinto, pela sintaxe. Era tão
giro!»
(Gritos
da Minha Dança, págs. 15-16.)
«Fiz assim! Fui para Coimbra. Muito bem; porque é
que eu depois… me… pedi a transferência para Lisboa? Isso também posso contar.»
(J.V.) Ela falou muito da pequenez, fala muito
da pequenez do que era o meio coimbrão.
«Vim para Lisboa, porque me deixei de gostar de
Coimbra. Estava um bocado enfastiada com o espírito provinciano de Coimbra. Era
uma cidade, como digo, muito bonita, mas o espírito que reinava era
provinciano.»
(J.V.) Suponho que vir para Lisboa foi para ela
uma libertação, porque ela em Coimbra já não estava com a mãe, não é!?, já não
estava com a família, estava, estava num colégio, uma espécie de casa de
raparigas… …tipo com freiras ou qualquer
coisa assim parecida. Mas, acho que a vinda para Lisboa é que foi de facto a
Fernanda encontrar-se com o mundo e com uma certa liberdade.
(F.B.) «Eu cheguei a Lisboa num dia de sol.
Parece o primeiro verso de um poema, mas cheguei por acaso a Lisboa num dia de
sol. E ao sair do Rossio, da estação do Rossio, olhei para a luz, olhei para
aquilo e senti-me no paraíso.»
(Urbano.) «Eu lembro-me na Faculdade de Letras,
quer dizer, ela estava ligada assim a um grupo onde havia mais homens que
mulheres e, bom… e as mulheres, quer dizer, tinham uma certa inveja da
Fernanda, também, algumas, não digo todas, não é?»
(F.B.) «Encontrávamo-nos em cafés. Aaaa…, podia
ser na Orquídea, podia ser na Paraíso, podia ser no Chave de Ouro. Muito. Aaaa…
E ali é que se resolviam os grandes problemas da nação.» [Riso breve.]
(U.T.R.) «A Fernanda era sempre a... atraente,
porque tinha muito humor, tinha, às vezes, tinha aquela pequena maledicência,
que não chega a ser acintosa, mas que, as mulheres gostam imenso disso.»
…………………………………………………………………………………….
(Voz de AMCV.) «Ela já
era casada… isso foi… e já tinha até o filho; mas tinha disponibilidade para
conviver connosco.»
(U.T.R.) «Quando nós começámos a assinar
documentos a favor da liberdade de imprensa, para a libertação dos presos
políticos, para a abolição da censura, aaa… a Fernanda Botelho alinhou sempre
connosco. E a maior…., muitas das raparigas, eu, por exemplo, eu lembro-me que
nessa altura da greve, muitas das raparigas iam às aulas.»
(J.V.) «Eu acho que a Fernanda também nunca
teve problema nenhum em frequentar os meios que os homens frequentavam, não é?»
«Em Lisboa encontrei realmente um ambiente muito
diferente. E depois relacionei-me, isto foi o factor principal, com o David
Mourão-Ferreira, que era aluno na mesma, mas que tinha as mesmas veleidades
literárias. Ele também queria ser escritor. Queria ser poeta. Eu queria ser
escritora. E ele queria ser poeta.»
(A.M.C.V.) «É ele que a apresenta ao seu grupo, ao
seu grupo literário; é ele que insiste em que ela apareça como poetisa e depois
como prosadora.»
(J.V.) «Embora a Fernanda diga que toda a vida,
o que gostou de fazer foi, desde miúda que ler e escrever, mas suponho que o
contacto com o David que foi absolutamente determinante para ela perceber que
tinha a vocação de escritor.»
(U.T.R.) «O David foi um pouco o mentor
espiritual da Fernanda Botelho. Era um homem com uma grande cultura, com… muito
inteligente, um grande poeta…, foi uma pessoa encantadora, simpática, desejosa
de ajudar os outros. Foram dois grandes amigos.»
(A.M.C.V.) Creio que as relações entre a Fernanda
Botelho e o David Mourão-Ferreira foram sempre extraordinárias, quase de uma
adoração um pelo outro, pela sua obra…
[Folha de rosto
ou ante-rosto.]
ESTA NOITE
ESTA NOITE
SONHEI COM
BRUEGHEL
Para o David Mourão-Ferreira (x),
grande amigo, grande escritor
(e que grande romancista!),
com o grande afecto e um
grande abraço — e gratidão —
da
Fernanda Botelho
Lx. Nov. 87
(x) extensivo à minha querida
[Não se consegue ver o resto da página.]
(F.B.) «O António Manuel Couto Viana, o David
Mourão-Ferreira e o Luís de Macedo resolveram, à conta deles, aaa… criar umas
folhas de poesia porque todos eles eram poetas e saiu a Távola Redonda.»
(A.M.C.V.) «Ela participou, logo no primeiro
número, portanto, veja a admiração que nós já tínhamos pela sua poesia. Era uma
poesia muito diferente da das poetisas da época.»
(Voz de J.V.) E,
portanto, a Fernanda surge como poeta e tem uma colaboração muito assídua
nessas folhas.»
(Voz feminina lê poesia de F.B.)
DESVIOU-SE
o paralelo um quase nada
E tudo
escureceu:
Era luz
disfarçada em madrugada
A luz que me
envolveu.
A geométrica
forma de meus passos
Procura um
mar redondo.
Levo comigo,
dentro dos meus braços,
Oculto, todo
o mundo.
Sòzinha já
não vou. Apenas fujo
Às negras
emboscadas.
Em cada
esfera desenho o meu refúgio
— as minhas
coordenadas.
[Esta poesia, com
o título AS COORDENADAS LÍRICAS, vem publicada na TÁVOLA REDONDA, fascículo 10, com outras duas de Fernanda Botelho,
ocupando toda a primeira página.]
(A.M.C.V.) «Era singular. E eu sei a reacção que
teve o público, quando a leu. Foi uma surpresa, como tinha sido para mim, como
tinha sido para o David e para os outros nossos colegas.»
(F.B.) «Aaaa…, a Joana Marques de Almeida, que
está… aí, não sei onde, ai, está aqui!, …
… … veio falar sobre a minha
obra, não é? …, em que ela é perita…, sabe mais da minha obra que eu.»
(J.M.A.) «Na História
da Literatura, do Óscar Lopes [imagem da História da Literatura Portuguesa /
António José Saraiva / Óscar Lopes], até havia lá uma parte que tinha um
grande elogio, dizia que a Fernanda Botelho era uma voz única na poesia e… só
que foi uma voz, na poesia, muito efémera, não é?, porque foi só ali naqueles
vinte e oito poemas que constituem As
Coordenadas Líricas.»
(A.M.C.V.) «Uma poesia mais austera, quase
agressiva, quase viril.»
(F.B.) «E este é um poema de amor.
Tem rimas
tal feitio e destino
Que é para
ti, somente.
Se hei-de
escrever camélia, escrevo fósseis.
Quando
vires abutre, pomba entende.
Que o meu
sinistro verbo não te iluda.
Se queres
um bom conselho, que te preste.
Monta,
solene, um cavalo de lousa.
Chama-lhe
Pégaso e alea jacta est.
Existes,
porventura? Eu te consagro, porém,
Este
mistério de sinónimos.
Decifra-o,
se puderes.
Eu nele
embarco, nele os náufragos.
Lê sonhos,
sempre anónimos.
Salvou-os
uma tábua em pleno mar,
Lugar que
foi de todos o mais íntimo.
Vês como é
fácil? Fácil como achar
Um belo e
tenebroso logaritmo.
Não obstante, não era na poesia que eu queria
singrar, Era, realmente, na prosa, na ficção.»
(A.M.C.V.) «Na revista Graal a Fernanda, logo no primeiro número, revela-se como
prosadora, como novelista. Há uma coisa curiosa, porque a revista tinha um
mecenas. Ele chamou-me, logo no segundo, logo no… …, que é que apareceu o primeiro número e
disse-me: — Sr. Director, se o senhor continua a publicar coisas como essas da
Fernanda Botelho…, bom, isto acaba-se a revista, já. Porque aquilo é uma
imprudência, é um disparate. — Imagine-se! Ele já faleceu, mas ele nessa altura
proibiu-me de publicar mais novelas da Fernanda Botelho.»
(J.V.) «E ela já congeminaria, por essa altura,
o primeiro romance, O Ângulo Raso…»
(F.B.) «E foi assim que a história começou, a
história da minha vida, foi assim que a história começou, relativamente ao
romance.»
(Voz.)
— Ah! O
Ângulo Raso!? Que nome tão teorizante! — E, astucioso, pediu: — Monte um
teorema e demonstre-o.
Samuel
suspirou: — Os teoremas nunca foram o meu forte. Mas vou tentar… grosso modo, está claro. — Numa outra folha
da agenda desenhou uma semicircunferência. Num dos extremos do diâmetro, marcou
zero, no outro, 180 graus. No pólo, 90 graus.
(U.T.R.) «O Ângulo Raso é que foi a grande
revelação duma escritora; e creio que n’O
Ângulo Raso estão contidas todas as direcções, as grandes direcções da
escrita da Fernanda Botelho, todo o imaginário, o universo dela…»
(Voz.) «É uma obra em que, para já, na maior
parte dos casos, as personagens principais são mulheres.»
(J.M.A.) «E a Fernanda Botelho trata-as realmente
de outra forma, portanto, de uma forma diferente em relação ao que vemos nos
romances anteriores, e diferente também em relação ao que vemos nos romances
daquela época…»
(Graça Abreu.) «Essas
mulheres são mulheres com dificuldade em encontrar o seu lugar no mundo.»
(J.M.A.) «Todas essas personagens femininas
inovam, por, pelo protagonismo que têm, pela maneira como são apresentadas ao
leitor, não temos aquela descrição física…»
(G.A.) «São mulheres isoladas e são mulheres
que rejeitam qualquer arregimentação, mesmo que seja uma arregimentação contra
o instituído.»
(U.T.R.) «Sem tomar posição frontal, na rua ou
nas revistas, por uma emancipação da mulher, a Fernanda Botelho deve ter sido
uma das escritoras portuguesas que, por um lado, melhor revelaram o que era a
condição feminina nos anos 50, ela publica O
Ângulo Raso, salvo erro em 1957, através da interioridade das mulheres, dos
seus comportamentos, das suas conversas, tudo isso está n’O Ângulo Raso, está n’A Gata
e a Fábula, está em Xerazade e os
Outros…»
(G.A.) «Logo que não encontram um partido, uma
ideologia, uma religião que funcione como um ideal de grupo, ou que lhes
proporcione um ideal de grupo. São de facto diferentes e reivindicam dessa
mesma diferença.»
(U.T.R.) «A leitura que ela fez do filme de Simone
de Beauvoir frutificou muito e talvez seja ela, de todas as escritoras
portuguesas, que denunciaram a humilhação da mulher e a sua aspiração à
liberdade em todos os planos, no trabalho, na vida da relação, na vida erótica,
até como mãe, … … está em toda a obra de Fernanda Botelho, duma maneira que é
talvez, de todas, a mais importante.»
(F. Branco.) «Isto é
único ou… se não é único é raro, entre os autores que conheço. Obviamente que
propor figuras de mulher, propor heroínas femininas, nos anos 50, em plena
ditadura, com o movimento das mulheres, com as mulheres a fazerem os
agradecimentos ao ditador…
Numa época de definição da mulher como a fada do
lar, como a esposa, a mãe abençoada, essas tretas todas, não é?! E ela ser
capaz de agarrar e mostrar mulheres que procuram fora do casamento, que
desfazem o casamento, que procuram inclusivamente mais do que uma vez, ou seja,
não só são situações de adultério e o adultério masculino também é corrente,
embora as pessoas não olhem tanto para ele, estou a dizer: é corrente no
romance, cá fora também!, mulheres que
não só cometem adultério, para já: que não cometem adultério pontualmente, por
acaso, porque…, por uma desorbitação momentânea, mas conscientemente e
repetidamente. E não só têm um amante fora do casamento, mas podem ter mais do
que um amante fora do casamento, há várias heroínas que em momentos
diferenciados ou na mesma época têm mais do que um amante fora do casamento,
não é?! Eu acho que é preciso muita coragem, realmente…»
(U.T.R.) «Porque são vários tipos de mulher que
ela analisa, a mulher submissa, a mulher que só tem como horizonte da vida o
casamento, porque é economicamente dependente, não tem uma profissão e depois
se sujeita a todas as imposições do marido, a mulher que salta o fosso e que se
liberta, ou pelo adultério ou pela ruptura com o casamento e pela experiência
duma… duma vida de mulher só. É muito interessante, de livro para livro, ela
inclusivamente põe essas mulheres a contracenarem umas com as outras e a
dialogarem umas com as outras, o que é extremamente interessante.»
Voz lê e vê-se a página que é lida.
— Não
sejas parvinha, Lili!
— Queres
que embandeire em arco e comece a cantar o hino? De qualquer forma, para quê,
tantos segredinhos? — exclama Lili. — quando a tua amiga chegou, bem podias
ter-lhe claramente dito aqui está a Lili, que andou metida com o teu marido há
anos atrás, quando todos nós éramos mais novos. A tua amiga não seria
certamente tão tacanha que se melindrasse por tão pouco, coisa tão antiga! Ou a
tua amiga é dessas que pensam que os maridos lhes caíram nos braços, castos e
com medo das mulheres, por não saberem como aquilo funciona por dentro e terem
medo de escangalhar a máquina? Não é, pois não? (Esta Noite Sonhei com Brueghel, p. 190,
ed. Contexto, 1988.)
(G.A.) «Em alguns livros da Fernanda Botelho,
há, de facto, personagens que podem ser consideradas arrojadas, nomeadamente
para a época em que foram escritas, mas, mesmo hoje em dia se podem assim
considerar. Os ménage à trois, que
aparecem nalgumas delas, em qualquer caso o adultério é recorrente em vários
dos livros.»
(Voz de J.V.) «O
terceiro livro da Fernanda, que é A Gata
e a Fábula, é um livro muito giro, muito…, muito interessante. Tem uma
personagem absolutamente fora das regras e das normas que é a chamada Gata e
essa personagem, que anda sempre suja, que anda, que é amiga dos cães e dos
gatos e protege uma rapariguinha toda porca em casa e que faz e que se põe nua
à frente dos… e é uma rapariguinha com dezasseis, dezassete anos, põe-se nua à
frente dos primos e que se vai meter na cama dum, também, dum amigo, também
muito… …, rebenta completamente com
as, com o meio e é…, com um meio conservador onde é, isto passa-se no Minho.»
(U.T.R.) «Estou-me a lembrar, uma mulher, no
romance dela Lourenço É Nome de Jogral,
que a certa altura se apaixona por um homem que é justamente o Lourenço, que é
um sedutor que tem uma espécie, que tem, que é muito, que é quase feminino de
aparência, o que lhe dá uma certa cumplicidade com as mulheres e, então, ele
tem ao mesmo tempo três casos, um, com essa personagem, que é praticamente a
figura central do romance, um, com uma outra, talvez seja mulher dum amigo, e
uma outra, com uma catraia de dezoito anos ou coisa assim. É, e então, ela, e é
uma mulher, que se diz uma mulher livre; ela, para não o perder, aceita,
inclusivamente, que ele a leve para a cama com outra ou… e ela sente-se muito,
no fundo, sente um grande desconforto nessa situação e faz isso, para não
perder o homem de quem gosta.»
(F.B.) «A título de curiosidade, Lourenço é,
das minhas personagens, aquela com quem eu mais me identifico. Parecendo muito
estranho, acho que os problemas que ele apresenta no livro, que eles…, que ele
tem, que há, são muito meus. Eu não me identifico muito com a maior parte das
minhas personagens, elas são elas e eu sou eu, não é?!, mas… à personagem Lourenço,
acho que dei tudo, … que me transformei nele ou ele transformou-se em mim. Eu
sinto, sinto, sinto isso.»
(U.T.R.) «Entre os grandes amigos da Fernanda,
por exemplo, eu estou-me a lembrar de dois homens, que tinham essa, esse poder
de sedução e, ao mesmo tempo, uma delicadeza quase feminina, que eram o David
Mourão-Ferreira e o António Ramos. Dois grandes amigos da Fernanda, que
coincidem com esse, … com essa figura masculina, que é uma figura donjuanesca.»
(J.M.A.) «O romance, que eu acho que é dos
melhores, que é Esta Noite Sonhei com
Brueghel, é a própria personagem feminina, não é?!, a tentar descobrir o
que é que correu mal no casamento, portanto, aquilo é uma busca, ela, ao mesmo
tempo, quer dizer, tenta compreender o casamento e tenta compreender-se a si
própria, e tenta compreender o marido, tudo muito bem, muito bem articulado,
muito bem narrado e entretanto sabemos que a personagem, que essa Luísa tem um
amante, mas isso não, quer dizer, não parece ter assim muita importância, não
é?! E parece-me que o leitor não fica contra ela, por isso, o leitor fica do
lado dela e no fim vimos a descobrir que o problema tinha sido ela ter engravidado,
quando o marido não podia ter filhos, portanto, ela própria não sabia qual é
que tinha sido o problema.»
(J.V.) «Neste último livro, dos Gritos da Minha Dança…, a Fernanda, aí,
acho que perdeu completamente …, quer dizer, não há qualquer sentido de
verosimilhança nas histórias que ela conta, mas, portanto, são um bocado
anedotas, digamos assim, anedotas, histórias exemplares, muito curtas; como,
também há uma história de duas gémeas que também são trocadas ou se trocam
para, para se casarem lá com um senhor rico ou não sei quê…»
(F.B.) « Acha isso irreverente? Não sei,
claro…, acho que é uma história, apenas, com uma determinada dinâmica, mais
nada. Irreverente, não! Elas até são bem comportadinhas, as duas gémeas.»
(J.V.) «A Fernanda, de facto, é uma pessoa, é
uma mulher sem preconceitos e que fala das coisas com a maior das
naturalidades.
(Voz.)
Roberto e
Norberto deram as mãos ainda andavam na Pré-Escolaridade. Descobriram em
simultâneo e em unanimidade os encantos da Matemática e as afrontas da História.
Foi-lhes revelado ao mesmo tempo os inefáveis mistérios do sexo. Um com o outro
e vice-versa. Eram felizes, jovens, bonitos. E ambos economistas. O Boss não gostou de os ver de mãos dadas,
vinham eles dos lavabos, para onde ele, o Boss,
se dirigia, já a desabotoar a braguilha. Perante as aleivosias decorrentes
deste confronto, nos labirínticos corredores entre os lavabos e os gabinetes,
Roberto e Norberto tiveram de assumir as medidas drásticas que se impunham,
seja, arranjar esposa, uma por cabeça. E, para tanto, partiram uma noite, à aventura,
dispostos a descer às alfurjas. Acabaram numa discoteca heterossexual. Roberto
vê o barman encher dois copos altos
com laranjada saída de um jarro. Quer que a ajude a levar?, perguntou à
mocinha. Não é nada pesado, disse ela, obrigada. Mas se quiser vir, eu e a
minha amiga estamos naquela mesa lá ao fundo. Óptimo, sai-se Roberto, vou
buscar o meu amigo que está ali junto da charanga, assim fazemos uma mesa de
quatro. Casam no mesmo dia e na mesma igreja. Passam a lua-de-mel em conjunto,
uma parte nas Berlengas, o restante em Madrid. Quartos contíguos. Norberto e
Roberto comentam os tálamos: ambas as noivas eram virgens, mas
surpreendentemente dotadas de apreciáveis aptidões periciais. Óptimo. Hoje
vamos às compras, anunciam as jovens esposas. Óptimo. Os esposos entreolham-se,
sairão para um breve passeio e voltarão depressa. Quer dizer, enquanto as
esposas se consagravam à pechincha das baboseiras, eles dedicar-se-iam a outros
jogos de corpo-a-corpo, a nostalgia era avassaladora. Troca por troca. Óptimo.
Voltaram, sorrateiramente ao hotel. Quando entraram num dos quartos,
confrontam-se com as duas jovens esposas, Branca e Clara, nuas, enrodilhadas
uma na outra, cabeça para um lado, pernas para o outro, em confusão e
alternativa. Elas erguem-se, assarapantadas, enroladas nos lençóis arrancados á
cama. Enfrentam os maridos com temor, mas também com desafio. Acabaram por
confessar que andavam naquilo desde o nono ano do Secundário. Norberto e Roberto
desatam a rir, que maravilha, que oiro sobre azul! Viver em partie-carrée, com coreografias pas-de-quatre — tão ortodoxo! O amor
sorriu-lhes em quadruplicado e a cada uma das senhoras foi dada a benesse de um
filho e de uma filha. Viveram felizes para sempre. [Gritos da Minha Dança, Pas-de-quatre / Conto breve, pp. 77-79,
com supressão de alguns períodos.]
(F. Branco.) «É muito
engraçado, porque, quando eu estava a fazer esse trabalho, um amigo meu,
bastante mais jovem do que eu, dizia: “Ah, vais trabalhar a Fernanda Botelho,
ah, é assim um bocadinho de pornografia soft.”
É engraçado, porque, tantos anos depois, um indivíduo que neste momento está
nos quarenta e tal anos, ainda acha e eu pergunto: e o sexo na obra de Fernanda
Botelho tem uma intensidade maior que na obra de muitos outros autores
masculinos? Não tem. O problema é que ela não é um autor masculino. E,
portanto, as pessoas perguntam: como é que…, agora uma mulher põe-se a falar
destas coisas?»
(J.V.) «Eu acho que os livros da Fernanda eram
de uma pessoa lúcida e que relatava com verdade aquilo que, a que assistia, não
é!? E, portanto, como se sabe, sempre existiu desde tempos imemoriais a
homossexualidade, tanto feminina, como masculina, mas é muito raro no livro de
uma outra portuguesa, e eu não me lembro de outro caso, aparecer como é no
segundo livro da Fernanda, no Calendário
Privado, aparecer de facto a revelação da homossexualidade de um amigo,
também, duma das, da personagem feminina principal.»
(F.B.) «Eu crio as personagens e depois as
personagens, depois, eu gosto ou não gosto. E as personagens impõem-se-me.
Algumas delas, de que eu tencionava…
…, às quais eu tencionava dar um caminho dentro do romance, dentro da
história, numa determinada altura, desviam-se. E eu deixo-as; elas é que se
impõem. Elas é que me indicam o caminho que querem seguir. E eu aceito. Isto
parece um bocado complicado.»
(J.M.A.) «E as personagens dela são realmente
personagens que se impõem e que ficam, não é!?, não são daquelas personagens
que morrem quando se fecha o livro.»
(F.B.) «Há uma personagem masculina de que eu
queria fazer uma espécie de malandro, em que o… ele era um conquistador e eu
queria, como não gosto muito de conquistadores…, também não tenho que gostar,
não é!? Cada um é como é. E eu queria fazer dele uma personagem um bocado
caricata sob esse aspecto, aaaa… e a partir de uma certa altura, deixei de o
governar… e não consegui que ele se me tornasse antipático, nem a mim, nem aos
leitores e ele por lá anda muito feliz da vida, a personagem, porque eu não
consegui desfigurá-lo.
(U.T.R.) «Todos os escritores têm muito de
autobiográfico, o que é é que o autobiográfico, através do processo narrativo
transforma-se, quer dizer, nós pensamos, nós vamos reproduzir uma vivência
nossa e transformamo-la. Pensámos numa determinada personagem, que viveu
connosco ou com que nós observámos de muito perto e ao escrever transformámo-la
e criámos uma outra figura. Quer dizer: a literatura acaba por ser uma forma de
transformação do vivido e do observado, mas que os livros da Fernanda estão
carregados disso, estão.»
(F.B.) «Nos meus livros há muita cosa que é…,
muita coisa que é…muita coisa!..., se não são tantos…, mas algumas situações
que são reais ou que eu conheço e transformo um bocadinho, evidentemente, mas a
maior parte delas são deduzíveis, quer dizer: eu, a partir de comportamentos
que eu conheço deduzo certas circunstâncias e… pode acreditar que muitas vezes
a realidade ultrapassa a fantasia.»
(J.V.) «Conviveu muito com a Natália, com a
Natália Correria e com as tertúlias da Natália…
[No ecrã, quadro com Natália Correia,
Fernanda Botelho e Maria João Pires, retratadas por Nikias Skapinakis, Colecção
Fundação Calouste Gulbenkian.]
(F.B.) «Posso mesmo dizer que éramos amigas. E a
casa dela estava sempre aberta para receber os amigos. Um dia, foi lá até um
escritor norte-americano, o Henry Miller, aaaa… Quer dizer: calhou ser
convidado a ir a uma dessas noites, soirées,
em casa da Natália…, e ele estava um bocado embasbacado e aaa… perguntaram-lhe,
ele explicou: “Eu julgo-me transportado para o século XVIII.”»
(Urbano) «Lembro-me
muito bem disso, quer dizer, porque então em casa da Natália falava-se muito, falava-se muito, falava-se de
tudo. E o Henry Miller, que estava a ouvir aquilo tudo, depois, acho que
chegou-se ao pé do David e disse-lhe: “Ouça lá, mas aqui fala-se tanto de sexo
e quando é que se passa à prática?” [Para alguém, atrás da câmara:] Já conhecia
isto ou não? “Quando é que se passa à prática?” E não se passou à prática.» [Mais do que rir, vemos de Urbano o fácies
iluminado de prazer contido, riso dificilmente represado.]
(J.V.) «Foi durante muitos anos, porque ela divorciou-se relativamente poucos
anos depois de se ter casado, portanto, foi durante muitos anos uma mulher
sozinha e com… e livre.»
(U.T.R.) «Teve um grande amor(es) ………, quer dizer, e te(ve)…, separou-se do
marido, como sabe. E teve vários casos na vida dela.»
(J.V.) «Eu tenho impressão, porque ela casou-se cedo demais, não é?, quer
dizer, ela deve ter casado com, por volta dos vinte anos e o marido também era
muito novo e, depois a vida que teve em Lisboa, fê-la descobrir outras pessoas
e o casamento, suponho que se tornou uma amarra para ela e não durou muitos
anos.
(F.B.) «Ai, o casamento é uma coisa respeitabilíssima… …, para toda a gente, menos para mim.» [Abre os braços e sai um som, como
a raiz de duas ou três palavras que não chegam a formar-se.]
(Voz de A.M.C.V.) «Eu também tive a sensação de um certo desencanto, que
haveria naquela família, não é!?, de maneira que… ela era muito independente.»
(Voz de U.T.R.) «É uma escolha, é uma mulher que aceita ficar sozinha.
Ela trabalhava, ela foi durante muitos anos, trabalhou no turismo belga.»
(F.B.) «Mas, continuar a escrever foi realmente e prosseguir na escrita, eu
achava que era a minha missão, mas evidentemente que não podia viver disso, portanto,
tive de realmente de correr… de arranjar um trabalho, outro trabalho com que me
valesse na vida para sobreviver. E, dentro da sobrevivência, eu arranjava um
tempo, mesmo à noite, já antes de adormecer, para escrever livros um bocadinho.
(J.V.) «Antes do 25 de Abril, a ideia que eu tenho é que a Fernanda era
juntamente com a Maria Judite de Carvalho era considerada uma das escritoras
mais importantes, a Natália Correia, também, da literatura portuguesa. E a
Fernanda estava digamos também muito na vanguarda da própria forma, da Fernanda
escrever… e depois há um interregno de facto muito grande, com estes anos que
se seguem ao 25 de Abril.
(U.T.R.) —O Lourenço É Nome de Jogral,
salvo erro, é de 71 e, a partir daí, há um salto até 87, enorme, portanto, há
um período que eu nunca compreendi muito bem em que ela se cala.»
(F.B.) «Tinha cinquenta folhas A4 escritas à mão de um livro a que eu iria
chamar Esta Noite Sonhei com Brueghel.
Aconteceu que entretanto surge o 25 de Abril. Claro que há um grande
entusiasmo, mas com esse grande entusiasmo há uma quebra na produção literária.
[Durante dez segundos, imagem do rosto de Fernanda
Botelho, actual; sobre ela, a legenda: Fernanda Botelho deixou de publicar
durante 16 anos.]
[F.B.] Eu achei que, e isto é sincerissimamente…, o 25 de Abril surge, o
entusiamo é grande e eu penso: não vale a pena eu escrever, porque isto é muito
melhor do que a escrita. Escrever para quê? Eu não posso escrever nada mais
interessante do que isto. Eu acho que não vale a pena, acho que não vale a pena.
E, então, parei de escrever. Até que um dia me surgiu uma proposta para um
livro novo, portanto, agarrei nas cinquenta páginas que eu tinha deixado para
trás de Esta Noite Sonhei com Brueghel
e de que eu já não me lembrava como era, achei que aquilo estava tudo errado,
modifiquei aquilo tudo e escrevi um livro novo…, chamado Esta Noite Sonhei com Brueghel, que iniciou uma outra fase.»
(J.V.) «A partir de Brueghel ela também publicou com regularidade. Depois,
publicou a Festa em Casa de Flores,
publicou Dramaticamente Vestida de Negro,
publicou As Contadoras de Histórias.
(F.B.) «É importante, porque é provável que seja o último livro que eu
publico. Talvez não seja, mas a hipótese não pode ser posta de lado.
(J.V.) «Portanto, ela retomou o ritmo, quer dizer, é quase uma separação de
águas, o antes e o depois do 25 de Abril, em número de romances. O(s) Gritos da Minha Dança não sei se é o
livro preferido da Fernanda. A Fernanda diz sempre que é o último, mas este
livro é de facto um livro aonde ela põe muitas das, quer dizer, o talento
imenso que ela tem de efabular está ali todo à mostra, depois uma ironia também
muito corrosiva não se esconde e depois a Fernanda tentou em vários livros
conjugar géneros literários diferentes como é, por exemplo, o Brueghel tem várias poesias, o Lourenço É Nome de Jogral, também, tem
capítulos que são poesias e, portanto, aqui, descaradamente, junta peças de
teatro, histórias tradicionais e estes, estes contos burlescos:
– Tenho a
certeza de que o almoço se vai atrasar. A malvada põe-se à conversa com o
carteiro e é cá uma conversa! Ela nem sabe que ele está amigado com a Rosa do
Fagundes e olha que o Fagundes não é para graças. O pai dele baixava as calças,
fazia cocó na estrada e depois mostrava o rabo a quem passasse por lá. O rabo
dele era um pandeiro. Quem quisesse, servia-se. A mulher dele, quando lhe
cheirava, fechava-lhe a porta e deixava-o ao frio, debaixo do alpendre. Com um
penico. Não se sabe bem para quê, o penico. Mas ela não era lá muito certa,
caiu do telhado em pequena, rachou a cabeça e ficou estrábica. O Fagundes até
berrava que não era dele, não podia, tão feia, tão fedorenta, de olhos tortos…
– Não era
assim tão feia, só muito magra. E até se parecia com o pai.
– Então o
Agapito que já então andava no contrabando tentou acalmá-lo, que sim, que sim,
então chegaram a vias de facto. O Agapito agarrou num sarrafo, foi-se a ele e
furou-lhe um olho. Agora, já é tua filha, meu sacana, também tens os olhos tortos.
E vai o outro, agarra num canivete e furou-lhe as tripas.
– Foram só
uns golpes, nada de tão grave.
– Isso foi o
que disseram. Aquilo foi tudo combinado com o médico, para se safarem todos. O
médico não queria sarilhos, o homem morreu.
– Foi um
ataque, sofria do coração.
– O médico
até fechou os olhos, quando aquele safado…, lembras-te dele?, matou o pai, só
para lhe ficar com uma horta de couve galega com um limoeiro no meio.
– É um belo
pomar e uma bela horta.
– Qual quê?
O que lhe vale é o que a irmã lhe manda, do que ganha no bordel em França.
– Ela
trabalha num hotel.
– O pai
deles é que era cá uma besta. Morreu de um arroto tinha comido e bebido como um
animal. Arrotou tão forte que lhe ficou a alma pelos gargomilos.
– Foi de uma
peritonite.
– Isso foi o
que o médico disse. Quanta gente terá morrido por causa de ele não ter chegado
a tempo! E a mulher dele…
– A mulher
dele era a nossa mãe, e ele, o nosso pai.
– Olha agora
a bastarda que és a levantar a garimpa!
– Serei
assim tanto!?
[Gritos da Minha Dança, Bailarico
Saloio, pp. 53-59, com supressões e sem a nota inicial.]
(J.V.) «A obra da Fernanda Botelho é maioritariamente constituída por
romances, que são, por um lado, de um ponto de vista formal, muito bem pensados
e urdidos, trazendo cada um a sua novidade…»
[Voz de G.A.] «Enfim, a Fernanda Botelho insere poemas, insere diário, insere guiões
de cinema; na sua obra insere o happy end.»
(J.V.) «Muitos dos truques do policial ela utiliza-os em romances que não são
policiais, não é!?, portanto os livros têm sempre um desfecho mais ou menos
inesperado, há sempre uma revelação no fio, ela esconde do leitor dados, que só
são revelados, a partir de certa altura e doseadamente.
(F. Branco.) «A Fernanda Botelho começou por ser apenas um nome e começou com Xerazade e os Outros. Foi o primeiro
romance que eu li dela. E foi assim um deslumbramento. Eu nunca tinha lido nada
naquele género e fiquei absolutamente deslumbrada, aquela, aquele desdobramento
de vozes, aquela, aquela solicitação constante, não é?!, um leitor, que tem que
estar muito atento a ver o que tudo se passa.»
(J.M. A.) «Quando ela
surgiu, quando ela começou a escrever, eu acho que foi esse um dos motivos que
originou aquele, o sucesso que foram os seus primeiros romances, era a complexidade
da escrita dela, as inovações, aquela escrita tão trabalhada…»
[Rodando sobre linhas brancas, curvas, formando meridianos e paralelos,
o texto a seguir transcrito sobre as páginas de caderno manuscrito de Fernanda
Botelho; vão sendo folheadas…; frases impressas em rotação à volta deste globo,
umas num sentido, outras noutro. Ao mesmo tempo, a autora fala dos livros que
não torna a ler.]
[…] escrevem a
voz e eu vozeio a réplica. [G.M:D:, p. 24.] Seja como for, as vozes deles, esses amados
ruídos continuarão a ser para mim uma noite fechada em trevas sem jamais se fazer
dia […]. [G.M.D., p. 24.] E sem o Wagner, o meu ribombante Wagner que
me enche o coração de cristalizado empolgamento? [G.M.D.,
p. 23.] Vou pôr ao
pescoço, enfiado num fio de prata, um livrinho de notas com lapiseira acoplada.
Eles escrevem a voz e eu vozeio a réplica. [G.M.D.,
p. 23.]
(F.B.) «Eu não volto a ler os meus livros…, por
medo, por medo de ter vergonha, por medo… de nunca… … se
eu…, de pensar assim: ai, se fosse hoje, eu não escrevia assim, eu escrevi este
disparate. Escreveria muito melhor; não era assim que eu daria andamento ao
romance. Eu tenho medo disso; já está feito, está feito. Portanto, eu não quero
saber. O que está feito, está feito, fica lá e eu fico na ignorância de se está
bem ou mal feito.»
(J.M.A.) «A obra dela
não é realmente muito extensa. E isso, talvez, esse talvez seja um dos motivos
porque ela não é hoje em dia tão conhecida quanto poderia ser ou até diria que
deveria…»
(F. Branco.) «Eu não sei,
se tem realmente o peso que poderia ter… e que seria se calhar vantajoso para a
literatura portuguesa se ela conseguisse se ela tivesse... As Contadoras de Histórias, por exemplo, não é?, é fresquíssimo, é
um livro fresquíssimo, é um livro, realmente,
que baralha de novo todos os dados do tempo, da narração, dos narradores, duma
forma agora de novo diferente. E de novo com uma genica, com uma frescura, com
uma apetência pela escrita, que eu acho que se calhar é pena se não tem o
impacto que poderia ter.»
(F.B.) «Eu deveria,
precisava realmente de voltar a ler os meus livros para ter uma ideia, para ver
e até sobretudo, para ver se gosto da autora.
[Na imagem, com Jorge Sampaio e o presidente da APE, a legenda: 1998 —
Fernanda Botelho recebe Grande Prémio da Associação Portuguesa de Escritores.]
(Voz masculina, de locutor.) «A consagração de Fernanda Botelho chegou com a atribuição dos mais
importantes prémios nacionais. Publicou ao todo quinze volumes, mas nem só de
escrita se fazem as linhas de Fernanda Botelho. Traduziu alguns textos
importantes, como o Inferno de Dante;
e ainda hoje faz crítica literária, para a Fundação Calouste Gulbenkian.
Passado mais de meio século da sua estreia literária, Fernanda Botelho continua
a ser uma livre pensadora, sem amarras a condicionalismos ou imposições, com a
mesma dignidade com que sempre encarou a vida e a literatura, a escritora
portuguesa mais vanguardista dos anos 50 é hoje uma defensora da eutanásia, mas
não esconde a importância crescente da família nas suas coordenadas. Tal como a
obra, também a sua vida se divide em dois universos.»
(J.M.A.) «Dividindo a
obra dela em dois, em dois universos diferentes, temos o universo que alguns críticos
dizem não existir, não é?, dos sentimentos, do amor, da esperança, e temos o
outro, o da diferença, o da angústia e da geometria, em que o universo, onde
não há lugar para os sentimentos, porque tudo é geometricamente perfeito.»
(Urbano.) «Ela escreve
um pouco a compasso e esquadro, não é!?, mas se alguma coisa vem sobressaltar
essa escrita geométrica é sobretudo a ironia mais do que os impulsos líricos.»
(G.A.) «A geometria
é aquilo de que mais se em falado, se calhar, na crítica literária, a propósito
das obras de Fernanda Botelho. E eu diria que a geometria está presente na
arquitectura rigorosa dos romances, mas está presente está presente
explicitamente e não só a geometria, a matemática.»
(F. Branco.) «Os manjares
são muito geométricos, muito bem, muito bem desenhados, a frase muito bem
desenhada, exactamente a poesia dela também é. E eu não considero uma perda,
considero um ganho, porque o que se consegue dizer de afectivo por uma escrita,
rigorosa, por uma escrita aparentemente nua, é levíssimo.»
(F.B.) «Portanto, a acção vai-se dilatando e se partiu de uma
recta, de zero graus, vai subindo até ao máximo, porque todos os livros têm mais ou menos um máximo em
que a acção está exacerbada, digamos assim, que são os noventa graus. E a partir desses noventa graus as coisas
começam a ser solucionadas e atingem então o outro lado, ao mesmo nível do
zero, mas já são cento e oitenta graus.»
[Acompanhando a menção de «zero», «noventa»,
«cento e oitenta» vai aparecendo, à vez, no ecrã, [0º], [90], [180º].]
(J.M.A.) «Uma
imagem que sobressai da obra de Fernanda Botelho, na minha opinião, é a imagem
dum círculo, porque temos o primeiro romance, O Ângulo Raso, que forma um círculo quase perfeito, eu digo sempre
quase perfeito, porque pode haver outras interpretações, porque uma vez que
começa e termina da mesma maneira, com frases quase idênticas, com ligeiras
diferenças, e com uma personagem que diz vive uma situação também muito idêntica.
E depois, o próprio conjunto da obra volta a traçar essa circunferência, mais
uma vez, quase perfeita, uma vez que o ângulo raso do primeiro romance surge de
novo ou é invocado no último texto do último livro da autora, os Gritos da Minha Dança.»
(Voz.)
Ai balancé,
balancé, como eu ia alto no meu balancé! Como eu voava, voava…! Tinha cinco
anos e acabara de descobrir (por ouvir dizer) que era estúpida ou, pelo menos,
pouco inteligente. Mas no balancé ninguém me batia, eu subia mais alto, mais
alto, mais alto…
Um ângulo raso
desenhado pelas cordas!
Cento e oitenta graus de metafísica!
E até mais ler. [G.M.D., Dança de São Vito, p. 134.]
(F.B.)
O interlúdio que
me resta, a mediania ainda vesperal, o espaço ainda matinal, quero aproveitar tudo
ao máximo, no claro-escuro, entre noite-e-dia, no confuso esbatido de cores e de
seus contrastes — as vozes dos meus netos, esse quase-tudo que vou perder! É
evidente que posso um dia ligar para eles e lhes dizer ao telefone: morri. Mas
não lhes ouvirei as lágrimas.
[G:M:D:, Dança quase macabra, p.24.]
[G:M:D:, Dança quase macabra, p.24.]
[Acaba a leitura e olha-nos directamente nos
olhos.]
[Imagem: um ramo de árvore atravessa o ecrã, quase
deitado, sobre a relva, em fundo verde de árvores. Volta a criança no balancé;
o rosto de Fernanda enche agora o ecrã, olha para o alto; depois roda
lentamente para a esquerda, dando-nos o perfil do lado direito. Na face, em
letras brancas:
Fernanda Botelho
Escritora]
(FB)
«Olha, agora estou a recordar (?), a …?…?….do céu, está
lindo, já viu?»
***
2: Director de
Programas Anotação
Marta Marques
Manuel Falcão
Cândida Cancelinha
Sara
Pereira
2: Subdirector de Conteúdos Paula
Gonzalez
Carlos Vargas
Assistente de Fotografia
2: Subdirector de
Programação Miguel Rodrigues
Bruno Santos
Assistentes de Imagem
2: Director de
Produção Bruno Pesqueira
Alice Malheiro João
Pedro Protásio
Vasco Silva
2: Produção Delegada
Olga Toscano
Assistente de Som
João Miguel Marques
Fontes Documentais
Arquivos e
Documentação RTP
Pós-produção Áudio
Samuel
Rebelo
Documentalista
Pedro Duarte
Animação 3D
Ricardo
Pires Guerra
Direcção Geral
Panavideo
Telma Teixeira da
Silva
Ilustrações
Miguel Lopes
Consultoria /
Entrevista a Fernanda Botelho
Joana Morais Varela Colorista
Pedro
Clérigo
Pré-Guião
Jorge Nunes Imagem / Direcção de Fotografia
Jorge Afonso
Actriz
Cecília Guimarães
Pós-Produção HD
Miguel Lopes
Voz-off
Sofia Morais
Jornalista / Guião
Paulo Rocha Anabela Almeida
Figuração Realização
Natacha Viana
António José de Almeida
Bernardo Carqueijo
Catarina Carqueijo
Agradecimentos
João Almeida Revista Colóquio/Letras – Fundação C.
Gulbenkian
Telma Almeida Gabinete de Estudos Olisiponenses
Rita Gaspar
Editorial Presença
Luís Relógio
Marco Mercier
Produção
Rita Gaspar
Maria de Jesus
Carvalho
Maria José Dias
Gravado em
HDCAM
SONY
Panavideo
Uma parceria
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2 :
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Instituto
Português do
Livro e das
Bibliotecas
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M/C
Ministério da Cultura
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Produção
Para
2 : 005
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2 :
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Belíssimo trabalho teu, caro amigo. Pena não ter tempo para seguir com mais atenção e assiduidade o que vais deixando aqui.
ResponderEliminarAbraço
Obrigado, caríssimo. Queria fazer outra transcrição para o Aquilino, mas começo a ter medo de estragar a televisão com tanto pára, arranca; e «tira» muito tempo. Tira e não tira, porque gosto de fazer enquanto faço. O que me tem impressionado um pouco é a voz do Aquilino. Ainda hoje a voltei a ouvir na Antena 2, momentos da conversa com Igregas Caeiro, em 1957, na Emissora Nacional. Hoje, do quase nada que ouvi enquanto ia no carro para Torres, falaram da bomba atómica, da possibilidade de destruição da Terra e do homem com ela. O Aquilino mostrou-se, apesar de tudo, optimista.
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