Manuel Clemente, Patriarca de Lisboa
O que diz e o que dizem dele -- no Público
PERFIL
D. Manuel Clemente
O
intelectual estilo
“português
suave”
Um
homem “muito feliz”, preocupado em criar consensos (demasiado, até). Do novo patriarca
de Lisboa diz-se que é culto, bondoso, sagaz. Que não é homem para se pôr a
partir a loiça. O que pensa D. Manuel Clemente (e o que pensam dele)
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Natália Faria
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A
maior qualidade que apontam ao novo patriarca de Lisboa, D. Manuel Clemente, é,
para alguns, também o seu pior defeito: homem de consensos, preocupado em criar
pontes, mesmo quando seria preferível que as destruísse. “Não é homem para partir
a loiça”, caracteriza o teólogo Anselmo Borges. “É manso, tranquilo. Há quem
lhe aponte algumas dificuldades em tomar decisões, assim como se fosse uma
espécie de António Guterres da Igreja”, ilustra o bispo das Forças Armadas, D.
Januário Torgal Ferreira.
Quem
o conhece para lá da sotaina, diz que D. Manuel Clemente é “feliz”, “moderado”,
“recatado”, “sensível”. Que, “tendo nascido em família rica, soube fazer-se
pobre”. Ainda sobre o homem que, a partir de 7 de Julho vai sentar-se na
cadeira de patriarca de Lisboa — e, a partir daí, provavelmente também na
presidência da Conferência Episcopal Portuguesa, órgão máximo da Igreja
Católica em Portugal — diz-se que é “culto”, “de espírito aberto”, de
convicções vincadas pelo Concílio Vaticano II.
“Tem
a paixão da ‘conversa’, uma vivacidade invulgar de pensamento, um lastro
aturado de investigação e leituras, mas também a leveza divertida de humorista
que desenha, com dois ou três episódios anedóticos, o traço mais fundo de um
rosto ou o alarde de toda a época”, caracteriza José Tolentino Mendonça, no
prefácio do livro Diálogo em Tempos de Escombros (edição Pedra da Luz, Sintra,
2011), em que D. Manuel discorre sobre Portugal, a Europa e a Igreja.
A
urgência de discutir o papel do religioso, numa sociedade de prática católica
cada vez mais rarefeita, vir-lhe-á do tempo em que era estudante de História,
na Faculdade de Letras de Lisboa. “Sabe muito sobre o século XIX, da relação da
Igreja com o liberalismo. Construiu uma obra original, com uma leitura muito
significativa do papel do religioso na sociedade desde o século XIX para cá”, precisa
o padre Adélio Abreu, professor de História da Igreja.
Enquanto
estudante, D. Manuel Martins digeriu as faúlhas do Maio de 1968 no Colégio Pio
XII, onde compartilhou alojamento com fi guras como o actor Mário Viegas, o
embaixador António Monteiro, os políticos Carlos Borrego, José Magalhães, Luís Sá,
Marçal Grilo. “Era uma comunidade que integrava gente com vários
posicionamentos, nem todos católicos, muito menos praticantes”, recua o
socialista José Magalhães. “Costumava encontrá-lo na biblioteca.
Hiperestudioso, focado. Mas não era marrão do género que se limita a grunhir quatro
palavras. Afável e de grande tolerância, tornava-se muito fácil conviver com
ele”.
O
ex-ministro do Ambiente Carlos Borrego confirma-lhe o pendor marialva da
juventude. “Havia lares femininos à volta e saíamos para beber uns copos e
dançar. Ele alinhava. Não se conseguia identificar nele qualquer tendência para
o sacerdócio”. Para a discussão de ideias, sim. “O Manuel não era pessoa para
se inflamar, mas sabia apresentar as suas razões de modo convincente e
pragmático. Já na altura com um pensamento muito estruturado e aberto”.
Portugal,
culturalmente, é uma teima, como, geograficamente, é uma praia, feita cais de
partir e chegar, chegar e partir
D. Manuel Clemente
D. Manuel Clemente
Sempre
em registo “português suave” — sem estardalhaços, portanto —, lá terá sabido
dirimir o conflito entre fazer avançar o namoro (são-lhe conhecidos vários) ou
envergar batina. Que o conflito o atazanava prova-o o facto de ter ingressado no
Seminário Maior dos Olivais, logo após ter concluído a sua licenciatura, em 1973.
Ao curso de História haveria de somar o de Teologia, em 1979, e ainda um
doutoramento em Teologia Histórica. Mas isso foi depois. Quando se aventurou pelos
corredores do seminário, Manuel Clemente já tinha passado a curva dos 20 anos
de idade.
Mas
a vocação acompanhava-o desde miúdo, em Torres Vedras, onde nasceu a 16 de
Julho de 1948. “Teria sete ou oito anos e recordo-me, numa vez em que fui
ajudar à missa, de ter chegado à sacristia e pensar: ‘Quero ser como o padre Joaquim’”,
confi-denciou, em 2007, ao PÚBLICO. Mas na base da sua vocação religiosa estava
também o exemplo da sua mãe, Maria Sofia.
Apesar
de ter sido esta a travar-lhe o primeiro ímpeto para se fazer padre, teria uns
13 anos. “Pensa bem, forma-te e depois decides”, ter-lhe-á dito, segundo o
retrato que a revista Visão lhe traçou esta semana.
Filho
de um industrial, proprietário de uma fábrica de moagens, foi com a mãe que
Manuel José Macário do Nascimento Clemente manteve uma relação de adoração, até
que esta morreu, aos 95 anos. Expansiva, activista católica, Sofia “era
medularmente patriota, sem ser minimamente chauvinista”, segundo o próprio D.
Clemente, no livro O Tempo Pede Uma Nova Evangelização (Paulinas Editora, Prior
Velho, Março de 2013). “Com que alegria — dela e minha — percorremos o país em curtas
viagens de Verão, fi cando eu ainda mais intimamente conjugado entre mátria e
pátria”, recorda, no mesmo livro em que desfere a sentença: “Portugal, culturalmente,
é uma teima, como, geografi-camente, é uma praia, feita cais de partir e chegar,
chegar e partir”.
A
capacidade de sair do bafio claustrofóbico das sacristias para perscrutar o que
é isto de ser português, de perspectivar o país e a Europa e de lhes
descortinar as raízes da crise, foi um dos atributos a justificar a atribuição
do Prémio Pessoa em 2009. Tido como “uma referência ética”, foi o primeiro homem
da Igreja a ser distinguido, levava já aquele prémio 22 anos de existência.
No
discurso de aceitação, todo ele parido com citações do padre António Vieira, o
diagnóstico de D. Manuel: “Seremos problemáticos, os portugueses, mas por nos resumirmos
de mais”. Neste discurso, como em tantos outros com que pontuou a sua intervenção
pública, sobressai a preocupação em fazer desviar o olhar dos heróis ou anti-heróis
nacionais para as pessoas comuns. “Os heróis – ou anti-heróis – revelam-se
demasiadamente maleáveis ao que sucessivas ideologias deles queiram fazer. E é
por isso que, não pondo em causa o real valor que tiveram tais pessoas, a sua
utilização fantasmagórica mais nos distrai do presente e menos nos serve para o
futuro”.
Muito
para lá de Afonso Henriques, D. Sebastião, Vasco da Gama, Camões, Salazar ou outras
fi guras descomunais, a marca distintiva dos portugueses é a sua “capacidade de
resistência e adaptação criativa, que só requer mais autoconfiança e acompanhamento
público para ir por diante”, insiste Manuel Clemente. “Ouvi-lhe esse discurso, inteligente
e sensível, e achei que seria interessante fazer-lhe uma longa entrevista”,
recorda o jornalista e ex-director do PÚBLICO José Manuel Fernandes, que já com
ele se cruzara antes.
Da
entrevista, depois transformada em troca epistolar que sairia publicada no livro
Diálogo em Tempo de Escombros, ficou-lhe a confirmação de um homem cujo
pensamento “não é marcado apenas pela conjuntura mas tem a profundidade própria
de um historiador”. Para José Manuel Fernandes, o facto de o novo patriarca ter
tido uma vida civil antes de entrar pelo seminário ajuda-o “a perceber, melhor do
que muitos na Igreja, o país que o envolve”. O bispo emérito de Setúbal, D.
Manuel Martins, confirma: “D. Manuel é muito culto, estudou a História como qualquer
coisa de vital, mas nunca foi um rato de biblioteca: conhece as manifestações e
transformações do mundo, sabe adivinhar os sinais dos tempos”.
“É homem nada complicado, sincero, sem cera”,
adjectiva D. Manuel Martins. “A maioria dos bispos, quando assume uma diocese”,
reforça D. Januário, “recorre ao melhor retratista e faz-se fotografar com os
vermelhos todos, quase fidalgos do tempo de Luís XIV. D. Manuel não. Fez-se retratar,
sim, mas de casaco e calças, vestido à homem, e com uma cruz simplicíssima”.
Ainda D. Januário: “Sempre foi de andar na rua. Vai a uma livraria, a um café, sempre
a pé”. O bispo das Forças Armadas viveu dois anos com D. Manuel Clemente no
Seminário dos Olivais. “Dormia no quarto por cima do dele e, enquanto ele se levantava
e fazia a sua higiene diária, ouvia-o sempre com o rádio na Antena 2. Praticava
o bom gosto da música, mas sem nunca se fazer notar por isso”.
Apesar
de admirar o estilo low profile do novo patriarca, é D. Januário Torgal Ferreira
quem veicula a mensagem dos que lhe criticam “alguma paralisia no que à decisão
diz respeito e a tendência para deixar arrastar algumas questões”. “É uma leitura
legítima”, admite D. Manuel Martins, “nós gostamos das pessoas que sabem
conciliar mas depois zangamo-nos quando a pessoa se preocupa em fazer pontes
quando sentimos que o que era preciso era deitar a ponte abaixo”.
Sobre
a pedofilia, por exemplo: “Quando há dias lhe perguntaram sobre a pedofilia
dentro da Igreja, falou das vítimas mas também da necessidade de haver alguma delicadeza
relativamente aos culpados, da necessidade de decifrar as razões que os levaram
a tal sem pôr em causa o processo de redenção que estas possam ter iniciado. É
preciso coragem para dizer isto”, elogia D. Januário.
Decorrerá
isto, segundo José Manuel Fernandes, do facto de D. Manuel Clemente se
caracterizar por ser alguém “que foge ao dogma e procura perceber mais do que
dar sentenças”. Em 1991, D. Manuel Clemente predispôs-se a debater com José
Saramago o livro O Evangelho Segundo Jesus Cristo. E costuma entremear os seus
discursos com citações de Eça de Queiroz. E de Sophia de Melo Breyner e de
Eduardo Lourenço.
E
mantém-se com um optimismo à prova de crise. “Há nele um optimismo histórico
sobre o destino dos portugueses. Ele diz que Portugal vai resistir a esta
crise, por muito grave que ela seja”, reforça José Manuel Fernandes.
Sendo muito atento
à questão da dignidade das pessoas, D. Manuel não é homem de fazer terramotos
Não
se confunda com falta de atenção às ameaças dos tempos. Discurso directo em
Diálogo em Tempo de Escombros: “A democracia é o nosso regime geral e assente.
Creio que não a dispensaremos por nada, nem por algum sebastianismo que sobre e
em qualquer cor do nevoeiro. Mas a democracia ligase historicamente à afirmação
das classes médias, com o que estas trouxeram de autodeterminação das vidas e
dos percursos.
Quando
isto mesmo se reduza por circunstâncias várias, ou as escolhas se privatizem
sem sentido do conjunto, a vida política diminui e oscila entre grandes vazios
e possíveis golpes de quem apareça”.
Se
calhar por causa da complexidade do discurso, pouco condizente com soundbites,
as posições de D. Manuel Clemente não garantem abertura de telejornais. Mesmo
quando alude aos temas mais delicados. “Sou céptico em relação à viabilidade do
país por si só. Portugal nunca a teve. Nunca foi auto-suficiente em coisa
nenhuma”, disse numa entrevista ao PÚBLICO em Setembro de 2010. Sobre a Europa:
“Os problemas com que a Europa hoje se confronta obrigam os europeus a
encontrar bases mínimas para viverem em comum. Se não o fizerem, correm o risco de
se tornarem muito insignificantes no conjunto geoestratégico”. E, a propósito da
omnipresente sombra do celibato dos padres: “Creio que as realidades cristãs do
matrimónio e do sacerdócio celibatário, cada uma na sua especificidade, se manterão,
ainda que requeiram um redobrado acompanhamento na presente ‘cultura’ do
efémero”.
Quanto
ao que dele se espera enquanto patriarca de Lisboa, José Manuel Fernandes converge
no diagnóstico: “Não procura rupturas nem revoluções. Procura aproximações”.
“Não se espere dele nenhum pronunciamento estrondoso, à maneira de D. António
Ferreira Gomes”, avisa também Anselmo Borges.
Dado
“o absurdistão em que vivemos”, Anselmo Borges diz que gostaria de ter no
Patriarcado de Lisboa alguém capaz de convocar “Igreja, universidades,
patronato, sindicatos e partidos para os pôr a discutir e a comunicar ao país a
situação real em que este se encontra”. “A laicidade é uma aquisição
fundamental, a igreja não pode fazer política no sentido partidário da palavra,
mas pode ajudar a estabelecer consensos mínimos e assumir-se como voz moral”,
desafia. O bispo emérito de Setúbal também aponta à Igreja o pecado de andar
demasiado calada e distraída. “Precisávamos de saltar mais para a rua, de
estudar melhor as causas de toda a esta situação e de as denunciar”. Ora, D.
Manuel Clemente, “sendo muito atento à questão da dignidade das pessoas, não é
um homem de provocar terramotos”.
Não
é que D. Manuel Clemente ricocheteie a actualidade. Em Novembro, aconselhou o
Governo a desacelerar a austeridade para “deixar as pessoas respirar”. Predispôs-se
a fazer-se ouvir junto da troika. Mas não é expectável que mude o registo
“português suave”. Basta recuperar o que o próprio disse ao PÚBLICO, em
Dezembro de 2011, quanto interpelado sobre o posicionamento da Igreja face ao
agravamento da crise: “Tem de haver discrição, não se pode fazer gala nem
pretexto para conquistar protagonismo político. De maneira nenhuma”.
(Público, 26 de Maio de 2013, págs. 8 a 10)
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